A aposentada Maria de Fátima Daitx, 64, acordou mal nesta terça-feira (22), com dores no corpo. Moradora do loteamento Jardim Itália, em Caxias do Sul, ela pegou um ônibus pela manhã até o Centro, para uma das sessões de fisioterapia receitadas como tratamento. Na volta, uma surpresa transformou o dia dela: enquanto esperava o ônibus de retorno, na esquina da Rua Visconde de Pelotas com a Hércules Galló, ela notou uma mulher colocando diversas sacolinhas com tomates, cebolas, espigas de milho, ameixas e hortaliças na grade de uma casa atrás da parada. O que Maria não viu foi um cartaz que acompanhava os produtos: "pode levar, são suas", dizia o aviso.
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— Eu até perguntei quanto que saia, porque tinha só R$ 2 no bolso. Quando ela disse que era para pegar, fiquei surpresa. Achei fora de série. Amanheci ruim, fui na fisioterapia e encontrei uma coisa boa. Cheguei em casa e comi seis ameixas — conta.
Maria foi uma das pessoas beneficiadas pelo projeto do Instituto Samba. Há cerca de três meses, integrantes do centro cultural penduram sacolas com frutas, legumes e hortaliças em frente à sede. Tudo é destinado a qualquer pessoa que passar por ali. Conforme Mara De Carli Santos, responsável pela atividade, os produtos são provenientes da própria horta do local e também da chácara dela, no interior de Caxias.
A ideia, porém, não deve ser confundida com uma simples doação: o dia em que os produtos estão disponíveis varia, bem como a quantidade deles, com o intuito de abranger o maior número de pessoas, estimular a convivência entre o instituto e a comunidade e motivar novas boas ações entre os moradores da cidade.
— Há quase 30 anos, eu e meu marido temos uma chácara e a produção sempre foi para o consumo de casa, com o restante entregue a alguma instituição. Quando o instituto abriu, a gente percebeu a parada de ônibus e uma possibilidade de fazer os saquinhos para colocar ali e ver o que acontecia. E foi uma coisa fascinante. Mais do que isso, emocionante — relata Mara.
"Todo dia tem um depoimento, um sorriso"
Segundo Mara, a reação das pessoas inicialmente é de dúvida quanto à possibilidade de levar os produtos de graça. Vencido o receio, porém, logo se desenvolve uma relação entre o instituto e os beneficiários.
— A gente espera que as pessoas vejam, leiam e, às vezes, a gente conversa. E quando um toma a iniciativa, vem todo mundo. A gente esperava que as pessoas levassem, mas não que recebesse tanto em troca de algo que é tão pequeno. Uma sacola é quase nada, não muda a vida de ninguém. Mas todo dia tem um depoimento, um sorriso, um obrigado. Já ganhei mil beijos — conta.
Mara se emociona ao lembrar de algumas experiências que já vivenciou desde o início do projeto: entre elas, a de uma senhora que disse que não tinha o que almoçar até que ganhou uma sacola de verduras; e de uma mãe que, a caminho de visitar filho internado numa clínica, no dia de Natal, acabou levando um saco de pêssegos como presente.
— Um dos dias mais emocionantes também foi próximo do Natal, era época de guabiroba. Eu trouxe um monte, mas pensei que não iam pegar, porque talvez as pessoas nem conheçam mais. E um senhorzinho viu e ficou olhando. Eu perguntei se ele queria, ele disse que não tinha dinheiro para comprar. Eu falei que era pra levar e ele me abraçou tanto... Contou toda a história, que veio dos Campos de Cima da Serra e veio trabalhar aqui, e que lá tinha uma casinha, com um pé de guabiroba — lembra.
Gentileza gera gentileza
O compartilhamento da colheita do instituto faz parte do projeto Samba Verde, uma das atividades previstas para esse ano, focada na preservação do meio ambiente. O formato da ação, no entanto, tem contribuído também para melhorar, um pouquinho, o dia a dia atarefado de quem está acostumado com a rotina da cidade.
— Vivemos numa sociedade individualista, as pessoas não são acostumadas a receber sem que tenham que dar algo em troca. E com uma coisa, nada excepcional, que eu chamo de gentileza urbana, as pessoas se tornam gentis, elas se tornam permeáveis. Esse é um objetivo, não ter dia, não ter a promessa do produto, porque é sempre sazonal, e porque é surpresa. Não vamos criar o hábito, queremos que a pessoa se surpreenda — aponta Mara.
De acordo com Jessica De Carli, filha de Mara e coordenadora do instituto, a ideia é inspirada no conceito de "acupuntura urbana", do arquiteto Jaime Lerner.
— É como a acupuntura do corpo, tu faz uma coisa num pontinho, mas que reverbera no todo. Então, eu acredito em cidades melhores quando a gente pensa pequeno, em fazer pequenas gentilezas urbanas. A gente sonha também em adotar a parada de ônibus, e esses limites de território começarem a se diluir — explica.
Para Mara, os resultados já são claros: a partir do momento em que uma pessoa é tratada com gentileza, ela imediatamente retribui o gesto: até o momento, ninguém se aproveitou do fato de os produtos estarem disponíveis para levar mais do que necessita. Da mesma forma, as pessoas começaram a pensar duas vezes no que realmente precisam antes de pegar os alimentos.
— É uma ação que gera uma reação de igual natureza. Tem pessoas que olham, mas dizem que não vão levar porque têm tomates numa horta em casa, que vão amadurecer logo e tem consciência de que alguém que não tem vai levar. Hoje, um senhor passou e disse que adoraria pegar, mas deixou porque tinha condições de comprar no mercado. A gentileza é tu entender o teu entorno e querer se relacionar com ele. É nisso que a gente acredita.