Quanto tempo é preciso para que um simples pedido mude sua vida? Quantas horas você pensou em alterar o rumo de suas escolhas e desistiu no meio do caminho? Pois Renato Debetio, 60 anos, teve tempo suficiente para reconsiderar as opções erradas da vida e traçar uma nova trajetória. Mas foi em um simples desejo de Natal que ele encontrou uma via diferente. Queria um relógio, ganhou uma nova chance.
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Em dezembro de 2017, quando a reportagem do Pioneiro esteve na casa de passagem São Francisco de Assis, não imaginava que ajudaria a construir uma ponte entre Debetio e o padre Renato Ariotti. Ao ler a reportagem sobre a campanha Se esse Natal Fosso Meu, o padre viu uma história que lhe chamou atenção: uma pessoa com o mesmo nome e que queria um presente simples.
— Quando vi que um Renato, meu xará, queria um relógio, fui atrás para encontrá-lo. Queria dar a oportunidade de fazer um Natal diferente para uma pessoa. Nossa paróquia trabalha no auxílio aos papeleiros, e achei que ele também fosse — conta o pároco da Igreja de Santa Catarina.
Debetio não era papeleiro. Estava imerso nas drogas e sem um lar. Dormiu na rua e, quando não era expulso, passava as noites nas cadeiras do Pronto-Atendimento 24 Horas. Quando teve a oportunidade de participar da campanha, pediu um relógio. Mas não pela beleza do objeto ou para simplesmente ver as horas.
— Quero um relógio para não ter mais atrasos na vida — disse Debetio ao Pioneiro naquele dezembro de 2017.
O atraso começou quando ele ainda era jovem. Aos 20 anos, começou a trabalhar no extinto Bamerindus, depois no Banco Mercantil do Brasil até ser contratado por uma transportadora. Ficou 10 anos na gerência.
Perdeu o emprego e começou a trabalhar com transporte. Primeiro na Visate e, depois, em uma empresa de transporte particular. Aí, veio o álcool, a maconha e, depois, a droga mais pesada.
— Usava cocaína direto, todo o dia para ficar acordado, pois eu trabalhava só de madrugada. E nesse período comecei a ficar dependente e o consumo de álcool aumentou — lembra.
Além de motorista, Debetio fazia esculturas em madeiras. Cuidava da ex-sogra e construiu uma casa no terreno dela, onde morava e fazia sua arte. Em 2016, com a morte da mulher, perdeu o lar. Sem conseguir se livrar das drogas, teve de encarar a rua. E na primeira noite, as lágrimas.
— Fui lá no bairro Esplanada para beber. Não tinha dinheiro e fui a pé. Mas lá eu tinha crédito. Bebi, bebi e bebi. Mas quando eu estava indo para lá, olhei uma caixa de papelão e separei em um canto. Quando voltei, peguei a caixa e me deitei embaixo de uma marquise. Mas chorei demais. Estava muito frio. Não consegui dormir e, na madrugada, fui a pé para o centro.
Debetio passou a noite no Postão. Dormiu sentado. Sempre bêbado ou drogado — ou os dois. Quando era expulso pela segurança, tinha de encontrar outro lugar para esperar a manhã seguinte.
Numa dessas vezes, alguém — que ele nunca mais encontrou — o apresentou ao Centro Pop Rua. Logo foi encaminhado para a casa de passagem São Francisco de Assis, onde dormia e se alimentava. Porém, as drogas e a bebida seguiam.
Veio a reportagem do Pioneiro, o padre e o relógio. E para Debetio, uma nova chance.
Insistência do padre levou Renato à recuperação
Quando o padre Renato Ariotti ligou para a casa de passagem e pediu para falar com Debetio, o motorista achou que era um trote. O pároco pediu que fosse até a igreja, mas ele não aceitou o convite. Naquele momento, Debetio acreditava que, de fato, alguém estava brincando com ele.
Dias depois, recebeu uma visita.
— Eu estava na casa de passagem e me chamaram. Disseram que tinha alguém na frente querendo falar comigo. Que tinha cara de padre — brinca Debetio.
O encontro dos Renatos foi selado com um abraço e a entrega do presente.
No começo do ano, Debetio perdeu a primeira oportunidade de iniciar um tratamento para desintoxicação por conta de uma infecção. A segunda chance, ele agarrou com as duas mãos. Quando ganhou o presente do padre, teve também o apoio e incentivo do religioso para buscar uma vaga na comunidade terapêutica da Pastoral de Apoio ao Toxicômano Nova Aurora (Patna).
— Eu estava na casa de duas mulheres no bairro Reolon. E lá era drogas e bebidas à vontade. Eu não queria mais aquilo. Pensei: "vou morrer".
Após tomar a decisão de largar as drogas, o motorista chegou à fazenda da Patna no dia 31 de janeiro. Ele queria realmente parar de perder tempo:
— Eu não estava de brincadeira. Fiquei até 30 de outubro. Os nove meses. E saí outra pessoa.
Buscar a recuperação fez com que Debetio reencontrasse coisas boas da vida que havia trocado pelo álcool e pelas drogas. Como as filhas. Desde que decidiu que queria o tratamento, ele contou com apoio de Anna Liz Debetio, 24 anos. Bailarina e professora de dança, ela acreditava ter perdido o pai para o vício.
— Me vi obrigada a me afastar dele por causa do alcoolismo. Percebi que ele só me procurava quando precisava de algo. E quando me distanciei, vi que ele sentiu medo de ficar sozinho. Foi aí que caiu a ficha dele. Quando ele decidiu, por conta própria, iniciar o tratamento, me vi com um pai de novo. Voltei a ter aquele pai da minha infância. Foi inexplicável. A gente se aproximou de uma forma. Não como pai e filha, mas como melhores amigos — conta Anna Liz.
"Estou sorrindo. Nem lembro quanto tempo não sabia o que era isso"
Veio a primeira oportunidade de visitar a filha. Depois de seis meses internado, um almoço. Após nove meses de tratamento, a reaproximação de Anna Liz foi determinante para o pai. E para a bailarina, a chance de reconstruir um sonho que a dependência não conseguiu apagar.
— Sempre sonhei em morar com meu pai. Desde que ele morava nos fundos da casa da minha vó. Pedia para ir morar com ele. E se Deus quiser, no ano que vem a gente vai conseguir — afirma a jovem.
Depois de sair da comunidade terapêutica, Debetio vai à missa e participa dos encontros da Patna toda semana. E, principalmente, se mantem longe daquilo que quase causou a destruição completa da sua vida. Ganhou mais que um relógio. Conquistou amigos, reencontrou a convivência com a família e algo que há muito não sabia o que era.
— Eu estou sorrindo. Nem lembro quanto tempo não sabia o que era isso. Eu tinha feito uma amizade com a solidão. E ela mata e destrói. Foram muitos anos. Cada dia é uma conquista. Hoje estou feliz. Dou valor até para o acordar _ garante.
A cura da dependência Debetio nunca terá. Ele sempre precisará ficar vigilante, cuidar para que o vício não vença novamente.
— O passado não se altera, o amanhã é incerto e eu vivo o hoje. Mas tem de olhar o retrovisor para ver de onde tu saiu e o buraco que tu cavou para ti mesmo. Para não acontecer de novo — avalia.
Renato Debetio pode até ter ganho um relógio, mas é impossível cronometrar nele a oportunidade que a vida lhe deu entre o Natal de 2018 e o deste ano. O nome Renato significa renascido. E é assim que ele vive dia após dia.