Indicador criminal que mais cresce no Rio Grande do Sul, o estelionato passou a ser menos investigado este ano. A constatação é um efeito da mudança legislativa, que tornou necessária a formalização do desejo da vítima para que o autor seja investigado, processado e preso. À primeira vista, a alteração pode parecer banal. Afinal, um cidadão que procura a polícia certamente tem interesse na condenação do criminoso. Só que com a atual descrença no sistema penal brasileiro, muitas vítimas avaliam como uma perda de tempo ter que ir à delegacia reconhecer um suspeito ou ao Fórum prestar declarações em audiências — procedimentos necessários para a elaboração da prova e da acusação.
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A inclusão do parágrafo 5º no artigo 171 do Código Penal é uma das alterações aprovadas na Lei 13.964, que ficou conhecida como pacote anticrime. Antes, o estelionato sempre teve ação de natureza pública incondicionada. Quando uma vítima comunicava um crime a Polícia Civil tinha obrigação de instaurar uma investigação e o Ministério Público (MP) de oferecer a denúncia contra o autor. Com o novo parágrafo, não basta a vítima relatar o fato criminoso à autoridade policial, mas é necessário formalizar a vontade de que o Estado persiga o autor do delito.
Com a alteração, a Polícia Civil teve que procurar as vítimas de inquéritos em andamento e questionar se estas autorizavam as investigações. O delegado Vítor Carnaúba, da 1ª Delegacia de Polícia de Caxias do Sul, relata que mais da metade das pessoas não demonstraram o interesse necessário para o futuro processo penal. Mesmo com provas contundentes, policiais e promotores ficam sem legitimidade para qualquer ação contra o estelionatário.
— Em regra geral, está em 50% o número de pessoas querendo o processamento. Nos casos mais antigos, a maioria não quer. Se passou de um ano e o prejuízo não é tão relevante, percebemos que as vítimas não acham que vale a incomodação. É tempo e deslocamento de ir em audiência. Não vejo medo porque não é um crime que envolva violência. É mais as pessoas não querendo se incomodar — opina o delegado.
Esta descrença com o sistema penal brasileiro também foi percebida pela promotora Jeanine Mocellin, que atua em Farroupilha. A representante do MP percebe um índice de quase 70% de desistência na fase judicial.
— Pelo tempo que passou (do prejuízo), a vítima vê (a ação penal) como uma perda de tempo. É um problema. Se a resposta do Estado fosse mais rápida, com oitiva e sentença logo depois do fato, a visão seria outra. O desinteresse acontece porque a vítima sente que o Estado não teve interesse nela. Passou anos do prejuízo, a vítima nem lembra mais do assunto. O processo vira apenas uma "incomodação" — lamenta.
O consentimento da vítima também é necessário durante prisões em flagrante. O delegado Carnaúba afirma que "no calor do momento" é mais comum as vítimas responderem que querem ver o criminoso condenado e preso. Mas, em Caxias do Sul, já aconteceu de a vítima responder que estava satisfeita pelo prejuízo ter sido evitado pelos policiais e, assim, não tinha mais interesse "naquela história". O golpista preso teve que ser solto.
Alteração pretende desafogar o Judiciário
A alteração da legislação tem justamente o intuito de reduzir o número de inquéritos policiais e processos, esperando que se tornem mais eficientes os procedimentos instaurados. Em regra, o estelionato é considerado um crime de difícil investigação, o que fica ainda mais prejudicado pelo excesso de serviço e dos poucos recursos humanos e materiais nas delegacias e promotorias. Com a demora na elaboração de provas e denúncia, a vítima perdia o interesse e não colaborava com a etapa judicial, principalmente nos casos em que o seu prejuízo foi de pequeno valor.
Para o advogado criminalista Mauricio Adami Custódio, a reforma veio para racionalizar o sistema de persecução penal. Ele salienta que, em tese, o estelionato é um delito sem violência ou grave ameaça.
— Evita que grande parte de processos que eram gerados por obrigação acabassem no foro criminal. Alguns que sequer eram crimes pois podiam ser desacordos comerciais, ou menos gravosos, que a vítima sequer queria dar andamento. É um momento onde o Brasil precisa repensar o processo penal para casos necessários, casos que exigem a intervenção do Estado. O direito penal é o último remédio. Para a advocacia criminal, que defende um equilíbrio do direito penal na sociedade, menos intervencionista, vem em bom momento — afirma Custódio, membro do Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Caxias do Sul.
Ele acredita que a alteração não acarretará em um cenário de impunidade mas, sim, de equilíbrio. A advogada Giovana dos Reis, da comissão de Ciências Criminais da OAB Caxias, aponta que há diversas situações em que o estelionato tem valor menor do que o custo de um processo e outros em que a vítima não deseja ter que relembrar aquele estresse emocional.
— É um crime patrimonial particular, então é interesse meu ou não em representar. Muitas vezes, o Judiciário se encontrava em situação em que não havia causa de existir. Não tinha a necessidade de investigação e apuração, mas tomava o tempo de todos os entes. Agora, em tese, só irão prosseguir os processos em que realmente há o interesse e a colaboração da vítima — comenta a criminalista.
O entendimento é que a comunicação do fato criminoso não pode se confundida com a vontade de oferecer uma representação criminal. Em regra, o principal interesse das vítimas é recuperar o prejuízo, o que pode ser feito em processo na esfera cível.
— Por ser um crime apenas patrimonial, a vítima pode ter esse direito de escolha. O registro é apenas para segurança pessoal e alguma garantia futura dos seus dados. Está dentro da liberdade do cidadão. Da mesma forma que este poderia desejar nem ir registrar (o fato à polícia) — afirma o delegado Carnaúba.
Opiniões são controversas
A nova legislação pode beneficiar réus, que deixarão de ser processados perante a escolha da vítima, e, assim, estimular a prática de golpes. Este alerta é da promotora Jeanine, mas ela pondera que há outros agravantes neste sentido, como as baixas penas previstas para estelionato e longo tempo entre a prática do crime e a condenação. Para o criminalista Custódio, o novo texto do artigo 171 não tem relação com impunidade.
— Este nome (pacote anticrime) foi para agradar. Esta alteração da lei não veio para arrefecer o âmbito criminal. O combate ao estelionato é feito criando mecanismos de controle, de alerta e de dissuasão em um cenário que não é verdadeiro, principalmente no meio online. O estelionato é uma "fake news". As pessoas precisam criar hábitos de checar informações e dados. Na grande gama (dos delitos), não estamos falando de uma criminalidade sofisticada — aponta Custódio.
Sobre o combate ao crime organizado, que também adere a golpes para conseguir dinheiro para financiar outras práticas criminosas, o delegado Carnaúba afirma que a atuação policial prossegue. É notório que cada vez mais presos praticam golpes por telefone e aplicativos de conversa de dentro das cadeias.
— Se comprovado que envolve outros tipos de crimes, como associação criminosa, podemos prosseguir o inquérito normalmente. Se um golpe cresce, buscamos a origem e deparamos com a organização criminosa. Caso seja apenas uma pessoa que praticou vários golpes, teremos que identificar e perguntar individualmente para cada vítima (o consentimento para indiciamento) — esclarece o chefe da 1ª DP.