Os pecuaristas dos Campos de Cima da Serra estão preocupados com o que aparenta ser uma quadrilha especializada em abigeato. Os criminosos atacam nas madrugadas, com cavalos para recolher o gado no campo e embarcar em caminhões. Apenas na rota entre São Francisco de Paula e Jaquirana, na RS-110, proximidades do Faxinal dos Pelúcios, foram sete pecuaristas atacados e mais de 116 animais levados nestes quatro meses e meio de 2021. A insegurança coloca em dúvida a criação de gado, que sempre foi tradicional na região.
O abigeato sempre foi um tormento para os pecuaristas. O "crime tradicional" acontecia quando um grupo pequeno de ladrões abatiam um animal no campo para furtar a carne. Era um prejuízo já previsto pelos pecuarista. O problema, no entanto, é que agora o crime está organizado, com pessoas especializadas e capazes de levar um lote inteiro de animais prontos para a venda.
— É um prejuízo muito grande. Produzimos desde terneiro, fazemos cria, engorda e vendemos. Para "recuperar" 15 bois, são cinco anos. Claro, tem outros ciclos que nos ajudam. Mas, ao levarem um lote (pronto para a venda), um produtor menor perde a renda do ano inteiro. Tudo o que poderia ganhar, para sustento da família e dos funcionários — comenta o pecuarista Cristiano Vidor, 44 anos, que teve furtados 15 animais.
Para o pecuarista, estes crimes têm envolvimento de alguém que conhece a região. Os ladrões sabem onde o gado costuma ficar, buscam os campos que não têm morador próximo e cortam as cercas entre as propriedades para levar o gado até um curral com embarcador mais próximo da rodovia. Na tentativa de evitar esses crimes, os produtores estão destruindo as estruturas que ajudam na lida do gado há décadas.
— Essa mangueira (curral) existe há 15 anos, mas estou desmanchando. Vou tentar construir mais longe, escondido, perto de alguma casa de vizinho. Não tem outra saída. Não é fácil trazer boi assim a noite. Tem que ser vaqueano. É gente que sabe o que está fazendo e conhece a região — assegura Adailton Quadros, 56, que teve 12 bois prontos para o abate levados por ladrões no final de janeiro.
Os produtores criaram um grupo no aplicativo Whatsapp para trocar informações e monitorar movimentações suspeitas. Os relatos de sumiço de bois são quase que diários. Os crimes também acontecem em Bom Jesus e Cambará do Sul.
Na propriedade de Daniel Rauber, 44, além de cortar a cerca, os criminosos usaram telhas de zinco para remontar o carregador destruído. A família é tradicional na criação de gado e já lidou com alguns casos esporádicos de abigeato. Como outros moradores, também já foram vítimas de assaltos, principalmente de trator. Rauber aponta que essas ações criminosas organizadas complica a manutenção da atividade na região.
— A gente só percebe (os crimes) na manhã seguinte. Vimos a cancela caída e desconfiamos. No carregador, estava tudo sapateado de gado e tinha as marcas de caminhão. Levamos mais de dia para reunir (o gado) e fazer a contagem. Tinham levado 42 cabeças de dois campos diferentes. Gado gordo, vaca de cria, terneiro, estão roubando de tudo. Vivemos a céu aberto, qualquer pessoa que chega nós recebemos. Muitos estão precisando de ajuda, algum carro que pifou (na rodovia que tem buracos). Agora, estamos com medo de qualquer um que se aproxima — desabafa.
Pecuaristas querem instalar câmeras nas estradas
Para não perder seu sustento e a tradição de suas famílias, os pecuaristas estão criando uma associação e planejam colocar câmeras pela rodovia e estradas vicinais. As imagens seriam disponibilizadas para as polícias com a intenção de identificar suspeitos. Um projeto já foi encomendado junto a uma empresa de Caxias do Sul.
Atualmente, após os abigeatos, os produtores fazem um registro policial. O gado é todo marcado e registrado, mas dificilmente são recuperados. A maioria dos crimes fica sem uma resposta policial, o que desmotiva os pecuaristas a procurarem as delegacias e fazerem novos registros. Segundo a Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP), o crime de abigeato está em queda no Rio Grande do Sul.
— Não tem muito o que fazer, apenas dar baixa nesses bois. A polícia pede informações, quer que a gente ajude. Podemos até desconfiar de alguém, mas não temos provas para acusar. Acaba ficando tudo por isso mesmo — lamenta Quadros.
— Por mais boa vontade que tenha, a Polícia Civil daqui não tem estrutura. Falta recurso. Há poucos dias, a polícia de Bom Jesus pedia uma caminhonete 4x4 emprestada para ir fazer uma averiguação em uma propriedade. Com carro pequeno, não consegues entrar nestes lugares — complementa Vidor.
Em 2021, foram registradas 18 ocorrências de abigeato em São Francisco de Paula, 11 em Jaquirana e três em Cambará do Sul. Os três municípios são responsabilidades do 1º Batalhão de Policiamento em Áreas Turísticas (1º Bpat). A Brigada Militar (BM) não tem um levantamento de quantos animais foram levados nas ocorrências.
— É uma questão que preocupa e estamos monitorando por meio das equipes de inteligência para pontuar a forma de atuação dos criminosos e repassarmos as guarnições operacionais. Estamos em contato direto com proprietários da região e participamos de grupos de WhatsApp com os moradores do interior para tentar identificar os criminosos e veículos suspeitos — comenta o tenente-coronel André Lima da Silva, comandante do 1º Bpat, que ressalta a importância de os pecuaristas registrarem os crimes para um melhor planejamento das ações policiais.
A estratégia da BM é distribuir patrulhas da Força Tática em horários e locais alternados para surpreender as quadrilhas. As operações acontecem em conjunto com a Patrulha Ambiental (Patram).
— As dificuldades são a grande extensão de área territorial da nossa região, a reincidência de pessoas que cometem crimes desse tipo e a subnotificação quanto ao registro das ocorrências — aponta o comandante do 1º Bpat.
A expectativa é de que as câmeras a serem instaladas pela associação dos pecuaristas facilite o trabalho policial, com a identificação de placas e suspeitos. O sistema deve ser agregado com o videomonitoramento, que cada município estabelece em seus acessos.
— Essas câmeras são encruzilhadas ou início e finais das estradas. Por mais que não pegue o crime em si, é possível verificar se teve algum veículo suspeitos naquele momento ou noite — declara Beto Lopes, secretário de Administração de São Francisco de Paula, sobre o sistema de vigilância que contra com 10 câmeras e cercam as entradas e saídas do município. O projeto prevê a expansão do sistema para os distritos e estradas do interior, mas ainda não há prazo para o investimento.
Mesmo com queda nos números do RS, Polícia Civil está atenta ao crime organizado
Entre janeiro e abril, foram 1.398 crimes de abigeato em todo o Rio Grande do Sul, conforme os dados da Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP). O número é 19% menor do que o registrado no mesmo período do ano passado, quando aconteceram 1.734 furtos. O que preocupa a Polícia Civil é que este crime é mais organizado e capaz de causar maiores prejuízos.
— Temos este mesmo modo de operação (dos Campos de Cima da Serra) em outras regiões do estado. Realmente, é outro tipo de criminoso envolvido. É mais organizado, com mais estrutura e mais pessoas envolvidas. Por vezes, já tem até um frigorifico envolvido e sem nenhum tipo de inspeção sanitária. Estamos atentos aos Campos de Cima da Serra e avaliando que tipo de ação será desencadeada — declara o delegado André Mendes, da Delegacia Especializada na Repressão aos Crimes Rurais e Abigeato (Decrab), com sede em Bagé.
O delegado afirma que a Polícia Civil enfrenta organizações criminosas especializadas em abigeato desde 2016, quando foi deflagrada uma força-tarefa. No ano passado, por exemplo, uma operação com 260 agentes combateu uma facção do tráfico de drogas envolvidas com crimes rurais na Região da Campanha. Os crimes de abigeato são considerados controlados, atestados pelas estatísticas, mas o delegado Mendes nota uma tendência de crescimento.
— De forma geral estão diminuindo, inclusive na Serra. Há aumentos pontuais em algumas regiões, como Santo Ângelo, Passo Fundo, Erechim, locais até que tem um rebanho menor. Esse retorno dos crimes, com característica de organizações criminosas, pode ser um indicativo de volta a normalidade pós-pandemia. Mas é algo que exige nossa atenção total.