A Receita Federal e Polícia Federal investigam no esquema de fraude fiscal, comprovantes com anotações que indicam a suspeita de aliciamento de pessoas para que se tornassem laranjas em negócios, supostamente ilícitos, envolvendo produtos metalúrgicos e sucata. O caso contaria com a participação de, pelo menos, 80 pessoas.
Na quinta passada, dia 18, e na última segunda-feira, dia 22, os investigadores abriram malotes contendo documentos apreendidos na Operação Gauteng, deflagrada ainda no dia 14 de maio. As provas foram recolhidas em Bento Gonçalves, Caxias do Sul, Porto Alegre e em cidades do Paraná, de Santa Catarina e São Paulo.
Conforme as investigações, dois operadores são suspeitos de administrar um esquema de emissão de notas fiscais falsas, que apontariam para uma movimentação de R$ 4 bilhões. O esquema funcionaria por meio de empresas laranjas, que teriam sido abertas a partir de 2018, em nome de pessoas que teriam sido aliciadas para participar da fraude. Destas empresas, duas teriam emitido também notas referentes a ouro, que somariam R$ 1 bilhão.
Além dos operadores, dois grupos de empresas familiares, sendo uma de Caxias do Sul e outra de São Paulo, são investigados pela compra das notas falsas. Conforme a Receita Federal, os comprovantes poderiam estar sendo usados para sonegar impostos ou esquentar, de forma ilícita, a procedência de mercadorias.
Os operadores e o foco de laranjas com auxílio emergencial
Em conversa com a reportagem, auditores fiscais do núcleo de Combate à Fraude da Receita Federal, que pediram para não serem identificados, mencionaram um padrão na maneira de agir dos dois operadores, que tinham como foco atrair pessoas humildes. Os operadores — sendo um de Santa Catarina, que cuidaria do esquema para o grupo familiar de Caxias do Sul, e outro de São Paulo, com foco no grupo familiar paulista — teriam a função de aliciar essas pessoas para que entrassem no esquema fornecendo os dados pessoais, que seriam usados para a abertura das empresas laranjas. Depois de aliciadas, as pessoas assinariam uma procuração e os operadores davam início à emissão e repasse das notas fraudulentas.
— Muitos desses sócios ou proprietários laranjas eram pessoas que chegaram a ser beneficiadas com o auxílio emergencial. Então, acreditamos que eles coagiam pessoas humildes, que muitas vezes não sabiam para o que estavam emprestando os dados pessoais. Muitas vezes essas pessoas vendiam o próprio CPF ou emprestavam para receberem uma "mesadinha" — diz um dos auditores.
Há suspeitas que muitas delas recebiam salário mínimo ou seriam pessoas que exerciam funções comuns, como empacotadores em supermercados, por exemplo, e, no mesmo ano, passaram a constar no quadro de sócios de empresas.
Durante a operação, que cumpriu 59 mandados de busca e apreensão de 18 municípios de quatro Estados do país, foi encontrado escrito em uma agenda a anotação de lembrete para "encontrar laranjas limpas", supostamente para que novos nomes fossem aliciados a entrar no esquema.
As noteiras ou empresas laranjas
Dentro de todo o esquema, funcionaria dezenas de empresas falsas, denominadas pelos investigadores como "noteiras", que são negócios abertos com o objetivo de operar fraude fiscal. As noteiras teriam sido criadas pelos operadores com os dados das pessoas aliciadas e teriam sido abertas no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, em São Paulo e no Paraná, Estado que seria a sede principal do esquema.
De acordo com a Polícia Federal, muitas dessas noteiras não tinham empregados, eram administradas por um mesmo contador e não chegavam a pagar tributos porque fechavam pouco tempo depois de serem abertas.
As empresas teriam emitido cerca de 500 mil notas suspeitas relacionadas a produtos de metalurgia, sucata e ouro. Conforme as investigações, algumas delas tinham valores de até R$ 50 milhões.
Notas para sonegar impostos, esquentar mercadoria ou lavar dinheiro
Conforme os auditores fiscais, os dois grupos de empresas familiares que teriam comprado as notas fraudulentas, poderiam ter como objetivo a sonegação de impostos, esquentar a procedência de mercadorias ou lavar dinheiro.
Na questão de sonegação de impostos, as suspeitas são de que as empresas teriam usado as notas falsas para inflar os próprios custos, gerando lucros menores na declaração de imposto de renda e, consecutivamente, os impostos devidos. Entenda como seria o esquema no quadro abaixo.
ENTENDA A SUPOSTA SONEGAÇÃO DE IMPOSTOS
- Uma empresa fatura R$ 50 milhões, mas tem custo de R$ 10 milhões e lucro de R$ 40 milhões.
- Com as notas falsas, que simulam o gasto com insumos, a empresa infla os custos e diminui a margem de lucro.
- Na contabilidade, os R$ 40 milhões entram como custo e os R$ 10 milhões como lucro.
- Na prática, o lucro será a base de cálculo da apuração dos tributos. Ou seja, a tributação incide sobre os R$ 10 milhões.
- O cálculo do imposto é então reduzido pela alegação de maior custo do que lucro, mesmo que o produto apresentado nas notas falsas não exista. Com isso, a empresa reduz os gastos com tributos.
Esquentar mercadoria ou lavar dinheiro
Ainda conforme os auditores, no caso dos dois grupos de empresas familiares, as investigações também apuram a possível existência de materiais ilícitos. Ou seja, os grupos podem possuir, de fato, os materiais mencionados nas notas, mas os produtos teriam sido adquiridos sem comprovação de origem. Nesse caso, a investigação suspeita de materiais de furto, como fios de energia ou de telefonia, e até mesmo roubo.
Em conversa com a reportagem, o delegado da Polícia Federal Noerci da Silva Melo informou que nos comprovantes apreendidos, haveria notas referentes a transações comerciais que teria ocorrido de fato, ou seja, existiria a mercadoria indicada, e também transações fictícias, sem que existisse a mercadoria indicada nas notas.
— Então, por exemplo, uma empresa de fachada de Vacaria ou de Lages, que foram locais onde foram abertas essas noteiras, emitia notas como se estivessem vendendo 20 toneladas de sucatas, mas na realidade era só nota porque essa sucata não existia. Os grupos familiares então se beneficiavam porque lançavam como despesa e acabavam por pagar menos tributos — aponta Melo.
O ouro
O caso do ouro dentro de todo o esquema está sendo investigado e ainda não é possível afirmar se há relação com os dois grupos de empresas familiares ou se o minério, de fato, existe.
— Nessas transações comerciais, dentro da nota fiscal, tinha uma descrição do ouro vindo do Suriname, entretanto, não existiam nos sistemas internos da Receita Federal e nos sistemas aduaneiros registros de importação desse ouro. Então é um ouro externo e importado, mas sem registros da empresa que emitiu essa operação comercial de venda e a importação desse desse ouro — relata um auditor fiscal da Receita Federal.
A investigação aponta ainda, com base no relatório de inteligência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), que dentro da transação de ouro ocorreram saques em espécies, que teriam sido usados para pagar ações comerciais feitas com ouro.
— Não sabemos se foi mesmo extraído esse ouro e trazido para o Brasil. Entretanto, os documentos fiscais emitidos precisam ter um fundamento, um motivo para que tenham sido emitidos. O crime cometido pode ser desde lavagem de dinheiro, até uma extração irregular de minério. Tudo aponta para um crime com antecedentes. Quem pode estar por trás desse documento, quem está emitindo, a troco de que se emitiram notas fiscais de ouro, são questões que estão sendo apuradas — menciona o auditor.
Ainda conforme os profissionais, as duas noteiras que emitiram as notas do ouro fizeram transações referentes ao minério e, ao final dessas transações, as investigações chegaram ao envolvimento de uma pessoa física, de Bento Gonçalves, suspeita de atuar como laranja. A investigação do esquema do ouro está sendo investigado e deve ser aprofundado a partir das provas apreendidas.
Os supostos crimes e os próximos passos da investigação
A Polícia Federal e a Receita Federal devem avaliar todos os materiais apreendidos até o momento para definir os novos rumos da investigação. Conforme o delegado Noerci da Silva Melo, a análise pode demorar devido a grande quantidade de celulares e computadores apreendidos, que podem apontar novos documentos e nomes de pessoas que estariam envolvidas.
O número total de empresas laranjas abertas não foi informado, mas conforme o delegado, “é muito maior que o número de mandados cumpridos”. Os nomes da empresa familiar de São Paulo, dos operadores e das demais pessoas investigadas são mantidos em sigilo.
Os agentes trabalham com as hipóteses de organização criminosa, lavagem de dinheiro, uso de documento falso e sonegação fiscal.