O Quatrilho, de José Clemente Pozenato, foi lançado em 1985. A primeira edição é da Mercado Aberto, mas poderia ter sido da L&PM. É que Pozenato terminou de escrever o romance em 1984 e deixou o material, datilografado em uma Olivetti Lettera 22, para avaliação da L&PM. Mas, depois de alguns meses sem resposta, o escritor resgatou o manuscrito que foi parar na Mercado Aberto. E o resto é história. O romance virou filme, quase levou o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1996 e completou, em 2020, 35 anos da primeira edição. Por conta disso, Pozenato foi procurado pela editora AGE para reeditar a obra.
Nas contas do escritor, a mais recente edição é a de número 19. O livro foi impresso em uma pequena tiragem, e conta com um capítulo extra e inédito, mas não ganhou ainda uma sessão de autógrafos. É que a pandemia parece ter bagunçado um pouco as coisas também no mercado da literatura. Para falar sobre o romance que se rejuvenesce a cada temporada, Pozenato nos recebeu em seu apartamento em Caxias do Sul e revelou os bastidores do processo criativo de O Quatrilho.
As primeiras páginas escritas em 1983
Pozenato, então professor de literatura na Universidade de Caxias do Sul, resolveu que plantaria a raiz da cultura italiana no contexto da literatura brasileira.
— Nessa época, eu estava dando um curso de literatura rio-grandense na UCS. Então, me dei conta de que todas as contribuições culturais dos povos que formaram o Rio Grande do Sul já estavam na literatura, mas dos italianos não havia uma obra significativa. Então pensei: "Vou colocar a contribuição da cultura italiana na literatura brasileira" — explica o escritor, de 82 anos, natural de São Francisco de Paula.
Antes da primeira frase escrita, o autor já havia definido ainda que seria uma trilogia, nos moldes do que havia feito Erico Verissimo com O Tempo e o Vento, publicada ente 1949 e 1962 - e também do que estava fazendo Josué Guimarães, com A Ferro e Fogo, cujo primeiro livro foi editado em 1972, o segundo em 1975, e só não concluiu o terceiro volume porque morreu em 1986.
— Pensei em escrever uma trilogia, apresentando três gerações diferentes, o que é uma tendência nos romances chamados etnográficos. Eu tive o primeiro insight do romance assistindo a uma mesa redonda com um sociólogo, em que ele analisava a passagem da economia agrícola para a industrial em Caxias e na região. Aí me deu um estalo: vou começar por aí, escrever justamente sobre essa transição do colono que vira empresário — conta.
As primeiras 30 páginas foram escritas ainda em 1983 e Pozenato jura que elas não existem mais. Num dia, despretensiosamente, o escritor confidenciou ao amigo e colega Ary Nicodemos Trentin (1942-2002) que estava escrevendo um romance.
— Ele me perguntou em que período estava ambientado. Eu respondi que se passava por volta de 1910. Então ele me disse: "Tenho uma história pra te contar. Aconteceu com os meus avós" — diz Pozenato, com um tom de ironia entre os lábios, em um sorriso comedido.
Traição e crítica aos bons costumes no interior do RS
Ary Trentin revelara não apenas uma história curiosa, de traição entre dois casais de vizinhos, mas acabara por entregar a Pozenato o mote ideal para costurar uma trama que seria reconhecida por ser mais do que o registro de uma época.
— Quando ele acabou de contar, me perguntou: "Tu não acha que isso daria um filme?". Eu respondi: "Antes vai dar romance" — lembra Pozenato.
Regina Zilberman, professora de literatura da UFRGS, e que sempre acompanhou de perto a carreira de Pozenato, explica que o trunfo de O Quatrilho é justamente essa investigação sobre a alma dos personagens, suas vontades e desejos que dão a tônica dessas relações interpessoais.
— O Quatrilho é uma história muito interessante, uma trama muito bem escrita, o que é muito importante em uma narrativa. Porque não adianta a temática ser interessante se o livro não prende o leitor. É por isso que O Quatrilho continua vivo. Além de escrever um livro sobre a imigração italiana, Pozenato trata da construção da identidade daqueles personagens. A obra é marcada não apenas pela luta e sobrevivência, mas pela transgressão na relação entre os personagens, que está no cerne da construção dessa trama — defende Regina.
O filósofo Jayme Paviani, parceiro de Pozenato, Trentin, Delmino Gritti e Oscar Bertholdo no livro Matrícula, que lançou a geração deles para a literatura, assim descreve os personagens de O Quatrilho, em um dos ensaios contidos em Estética mínima - Notas sobre arte e literatura, de 1996: "Neste jogo literário entram em cena: Teresa, bonita, sensual e inteligente, mulher de Ângelo, homem obcecado pelo trabalho, pelo dinheiro e pelo progresso econômico; Mássimo, sensível, viajado, de ideias diferentes, talentoso nos trabalhos manuais, esposo de Pierina, mulher de senso prático, doméstico e que só acorda da realidade através de uma experiência radical".
No romance escrito por Pozenato, Mássimo e Teresa começam a desenvolver uma relação afetuosa, antes mesmo da consumação da traição. Em uma tarde quente, de Natal, o acaso coloca Mássimo, então marido de Pierina, a caminhar pela laje de um rio raso, atrás de Teresa, então esposa de Ângelo. Pozenato assim descreve o encontro que faz brotar o amor proibido: "Mássimo seguiu atrás dela, com o coração aos saltos. Finalmente ela parou, numa pequena clareira, onde as folhas secas estalavam debaixo dos pés. Compreendeu então que Teresa escolhera aquele lugar há mais tempo. Ela premeditara o que estava fazendo e o esperava, de pé, ofegante. Sem desviar dele os olhos, começou a desabotoar o vestido".
O legado da obra
Ao rever sua obra, que ganhou o primeiro ponto final em 1984, ou seja, há 37 anos, Pozenato silencia e desconversa. Parece consciente de que, para além da crítica literária, a obra ganhou corpo quando foi projetada em tela grande, e quase levou um Oscar. A professora Regina Zilberman, no entanto, é mais enfática. Ela afirma que Pozenato escreveu um dos romances mais importantes da literatura brasileira.
— O primeiro aspecto é que, a partir dos anos 1960, especialmente na região Sul, há um esforço da literatura em cobrir áreas da imigração europeia, com Josué Guimarães, Moacyr Scliar e Charles Kiefer, de se pensar o Rio Grande do Sul a partir de outros paradigmas. Pozenato está afinado a este grupo e faz um dos mais importantes romances — avalia Regina.
No final da entrevista, Pozenato mostra a edição de Cancioneiro, de Francesco Petrarca, cuja tradução tem a sua assinatura, e explica que o poeta é a fonte da poética de todo o ocidente. Nos revela ainda que está trabalhando na tradução da Divina Comédia, de Dante Alighieri. Não por encomenda de nenhuma editora, mas por livre fruição e exercício estético e linguístico.
Saio da casa de Pozenato e, ainda no elevador, revendo mentalmente a nossa conversa, entendi perfeitamente qual é o legado sentimental de O Quatrilho. Assim que terminou de escrever a obra, em 1984, ele entregou o manuscrito para alguns conhecidos lerem. Entre eles, Ary Trentin, que disse ao amigo:
— Eu não teria escrito melhor.
Depoimentos sobre a importância de O Quatrilho
"O discurso de O Quatrilho, predominantemente visual e perceptivo, concentra-se na descrição do imigrante e do processo de colonização. Porém, na particularidade das ideias, nos desejos e nos juízos desse homem, pode-se ver a dimensão universal. Os quadros sucedem-se como numa montagem cinematográfica. Tudo adquire movimento. Sob a fascinação do que se vê, há uma racionalidade que nos liberta no espaço. Outras dimensões estão latentes: a da emoção e do pensamento".
Jayme Paviani, escritor e pós-doutor em Filosofia, parceiro do Matrícula, livro que lançou a geração de Pozenato na literatura
"Ao dar início à trilogia sobre a imigração italiana com O Quatrilho, José Clemente Pozenato apresenta, com hábil sutileza, uma ligeira subversão ao forte catolicismo e aos moralismos históricos da região. A troca de casais, metaforizada com o título de um tradicional jogo de cartas da comunidade rural, revela outra faceta do comportamento social do início do século 20 na região de colonização italiana".
Dinarte Albuquerque Filho, jornalista e poeta, integrante do Matrícula 2, com obras da primeira e segunda geração de escritores da região da Serra
"O Quatrilho é uma história muito interessante, trama muito bem escrita, o que é muito importante em uma narrativa. Porque não adianta a temática ser interessante se o livro não prende o leitor. É por isso que O Quatrilho continua vivo. Além de um livro sobre a imigração italiana, Pozenato trata da construção da identidade daqueles personagens. A obra é marcada não apenas pela luta e sobrevivência, mas pela transgressão na relação entre os personagens, que está no cerne da construção dessa trama".
Regina Zilberman, professora de literatura da UFRGS
Como comprar
A nova edição de O Quatrilho custa R$ 47 e pode ser adquirida pelos telefones 54 3538.5762 e 99138.7551