Três dias após um suposto cárcere privado mobilizar a polícia em uma grande operação de resgate em um apartamento de Farroupilha, uma das mulheres envolvidas no caso decidiu dar a sua versão sobre o caso. Mariana Pereira, 37 anos, alega ter sido exposta a uma situação constrangedora em razão de informações falsas que levaram à ação policial na casa de sua família na manhã da última terça-feira (21).
Na ocasião, os policiais imaginavam estar diante de um possível caso envolvendo reféns. Após receber informações da polícia paulista de que duas mulheres daquele Estado, no caso, mãe e filha, estariam sendo mantidas à força dentro de um apartamento no bairro Primeiro de Maio, em Farroupilha, a BM organizou a operação para libertá-las, o que envolveu integrantes do Batalhão de Operações Especiais (Bope) de Porto Alegre, devido à complexidade do caso.
A ocorrência, no entanto, teve uma reviravolta. Ou seja o cárcere privado não se confirmou. Na delegacia, foi esclarecido que mãe e filha vieram de São Paulo por vontade própria para resolver pendências financeiras com a família de Farroupilha e não eram mantidas à força na casa de Mariana e seus parentes.
Contudo, até que o caso fosse esclarecido, Mariana foi levada algemada para depor. Além disso, os pais dela, de 70 e 60 anos, e os filhos de três e quatro anos, viveram momentos de tensão com toda a movimentação.
Mariana deixa claro que não acusa a Brigada Militar ou a Polícia Civil pela situação. Contudo, ela questiona como foi montada toda a operação policial sem que se tivesse sido feito contato antes com as supostas vítimas ou com a família de Farroupilha, já que aparentemente se tratava de um sequestro ou cárcere. Ainda abalada, ela conta que a família não vai esquecer tão cedo as cenas ao serem acordados por policiais fortemente armados:
— Vivemos uma cena de guerra, foi um horror. Eles arrombaram a porta, estavam armados, com escudo, lanterna na cara, esquadrão antibomba. Pensa, era a tropa de elite, e gritavam "mãos na cabeça". Depois, nos algemaram e, em cerca de 10 minutos, revistaram a casa e falaram "está tudo limpo". Eu não fazia ideia do que estava acontecendo e, quando me colocaram no camburão, vi que tinha pessoas em cadeiras de praia (na rua) esperando para ver o que aconteceria.
Mariana desabafa:
— Estamos traumatizados. Meus filhos estão muito assustados. Eu não culpo ou acuso ninguém. Quem sou eu para fazer isso, para acusar a polícia, mas me pergunto como chegou a essa proporção? Tinha atiradores de elite ali, e se eu fosse na janela? Ou meus pais? Seriam baleados? Nós estávamos correndo perigo e nem sabíamos disso. Espero por respostas.
Mais de R$ 160 mil perdidos
A confusão que mobilizou a polícia começou a se desenrolar meses antes. Mariana afirma que em 30 de agosto deste ano investiu num suposto fundo de investimentos na bolsa de valores por meio de uma jovem de 25 anos, que é São Paulo. Mariana diz ter transferido, via Pix, mais de R$ 160 mil para o fundo. A indicação de aplicar dinheiro no negócio partiu de um amigo que também havia investido:
— Agora foi descoberto que não existe esse fundo. Eu fiz um Pix direto para a conta dela porque recebi informações de amigos. Funcionava assim: tu fazia aportes de dinheiro e a operadora da bolsa determinava um valor de juros mensais que cada investidor receberia. No meu caso era 8% ao mês. Era tudo falso. Em setembro, meu amigo já ligou falando que não seríamos pagos.
Na época, Mariana morava em Vitória (ES) e relata que não tinha o contato da jovem com quem negociou a aplicação. Quando retornou para a Serra, em outubro deste ano, recebeu mensagens da suposta operadora da bolsa.
— Ela falou "vamos acertar tudo certinho". Mas a cada semana mudava o prazo. Todo mundo (investidores) estava furioso e nervoso e, no grupo que eu estava, surgiu a ideia de ela operar da casa de um dos investidores, mas não ia dar certo fazer isso em um ambiente hostil, com muita pressão. Como eu estava mantendo um bom relacionamento com ela, disse que podia vir para a casa dos meus pais (em Farroupilha), seria um ambiente mais seguro e sem coação (ameaça).
Conforme Mariana, a jovem paulista, acompanhada da mãe, veio então de São José do Rio Preto (SP) para Farroupilha no sábado (18) e se instalou no apartamento da família da Serra.
—A ideia era que ela ia operar (o fundo) para tentar recuperar os valores. Eu ia aprender como fazer com ela— ressalta ela.
Segundo Mariana, na manhã de segunda-feira (20), a jovem paulista ficou apenas no celular, sem operar no fundo. No final da tarde, Mariana disse ter questionado a atitude:
— Insisti no fim da tarde para ela abrir a corretora (no computador) e o saldo era negativo. Não tinha nada. Quando eu avisei que o saldo era negativo nos grupos, o pessoal (investidores) surtou e eu fiquei muito indignada de fato, é claro, e a mãe dela entrou em desespero, percebi que a mãe dela não sabia de nada. Abracei a mãe dela. Ela colocou a culpa nos sócios, disse que deviam ter pego o dinheiro. Não teve agressão, apenas discussão normal. Ficou um desconforto grande, o apartamento é pequeno, e estávamos todos ali. O clima pesou e sabíamos que não adiantava mais, não íamos receber. Eu estava com pena da mãe dela e com raiva dela, mas não teve nenhum tipo de agressão.
Por volta das 22h de segunda-feira, a jovem paulista e a mãe foram para a sacada do apartamento, onde ficaram até que Mariana e os pais, por volta da meia-noite, foram dormir. Mariana levou o filho para o quarto e a menina foi para o quarto dos pais dela.
— Fomos dormir cansados, e acordamos com o Bope arrombando a porta da nossa casa por volta das 8h20min da manhã (da última terça-feira).
Brigada Militar diz que o procedimento adotado foi correto
A mobilização da polícia tem uma explicação. O major Giovani Gomes, subcomandante do 36º Batalhão de Polícia Militar (36º BPM), com sede em Farroupilha, diz que foram recebidas informações da polícia de São Paulo de que supostamente mãe e filha estavam sendo mantidas reféns no apartamento da família de Mariana. O comunicado do suposto crime partiu de um familiar das paulistas.
Diante da complexidade do caso, a BM acionou o Bope, que é especializado em resgate de reféns. A BM de Farroupilha isolou a área e aguardou a chegada dos policiais de Porto Alegre. Uma equipe do Bope entrou no apartamento para liberar mãe e filha, afinal, a informação era de um caso de cárcere privado. Todos os envolvidos foram levados para depor na Delegacia de Polícia (DP) da cidade. Ninguém se feriu.
— Antes da entrada deles, foi avaliada toda a situação. Foi tentado entrar em contato várias vezes com as pessoas do prédio. Eles (policiais) tiveram a entrada flanqueada por pessoas do prédio. Bateram na porta várias vezes e não tiveram êxito de um retorno positivo da possibilidade de entrada, sem a entrada tática. Como havia o pedido de socorro e a vítima também por mensagens de texto pedia esse apoio, então eles entraram de forma tática. Todo o procedimento foi correto e nós não conhecíamos as pessoas que estavam do outro lado.
Polícia Civil investiga o caso
De acordo com o delegado da Polícia Civil, Ederson Bilhan, o caso tomou outro rumo com base nos depoimentos dos envolvidos no caso e na cena encontrada no apartamento. Isso porque quando o Bope invadiu o imóvel, as supostas vítimas (mãe e filha de São Paulo) estavam na sala instaladas no sofá, a chave do apartamento estava na porta e as supostas autoras do crime (moradoras de Farroupilha) estavam dormindo.
Segundo o delegado, os policiais invadiram o apartamento por se tratar de um procedimento padrão. Ele esclarece que juridicamente não se trata de cárcere ou sequestro e, por isso, o caso foi registrado como exercício arbitrário das próprias razões, que significa fazer justiça com as próprias mãos. O entendimento inicial é de que os moradores da Serra buscaram os próprios meios para que mãe e filha quitassem a dívida existente. Segundo a investigação, a princípio elas não eram mantidas reféns, mas estavam hospedadas na moradia para operar no mercado financeiro até recuperar o dinheiro que perderam em investimentos.
— Estamos investigando. Os telefones e computadores foram apreendidos e serão analisados para esclarecer as circunstâncias. O carro das que se diziam vítimas de cárcere privado foi apreendido porque estava com bloqueio judicial. Vamos seguir em colaboração com a polícia paulista para esclarecer — aponta ele.
Todos os envolvidos respondem o inquérito em liberdade. A reportagem não conseguiu contatar as duas mulheres de São Paulo envolvidas no caso.