Mesmo com registros em queda no Rio Grande do Sul, o abigeato segue tirando o sono de pecuaristas gaúchos. Ao longo de 2020, 5.261 ocorrências chegaram ao conhecimento das autoridades — média de 14,4 por dia. O primeiro trimestre de 2021 apresentou queda de 26,5% no furto de gado: 945 registros, frente a 1.286 em igual período do ano anterior. Na prática, porém, produtores e entidades do setor afirmam que não sentem o arrefecimento do delito.
No dia 5 de abril, segunda-feira após o feriado de Páscoa, o pecuarista e veterinário Adalberto Siqueira, 46 anos, percebeu que nove ovelhas haviam sido levadas de sua propriedade em Lageadinho, no interior de Alegrete. O crime não deixou nenhum rastro: a porteira não estava arrombada, arames da cerca estavam intactos e não havia pegadas no pasto. No dia seguinte, a polícia prendeu um homem vendendo carne ovina no município da Fronteira Oeste. Das 34 ovelhas, ficaram 25 e um prejuízo de R$ 3,5 mil. O produtor acredita que o crime foi planejado:
— Não tem como entrar sem ter noção da propriedade. Há alguma informação privilegiada. As ovelhas ficam do lado da casa. A sensação é de impotência e insegurança. Moro com a família, maior que o prejuízo econômico é a sensação de insegurança, pois tem que andar se cuidando. Quando vê tem alguém dentro da tua casa. É um crime silencioso. Não entendi como carregaram as ovelhas. E depois que aprenderam o caminho fica muito fácil voltar.
Coordenador da Comissão de Pecuária da Farsul, Pedro Píffero pondera que no caso de abigeato nem sempre os números representam a realidade. O dirigente argumenta que a queda das ocorrências pode não significar que o crime está diminuindo. Segundo ele, o produtor ainda não está conscientizado da importância de fazer o registro na delegacia. Normalmente, a motivação para procurar a polícia vem quando o furto é em grande volume de animais. Siqueira admite à GZH que não registrou o sumiço das nove ovelhas.
— O nosso sentimento é que o abigeato não diminuiu, mas o produtor não vai fazer o boletim. Com o preço atual da carne de gado esse crime se torna ainda mais atrativo. O poder aquisitivo das pessoas diminuiu bastante e estamos em região produtora de pecuária. É preciso intensificar a fiscalização de trânsito de animais — diz Píffero.
Presidente do Sindicato Rural de Alegrete, Luiz Gomes está em negociação com a Polícia Civil para levar uma Delegacia de Polícia Especializada na Repressão aos Crimes Rurais e de Abigeato (Decrab) ao município para incentivar o aumento do registros e a consequente investigação dos abigeatários. Atualmente, quatro cidades sediam delegacias especializadas em crimes rurais no RS: Camaquã, Santiago, Cruz Alta e Bagé.
Na avaliação do chefe de investigação da Decrab de Bagé, Patrício Antunes, a subnotificação do crime sempre existiu. Mesmo assim, garante que o delito está em queda ano a ano.
— O que tem acontecido são alguns crimes de maior vulto, envolvendo número considerável de animais roubados. E isso causa um clamor muito forte. Sempre existiu a falta de registro e, onde não tem ocorrência, não tem crime — pondera.
Maior que o roubo e o prejuízo econômico é a sensação de insegurança, pois tem que andar se cuidando. Quando vê tem alguém dentro da tua casa. É um crime silencioso. Não entendi como carregaram as ovelhas. E depois que aprenderam o caminho fica muito fácil voltar
ADALBERTO SIQUEIRA
Pecuarista e veterinário
Mesmo com a redução do indicador, áreas rurais de Bagé, Dom Pedrito e Pinheiro Machado convivem com a presença de organizações criminosas especializadas no furto de gado. E são esses grupos os principais alvos da Decrab.
— O abigeatário tem conduta diferente do criminoso da cidade. Atua em áreas isoladas, em um crime que não tem testemunha, e as quadrilhas precisam ter boa estrutura física, com caminhões, caminhonetes ou ainda homens para tropear o gado. Possuem um certo poder financeiro. Em grande parcela das ocorrências, chegam inclusive a cooptar caseiros e trabalhadores que atuam nas propriedades para ajudá-los — explica o policial.
Após o furto, essas organizações repassam o animal de duas formas: vendem ainda vivo para o frigorífico que o abate por preço de mercado ou os próprios ladrões fazem o abate e comercializam para mercearias, restaurantes e açougues. Na Fronteira, também há atuação do abigeatário eventual, que age esporadicamente, por conta, carneia o animal e vende direto para o consumidor.
O crime de abigeato é muito lucrativo pela liquidez que o produto carne tem no mercado. Vende muito fácil.
PATRÍCIO ANTUNES
Chefe de investigação da Decrab de Bagé
— O crime de abigeato é muito lucrativo pela liquidez que o produto carne tem no mercado. Vende muito fácil — explica Antunes.
Na região Noroeste, o abigeato acontece na modalidade carneada, segundo o titular da Decrab de Cruz Alta, Rafael dos Santos. Os criminosos vão até a propriedade, matam o animal, o transportam para um segundo local, onde fazem a divisão das partes e deixam para trás o que não os interessa, como vísceras e patas. A polícia tem mapeado esses indivíduos que, apesar de não estarem presos, usam, em sua maioria, tornozeleira eletrônica, o que acaba inibindo a reiterada prática do crime.
— Atendemos mais casos em Cruz Alta, Ijuí, Joia, Tupanciretã e Santa Bárbara. São grupos específicos e o nível de organização varia muito. Os mais organizados ainda estão na Fronteira, aqui temos grupos menores. Nessa modalidade, são pegos um ou dois animais por vez, que são comercializados para pequenos estabelecimentos — diz Santos.
Essa carne acaba na mesa das pessoas, e isso é um problema. Quando o preço da carne está muito abaixo do valor do mercado, certamente é uma carne que decorre de um abate clandestino, foi recebida sem fiscalização ou é produto de abigeato.
RAFAEL DOS SANTOS
Delegado titular da Decrab
Outra frente do trabalho na região está concentrada na fiscalização de pequenos açougues e mercados junto com a Vigilância Sanitária de Cruz Alta.
— Essa carne acaba na mesa das pessoas, e isso é um problema. Não tem fiscalização, não passou por nenhum tipo de controle de qualidade e é comercializada a um preço bem menor do que o comum, atraindo o consumidor de bairro. Quando o preço da carne está muito abaixo do valor do mercado, certamente é uma carne que decorre de um abate clandestino, foi recebida sem fiscalização ou é produto de abigeato.
Patrulha da BM controla crimes rurais no Vale do Rio Pardo
No Vale do Rio Pardo e na Centro-Serra, a Brigada Militar trabalha há 10 anos com patrulhas comunitárias no interior para se aproximar dos moradores da zona rural de 31 municípios. O projeto já serviu de exemplo para outros comandos regionais e dispõe de 20 picapes — com dois policiais por viatura — para uso exclusivo no policiamento do Interior.
A ideia é chegar a 25 viaturas destinadas a esse serviço. São 52 mil propriedades rurais georeferenciadas. Os PMs produzem relatórios de inteligência e mantêm interação constante com as comunidades, segundo o comandante do Comando Regional de Polícia Ostensiva do Vale do Rio Pardo, coronel Valmir José dos Reis:
— Com isso, não cuidamos só do cinturão das grandes cidades, 40% da população do Vale do Rio Pardo mora no interior. Quem comete esse crime na região são pessoas que estão no nosso radar de inteligência há mais tempo.
O trabalho ajudou a BM a realizar a maior apreensão de gado da região em uma operação policial. A ação aconteceu em 7 de abril, em Vale Verde, e localizou 150 animais em razão de abigeato ou falta de procedência.