A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera a dependência ao alcoolismo uma doença. Especialistas apontam que o uso constante, descontrolado e progressivo da bebida é prejudicial à saúde e pode afetar o convívio com o restante da população. Portanto, para alertar quanto aos malefícios e combater esta doença, foi instituído o dia 18 de fevereiro como o Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo. Em Caxias do Sul, há dois Centros de Atenção Psicossocial — Álcool e Drogas (Caps-AD), cinco grupos de Alcoólicos Anônimos e um Al-Anon, que atende famílias e amigos.
A pessoa que sofre da doença, segundo dados coletados e divulgados pelo Hospital Israelita Albert Einstein, apresenta uma vontade incontrolável de beber, não domina a hora de parar e ingere cada vez. Além disso, sente os efeitos físicos e psicológicos da abstinência, que é a restrição de algo que a pessoa já é dependente, mas que tenta parar.
A psiquiatra de Caxias do Sul Carla Felin explica que a pessoa torna-se um alcoolista pelo uso descontrolado. Contudo, há alguns parâmetros para identificar quando o consumo está em excesso. Segundo ela, todo o consumo de álcool gera risco de sofrer com a doença. Porém, há um limite considerado de "baixo risco":
— Seria 21 unidades de álcool por semana para pessoas do sexo masculino e 14 unidades de álcool por semana para o sexo feminino. Para compreender melhor, 350ml de cerveja (o correspondente a uma latinha normal) têm cerca de 1,2 unidade, enquanto 150ml de vinho representam cerca de 1,5 unidade. Existem algumas escalas que também podem ser utilizadas para identificar prováveis casos de dependência. Podemos citar ainda o conceito de beber em binge, que expressa um padrão de consumo no qual se ingere grande quantidade de álcool em um curto espaço de tempo. Em geral, se considera cinco doses para homens e quatro para mulheres, em um período de duas horas. Uma dose, em média (pois varia de um produto a outro de acordo com o teor alcoólico), equivale a 350ml de cerveja, 150ml de vinho ou 50ml de destilado.
Este segundo formato de consumo, segundo Carla, vem chamando a atenção dos profissionais da área de psiquiatria por estar associado a diversas condutas como homicídios, assaltos, violência doméstica, agressões físicas e violência sexual. E tem sido associado também a um padrão típico de adultos jovens e adolescentes. A profissional destaca que há necessidade de pedir ajuda quando houver um consumo semanal superior àqueles associados ao baixo risco.
— Ao perceber situações como prejuízos no ambiente social, familiar, laboral, entre outros, que levem o consumidor a ter problemas interpessoais, legais, psicológicos e clínicos, é a hora de buscar auxílio — comenta Carla.
Um dia de cada vez
O alcoolista, quando tem a intenção espontânea de parar de beber, pode procurar um método de tratamento junto aos grupos de A.A (Alcoólicos Anônimos). O objetivo é levar uma mensagem de apoio a quem sofre com a doença e se ajudar em grupo. O A.A foi criado nos Estados Unidos, em 1935. No Brasil, o serviço chegou em 1947, sendo que a implantação no Rio Grande do Sul foi em outubro de 1970.
Em Caxias do Sul existem cinco espaços físicos de A.As disponíveis, além de um grupo online. O Grupo Altruísta é o mais antigo na cidade, fundado em fevereiro de 1975. O Al-Anon, que é destinado a orientar amigos e familiares da pessoa com o alcoolismo, é um órgão internacional criado em 1951 e que chegou ao Brasil há 59 anos.
Uma das estruturas físicas é o A.A. Santa Catarina, localizado na Rua Tronca, no bairro Rio Branco, que atende familiares, amigos e a pessoa doente do alcoolismo. Neste grupo participam, em média, 25 pessoas por encontro. O único requisito é o desejo de parar de beber. Não há taxas, inscrições, cadastros ou outra forma de identificação. A pessoa encontra e conhece os pilares do A.A por meio de uma troca de experiência entre os participantes.
— A gente não tem religião, não tem cunho político, não estamos ligados a nenhuma instituição, não temos especialização na área, não temos salário, não tentamos controlar e nem opinamos. Assumimos que somos alcoolistas e estamos em recuperação diária. É um dia de cada vez — conta o coordenador regional de A.A., que preferiu não se identificar.
Ao chegar em um destes grupos pela primeira vez, a pessoa participa de uma reunião, conversa individualmente com a coordenação, conhece os passos, tradições e conceitos que baseiam o trabalho, cada um dividido em 12 pontos. Um deles, inclusive, é garantir o anonimato do frequentador e da equipe voluntária que coordena.
Com o passar do tempo, a pessoa participa de encontros coletivos, pode contar a própria história e vai ouvir os relatos dos demais. O tratamento é constante, para evitar as recaídas. A equipe do A.A. Santa Catarina reforça que os participantes são leigos, pessoas que têm conhecimento da causa e das consequências, por isso se ajudam de forma mútua para manter o controle das próprias vidas.
O coordenador regional tem 51 anos e frequenta o grupo desde 2004. Nascido e criado em Caxias do Sul, vem de uma família praticamente toda de origem italiana. Desde criança teve acesso a uma fartura de bebidas e comidas típicas da origem. Era comum, quando criança, os pais oferecerem refrescos produzidos com vinho tinto, açúcar e água.
— Aos sete anos tomei meu primeiro porre. Meus pais promoviam encontros com amigos e uma hora saíram para fora do ambiente. Eu juntei o pouco de bebida que tinha no fundo dos copos deles, enchi dois copos e tomei rapidamente, o que me deixou embriagado. Aos 12 comecei a beber de forma esporádica e assim fui progredindo — conta ele.
Antes de entrar no A.A. ele não teve um relacionamento amoroso duradouro, devido ao alcoolismo, mas atualmente é casado. Há 20 anos entrou no grupo e está em recuperação. Relata que o primeiro passo é entender e aceitar que é alcoolista. O segundo é acreditar em algo superior, independentemente de religião.
Nos grupos, é comum a maioria ser formada por homens, mas também há mulheres que necessitam de auxílio. No A.A Santa Catarina participa uma caxiense de 74 anos, que é mãe de família, viúva e com formação superior na área da saúde.
— Eu fiz duas faculdades, sou uma mulher com conhecimentos na área da saúde, me aposentei como servidora pública, mas não enxergava a minha doença. Ela me cegou — conta ela, que está em recuperação há 23 anos no grupo.
Da mesma forma que o coordenador, ela começou na infância com o refresco oferecido pela família. Familiares também eram alcoolistas, mas acreditavam que só tinha a doença quem bebia cachaça. Pensavam que tomar uma cerveja que outra era normal. Por isso, começou cedo a consumir. Aos 15 anos, já tomava cerveja com maior frequência. Na maioridade, saía da faculdade ou do trabalho e ia a bares.
Além do mais, a mulher encontrou um marido parceiro na bebida e o casal "aproveitava" quase todo dia. Não percebia que o consumo estava se tornando frequente e descontrolado. Chegou ao ponto de um dia não se lembrar de como havia chegado em casa depois de uma noite de consumo. Com a morte do marido, a situação se agravou, até que ficou doente.
— Eu tinha um médico com quem me consultava com frequência. Mas naquele dia fiquei internada, pois veio outro profissional, já que o meu estava viajando. Esse homem chegou e me disse que meu problema estava relacionado a bebida. Olhou para mim e me chamou de bêbada. Fiquei com muita raiva. Mas ele me entregou um papel para que eu o procurasse caso quisesse ajuda — conta.
Depois que saiu do hospital, decidiu procurar o médico e recebeu a orientação para participar do A.A. Junto com o irmão, ingressou no grupo e, por três anos consecutivos, foi todos os dias para as reuniões:
— Eu sigo até hoje porque não quero mais aquela vida para mim. Eu paro e penso como que eu, uma pessoa estudada, com formação profissional na área da saúde, não me dei conta desta doença?
O A.A é autossuficiente. Os próprios frequentadores, quando têm condições, auxiliam no pagamento do aluguel dos espaços, fazem viagens de encontros com frequentadores de outros Estados e custeiam as despesas de manutenção mensal. A equipe não aceita doações de outras pessoas ou entidades.
Famílias inteiras sofrem com o alcoolismo
O álcool consumido de maneira excessiva limita a funcionalidade da pessoa e pode torná-la agressiva. Porém, mesmo nessas condições, algumas pessoas não aceitam que são alcoolistas. A reportagem localizou uma família dilacerada pelo consumo de bebidas do pai. O homem de 64 anos não aceita que tem o vício. A família, que já morou em diversos bairros da Zona Norte, era composta pelo pai, a mãe de 63 anos e quatro irmãos. Os filhos têm entre 32 e 44 anos. O casal é separado há cerca de 30 anos e apenas o filho mais velho manteve contato com o pai.
O rapaz conta que o pai consome álcool desde a adolescência. O homem foi um dos construtores civis mais procurados para erguer casas antes em Caxias do Sul nos anos 2000. Contudo, o filho lembra que a bebida o tornou agressivo e sem condições de continuar trabalhando de forma correta. Ainda na adolescência, o filho relembra de várias discussões entre os pais. Numa delas, o homem agrediu a mulher fisicamente e disparou com uma arma de fogo contra o local onde estavam os filhos:
— A gente estava dormindo, ele chegou bêbado, bateu na minha mãe e a deixou bem machucada. Ele colocava a cabeça dela na privada e puxava a descarga. Depois, com uma espingarda, atirou na parede, só que a gente estava dormindo atrás dessa parede. Atirou contra nós.
Os filhos registraram boletins de ocorrência. Devido às agressão, a mulher se separou do marido. Mesmo assim, ele seguiu tendo contato com a família e voltou a agredir a ex-companheira. Desta vez, ela precisou de internação hospitalar devido à gravidade dos ferimentos. Depois disso, teve uma segunda família e um quinto filho. No entanto, pelas mesmas circunstâncias, voltou a se separar.
— O meu irmão por parte de pai não aceitava que ele batesse na mãe dele. Durante uma discussão ele esfaqueou o meu pai e o expulsou de casa — conta o filho mais velho.
Mesmo diante de todas essas situações, o homem não aceita que é alcoólatra e nunca procurou ajuda, conforme o filho. Atualmente, ele precisa "fazer bicos" para se sustentar. Graças aos anos trabalhados como pedreiro, de coletor de lixo e participante de movimentos sindicais em Caxias, conquistou muitos amigos. Hoje, mora em uma casa cedida pelos amigos e recebe a visita apenas do filho mais velho. Os demais, além dos netos, não costumam ter esse contato. O primogênito tentou conversar com o pai, mas ele não aceita receber ajuda para combater o vício.
— Eu pago o plano funerário dele e espero ele morrer. É isso que vai acontecer mais cedo ou mais tarde, porque ele não vai mudar — afirma o filho.
Nenhum dos quatro filhos do primeiro casamento do pai costuma consumir bebidas alcoólicas. O mais velho conta que todos tem consciência que a bebida trouxe desgosto para a mãe e que, portanto, preferem evitar.
Caxias do Sul tem dois espaços para atendimento via SUS
Caxias do Sul tem um serviço exclusivo para a população alcoólatra no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps-AD): o Reviver e o Novo Amanhã (veja os endereços abaixo). O atendimento é via Sistema Único de Saúde (SUS), de forma gratuita para o dependente. A diretora técnica da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), Luciana Lunardi, explica que o Caps-AD atende a adolescentes e adultos. A maior parte são homens com problemas de dependência cruzada. Ou seja, viciados tanto em álcool como em drogas.
Os centros disponibilizam uma equipe multidisciplinar e oferecem desde consultas médicas e psicológicas, como oficinas e atividades práticas em grupo para combater o consumo. Luciana comenta ainda que há 24 leitos disponíveis para a desintoxicação.
— Em alguns casos, em que não há riscos clínicos, a pessoa pode passar até 14 dias internada em um dos centros para desintoxicação, porém de forma voluntária. Esse período serve para ela ficar longe do vício e baixar a poeira em relação a problemas familiares comuns aos dependentes. Porém, a gente não pode forçá-los. Eles ficam se quiserem e vão embora quando quiserem.
O atendimento do Caps também é baseado na vontade do usuário de álcool ou de drogas. A diretora técnica explica que muitas pessoas tem o entendimento que a equipe pode obrigar a pessoa a ser internada. Porém, não há essa competência. A internação compulsória só é possível quando a família procura o Caps e, por meio de um pedido judicial, é encaminhado para avaliação psiquiátrica. Caso esse profissional verifique a necessidade, o dependente é encaminhado para internação. No entanto, Luciana relembra que esse é o último recurso. Antes da internação, é feita uma busca ativa dessas pessoas e é oferecido o atendimento do Caps.
— Não é possível fazer um levantamento de quantas pessoas são atendidas, porque muitas vêm só na primeira consulta e não retornam. Mas não são raras as que seguem o tratamento proposto e aderem aos atendimentos.
A diretora explica que a busca espontânea pelo atendimento do Caps ocorre quando a funcionalidade da pessoa está afetada. A percepção da profissional, que trabalha há 16 anos na área, é que o alcoólatra não percebe a dependência até que consiga trabalhar e atender as demandas diárias normalmente.
Como saber se sou alcoolista?
De acordo com o Ministério da Saúde (MS), ao responder qualquer uma das seguintes perguntas de forma positiva, você tem sinais de dependência e deve procurar ajuda médica:
:: Você já sentiu que deveria diminuir a bebida?
:: As pessoas já o irritaram quando criticaram sua bebida?
:: Você já se sentiu mal ou culpado a respeito de sua bebida?
:: Você já tomou bebida alcóolica pela manhã para "aquecer" os nervos ou para se livrar de uma ressaca?
Procure ajuda
Caps Reviver
:: Onde fica: Av. Júlio de Castilhos, 3.401, bairro Cinquentenário
:: Atendimento ao público: 24 horas.
:: Telefone: (54) 3901.1302
Caps Novo Amanhã
:: Onde fica: Rua Bangu, 1.567, bairro Universitário
:: Atendimento ao público: 24 horas
:: Telefone: (54) 2101.0555