Uma história de amor que supera a ligação entre mãe e filha foi vivida há pouco mais de um ano por uma família da Serra. Para realizar o sonho da maternidade da filha, Raquel de Fátima Ramos Lorandi, 55, se tornou barriga solidária de Natália, 31, em São Marcos. Henrique, que nasceu em 14 de maio de 2023, em pleno Dia das Mães, é fruto de fertilização in vitro. Ou seja, o óvulo de Natália e o espermatozoide do marido dela, Lucas Poleto, 35, foram transferidos para o útero da avó.
Ainda aos 11 anos, Natália foi diagnosticada com diabetes e, em 2018, descobriu que um dos rins não estava mais funcionando adequadamente. Dois anos depois, soube que estava com insuficiência renal crônica e precisaria entrar para a fila de transplante. Ao mesmo tempo, ela estava em tratamento para engravidar. O desejo era compartilhado com Lucas, mas ela temia perder o bebê, já que os médicos sempre alertaram que seria uma gravidez de risco devido às doenças:
— Eu não conseguiria viver se perdesse o bebê ou ele nascesse doente por minha culpa. O meu marido tinha o sonho de ser pai. Então, disse a ele que não poderia engravidar porque tinha muito medo do que aconteceria com o nosso filho — relembra Natália, que chegou a pensar até mesmo em abrir mão do casamento:
— Pensei que ele poderia seguir a vida dele e em outro casamento realizar esse sonho. Ele me olhou e disse: "se tu não puder gerar um filho, vamos tentar achar um outro meio".
Foi quando surgiu a ideia da barriga solidária. Lucas pensava até mesmo em ir para fora do Brasil se necessário. Quando Natália contou sobre os planos para a mãe, eis que veio a surpresa:
— Ela me perguntou: "e se fosse eu? Se eu tentasse ser a barriga solidária?" Por mais que ela seja uma super mãe, sempre amorosa, eu nunca esperei por isso. Fiquei sem palavras e, depois, uma felicidade imensa invadiu meu coração.
Depois disso, Natália desceu do segundo andar da casa dos pais para o térreo, onde funciona o mercado da família para pedir as opiniões do pai, Marcos Lorandi, 64, e do irmão Marco Aurélio Ramos Lorandi, 24. Os dois não titubearam, concordaram com a ideia e os quatro choraram abraçados. Ao recordar do momento, Raquel conta que sentiu o toque de Deus:
— Quando Deus toca o nosso coração não tem o que fazer, apenas seguir com fé, então eu disse: "filha, a mãe vai ser a tua barriga solidária, e se chegar na hora do parto e for preciso salvar alguém eu quero que salvem meu neto".
A professora aposentada conta que se apegou ainda mais à fé para que conseguisse carregar o neto no ventre:
— Uma mãe faz tudo pelos filhos e eu tenho muita crença em Deus, no Divino Espírito Santo e no padre Pedro Rizzon, que tem uma estátua aqui em casa. Rezamos um terço e a pessoa que começou as orações disse: façam os pedidos. Pedi um rim para a milha filha e um filho para ela.
Gravidez e transplante ao mesmo tempo
No início de setembro de 2020, a família começou a buscar as informações para seguir com o procedimento. Como Raquel já tinha passado dos 50 anos, foi preciso pedir autorização ao Conselho Federal de Medicina (CFM). A aprovação veio e o casal seguiu adiante com o sonho da maternidade, em uma clínica de fertilização de Porto Alegre.
Ao mesmo tempo, Natália seguia o tratamento renal, sendo que a saúde dela começou a ficar mais debilitada em abril daquele ano. Unida, a família decidiu que tudo seria feito ao mesmo tempo e que um apoiaria o outro. Então, em maio de 2021, Natália começou a diálise peritoneal e, no fim do mês, o primeiro embrião foi colocado na mãe dela.
— Quando a mãe engravidou foi uma euforia tão grande que eu contei para o restante da família, pois apenas meus pais, sogros, meu irmão e minha cunhada sabiam. Pouco tempo depois, a mãe perdeu o bebê. Ficamos muito tristes e abaladas. Ela teve que fazer curetagem e, um tempo depois, fizemos mais duas tentativas, mas ela não conseguiu engravidar.
Foi então que o médico decidiu retirar os miomas (tumores benignos formados por tecido muscular) do útero de Raquel. Com isso, ela precisaria esperar cerca de um ano para que ocorresse a cicatrização. Enquanto isso, Natália entrava na fila para o transplante de rim, em outubro de 2021. Ao saberem da história, muitas pessoas a procuraram para oferecer a doação:
— Sabíamos que eu e o Lucas tínhamos o mesmo tipo sanguíneo, mas, com tudo acontecendo ao mesmo tempo, não pensamos nessa opção. Se a mãe engravidasse, eu precisaria de alguém comigo no hospital. Quando começaram a se oferecer, o Lucas se deu conta do tipo sanguíneo e me disse que doaria o rim dele — relembra Natália.
Em junho de 2022, veio a confirmação de que o rim de Lucas era compatível e, assim, ele poderia doar o órgão para Natália. O útero de Raquel, a essa altura, já estava cauterizado e o médico colocou novamente o embrião no fim de setembro. Em 10 de outubro, a família recebeu o exame mais esperado: positivo. Raquel estava grávida.
Oito meses na cama
Depois de perder o bebê pela primeira vez, Raquel e a filha passaram a ir ao médico com mais frequência. Na segunda gravidez, ela teve sangramento novamente. O médico disse que o saco gestacional estava vazio, sem nenhum embrião e que seria necessário esperar cerca de duas semanas para confirmar se a gravidez seguiria adiante:
— Foi desesperador. Voltou todo aquele filme na cabeça. O médico disse para a mãe ficar em repouso absoluto. Duas semanas depois, o bebê apareceu e escutamos o coração dele pela primeira vez. Não tem explicação a gratidão que sentimos naquele momento.
Para realizar o sonho da filha, Raquel teve que tomar muitas medicações e passou por tratamento hormonal. Enquanto ela precisava ficar deitada, Natália passou pelo transplante de rim. O pai a acompanhou durante a cirurgia, realizada em 23 de novembro 2022. A sogra dela, Ivete Poleto, ficou no quarto com Raquel.
— Enjoei durante toda a gestação, mas se tivesse que passar por tudo de novo, eu passaria. O pior foi o medo, porque cada vez que eu ia ao banheiro, meu marido ia junto porque eu tinha medo de ver sangue. Deus é todo poderoso e o Henrique está aqui com a gente agora.
No início de maio, mãe e filha ainda positivaram para a covid-19 e tiveram que ficar isoladas. No dia 11 do mesmo mês, as duas saíram do isolamento e, no dia 14, Raquel teve novo sangramento. O médico, então, pediu que elas se deslocassem para Caxias do Sul. O parto seria realizado no dia 15, mas Raquel, temendo que acontecesse alguma coisa, pediu ao médico para fazê-lo naquela noite. A filha conta que Raquel estava calma e serena, mesmo com a possibilidade de ter que retirar o útero.
Mesmo prematuro, Henrique veio ao mundo saudável, com 42 centímetros e 2,130 quilos e não precisou de incubadora.
— A mãe tinha uma luz. Era uma serenidade e uma plenitude esplêndida. O Henrique nasceu às 22h31min no Dia das Mães. Foi muito especial. Ele nasceu forte e eu cortei o cordão umbilical. Foi o momento mais especial da minha vida — emociona-se Natália.
Durante seis meses, Raquel retirou o leite e o armazenava para que Henrique pudesse beber na mamadeira. As lembranças estão eternizadas em fotos e vídeos que serão compartilhados com o menino quando ele tiver idade para entender a própria história.
Prática é cada vez mais comum no país
A gestação de substituição, conhecida popularmente como barriga solidária, tem se tornado uma prática cada vez mais frequente no Brasil. Não há um levantamento de quantas mulheres já geraram os filhos de outras mulheres mas, segundo o presidente da Associação Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), Álvaro Pigatto Ceschin, a indicação do procedimento vem sendo ampliada.
— Para se tornar uma barriga solidária, a mulher deve ter um grau de parentesco de até quarto grau com uma das pessoas que deseja ter o filho, como mãe, irmã, prima ou tia. No entanto, caso não seja possível, o Conselho Regional de Medicina (CRM) pode conceder autorização para a participação de uma pessoa sem parentesco próximo. Isso é avaliado caso a caso, levando em consideração aspectos éticos e legais para garantir o bem-estar de todas as partes. A cedente do útero deverá ter pelo menos um filho vivo e não pode ter caráter lucrativo ou comercial — esclarece Ceschin.
Ele explica que em 2010, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, em um caso específico, que a barriga solidária não violava a legislação brasileira e poderia ser autorizada em casos excepcionais. Depois disso, a partir de 2013, o Conselho Federal de Medicina, que proibia a prática da barriga solidária no Brasil, revisou a posição e emitiu nova resolução na qual estabelece normas éticas para a reprodução assistida no Brasil, incluindo a gestação de substituição. A legislação tem sido revista, sendo que a última alteração é de 2022:
— A técnica é indicada em diferentes situações: para mulheres que passam pela remoção do útero devido a condições médicas, para aquelas que nascem sem o útero, e também para pacientes que possuem má formação uterina ou doenças graves. Além disso, casais homoafetivos masculinos também se beneficiam desse procedimento.
Nos casos liberados pelo Conselho Federal de Medicina, ambos os casais precisam assinar um termo de consentimento informado na clínica de reprodução assistida que estarão realizando o procedimento. Já nos casos não contemplados pela resolução, o casal, juntamente com o médico assistente, deverá solicitar a liberação do procedimento ao Conselho Regional de Medicina.