O cheiro do almoço pronto atravessa a casa entrando em todos os cômodos, mas a pequena Laura Becker, de 10 anos, precisa esperar, pelo menos, mais 15 minutos para, enfim, sentar-se à mesa. A rotina antes de cada uma das refeições é a mesma: primeiro a aplicação de insulina e o tempo de espera para depois comer. Diagnosticada com diabetes tipo 1, a menina que mora no bairro Esplanada, em Caxias do Sul, é uma entre as 130 crianças e adolescentes cadastrados no Sistema Único de Saúde (SUS) com o diagnóstico de diabetes. O dado reúne todos os tipos da doença, sendo, entre as crianças, o tipo 1 o mais comum.
Dentro da rotina voltada para os cuidados com a alimentação regrada, está o desafio do convívio diário em ambientes rotineiros, como a escola, por exemplo. Segundo a mãe, Aline Becker, atividades em sala de aula, que envolvem alimentação, e a própria merenda escolar se tornaram motivos de preocupação desde quando a filha foi diagnosticada, aos sete anos.
A necessidade de aplicação de insulina a cada refeição de Laura e os cuidados necessários para que a menina não tenha convulsões ou sofra consequências da alta glicemia no organismo fizeram com que Aline deixasse o trabalho como analista de RH para se dedicar totalmente à filha. Atualmente, a mãe faz trabalhos pontuais como faxineira para ter um tempo maior dedicado a Laura e também uma renda mensal.
— Por lei, as escolas não têm a obrigação de prestar esse atendimento às crianças com diabetes, mas é essencial que haja a informação. Muitas pessoas não entendem que não é "só uma balinha", não é "só um pedacinho". Aquilo pode fazer minha filha ser internada. Ao mesmo tempo, quando tem atividade com alimentos, as crianças com diabetes acabam ficando de fora porque nunca tem algo só para elas ou fazem algo sem a informação de que aquilo também não é orientado para a alimentação delas. Eu larguei o emprego pela minha filha, para ter certeza que ela seria cuidada, mas e quem não tem essa alternativa? — questiona Aline.
Entre as atividades em sala de aula envolvendo comida, a mãe lembra de uma específica. Na ocasião, foi organizado um momento de cinema com pipoca caramelizada para os estudantes. Sem terem a informação sobre o que Laura pode, de fato, comer, separaram pipoca salgada para a pequena.
— Muitas vezes insistem para que ela aceite, mesmo ela dizendo que não pode. Isso acontece por não ter a informação sobre o que ela pode comer. É difícil na nossa própria família conseguir evitar que deem comidas para ela, e até entendemos porque é uma criança e as pessoas querem agradar. Na atividade de cinema, a pipoca, que apesar de parecer inofensiva, é rica em carboidrato e isso é totalmente prejudicial para ela. Aquele dia ela guardou a pipoca e trouxe para casa porque "tinham feito para ela", então, ela não podia recusar — diz a mãe.
Segundo Aline, o essencial para o convívio de crianças com diabetes em ambientes diversos, como a própria escola, é que haja, principalmente, informação.
— Vemos como falta esse conhecimento sobre diabetes e sobre os riscos dessa doença, ainda mais no caso de crianças. Seria necessário que as pessoas tivessem um treinamento para entender essas crianças, entender do que elas precisam e como podem ser cuidadas — pontua Aline.
O desafio da aplicação de insulina
Além da falta de informação mencionada pela mãe, a filha enfrenta outro desafio quando está longe de casa: a dificuldade para receber a aplicação de insulina. Como a injeção precisa ser aplicada antes de todas as refeições, quando Laura precisa comer, Aline é chamada até a escola para cuidar da filha.
A mesma dificuldade é enfrentada por diferentes famílias do município, principalmente por pais que não tem como ir até os filhos prestar atendimento. Segundo Michele Silva Vinholla, a falta de pessoas para prestar apoio ao filho Miguel Vinholla Parizote, oito, foi o que a fez ensinar o menino a aplicar a insulina no próprio braço.
— Descobrimos o diagnóstico quando o Miguel tinha três anos, hoje ele tem oito. No primeiro ano de escola, quando ele estava com apenas quatro aninhos, eu consegui acompanhar. Ia até a escola, prestava o atendimento e cuidava dele. A glicose do Miguel é bem complicada e, por isso, é difícil me sentir segura o suficiente para deixá-lo sem atenção. Como na escola ninguém pode aplicar insulina, ele mesmo se aplica. Isso, como ele só tem oito anos, faz com que ele acabe ficando com "calombinhos" na região da aplicação. A glicose fica desregulada, eu não tenho como acompanhar ele e também não tenho quem faça isso, então é uma situação bem complicada — afirma Michele.
Para a mãe, seria essencial o olhar de órgãos públicos para crianças com diabetes. Conforme ela, o filho não é portador de deficiência, entretanto, por não estar entre os portadores de deficiência, muitas vezes acaba ficando desamparado por órgãos públicos.
— Como ele não é portador de deficiência, ele acaba não tendo todo o apoio que deveria ter. Seria ideal alguém que pudesse prestar esse atendimento nas escolas, porque nós como pais ficamos inseguros. Muitas vezes o Miguel chega em casa com hipoglicemia ou hiperglicemia e isso é muito arriscado. Meu filho está na 3ª série e é super inteligente, mas acabamos ficando inseguros de mandar ele para a escola pela falta de atenção. A escola, por outro lado, sempre entra em contato quando ele está com qualquer dorzinha, mas ainda assim, falta um olhar dos órgãos públicos para que alguém dentro das escolas possa prestar esse atendimento e cuidado aos nossos filhos — pontua a mãe.
Para Marina Gazzi Pacheco, a maior dificuldade também está na falta de informação e conscientização dentro do ambiente escolar. Mãe de Caetano Gazzi Brandalise, sete, ela chegou a solicitar uma monitoria para acompanhar a evolução da glicemia do filho ao longo do dia e também pudesse fazer a aplicação da insulina antes do lanche. A solicitação foi negada pela escola.
— Estou sempre aflita e com o coração na mão. Houve episódios de hipoglicemia e não foi feito nada. Essas alterações de glicemia atrapalham no desenvolvimento e na aprendizagem dele. A maior dificuldade que enfrentamos é a falta de empatia por parte das pessoas. Seria essencial que houvesse um monitoramento diário na alimentação para manter a glicemia dele e das outras crianças dentro da faixa e, o processo para que haja esse monitoramento, é muito complexo — explica Marina.
A medição da glicose
Outra dificuldade enfrentada pelas mães é relacionada ao método de medir a glicose. Conforme explica Aline, mãe de Laura, o tradicional furo no dedo não é tão eficaz quanto um sensor. O dispositivo é aplicado na parte superior do braço e permite a leitura da glicose no organismo a cada minuto e armazena dados de até oito horas.
Apesar da eficácia, o sensor descartável e à prova d'água precisa ser trocado a cada 14 dias. Quando colocado no braço, fica preso por um adesivo e, por meio de um aparelho recarregável, a leitura da glicose é feita.
— Entre 80 e 140 a glicose está em nível ideal. Nos grupos de diabetes tipo 1 tem o que chamamos de "unicórnio", que é quando a glicose marca o número 100. Sempre comemoramos quando chegamos nesse número. A Laura ganha o sensor por doação de famílias, porque é um sensor caro, que custa mais de R$ 200 — explica Aline.
Além disso, com o sensor, a mãe da pequena consegue acompanhar o histórico de glicose no organismo da filha e, desta forma, evitar que a menina tenha alguma complicação.
— Fora que a medição feita pelo sangue, com o furo no dedo, mostra como está a glicemia somente naquele momento. Enquanto o sensor mostra as últimas oito horas e tem indicadores mostrando se a glicose está subindo ou descendo rapidamente, ou se está estável. Esse controle o outro tipo de medição não faz — conta Aline.
Em algumas cidades do Brasil, o sensor é distribuído pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o que não ocorre em Caxias.
— Nós queríamos conseguir algum apoio também nesse sentido. Medir a glicose pelo furo no dedo não tem a mesma eficiência do sensor, além de não podermos furar tantas vezes ao dia e ter um cuidado ainda maior. Tiveram dias, antes da Laura receber o sensor, que furávamos o dedo dela seis vezes por dia, é um processo doloroso para uma criança — conta Aline.
Pela falta de uma pessoa autorizada a fazer a medição da glicose nas escolas, Daia Borges, mãe de Enzo Borges, sete, ensinou o pequeno sobre o processo. Quando ele está sem o sensor, mede com o furo no dedo. Caso a glicose esteja baixa, o menino avisa os professores, que deixam ele se alimentar com o lanche especial, que a mãe envia para o filho.
No caso da glicose alta, o pequeno fica com a vista embaralhada e, conforme os sintomas que apresenta, a escola entra em contato com a família para que ele receba os cuidados.
— Não deixam acontecer nada com ele porque sempre entram em contato. Se tem alguma dúvida, ligam para mim ou meu marido. Eu trabalho perto da escola e, assim que ligam, eu vou até lá. Se ele está bem, ele continua na escola, se não está, ele volta comigo. É uma rotina corrida por não ter essa medição e nem a aplicação da insulina na escola — afirma Daia.
Riscos e cuidados com a diabetes tipo 1
De acordo com a nutricionista Gisele Schmoeller, a diabetes tipo 1 pode ser considerada uma doença autoimune, porque, no tipo 1, as células de defesa do organismo atacam as enzimas de insulina e, por consequência, o organismo deixa de produzir insulina ou produz de forma insuficiente.
— Nesse caso, o paciente precisa fazer uso de insulina, onde entram as injeções, que devem ser aplicadas antes ou depois das refeições. Normalmente são aplicadas após as refeições, para equilibrar os níveis de insulina no corpo. Elas são aplicadas porque, como o organismo não produz essas células de insulina, quando comemos, a glicemia aumenta e fica no organismo. Por isso o paciente precisa ter a insulina aplicada; para reduzir os níveis de glicemia — explica Gisele.
Quando a insulina não é aplicada nos pacientes, o corpo pode chegar ao quadro de hiperglicemia. O quadro não está somente relacionado à falta da aplicação, como também a níveis de estresse, sedentarismo e medicamentos. Conforme a nutricionista, nestes casos, os pacientes podem ter tonturas, tremores, dores de cabeça, enjoo e, em alguns casos, desmaios.
Outro agravante da doença é o quadro de hipoglicemia, quando o paciente fica com baixa de glicemia, trazendo sintomas como tremores, palpitações, sudorese excessiva em forma inicial. O caso de hipoglicemia pode levar à diminuição da consciência, fome excessiva e necessidade de intervenção médica.
— Pode ocorrer pela pessoa ficar muito tempo sem comer ou ter consumo insuficiente de glicose. Para que haja melhora dos sintomas, é preciso agir com alguns aspectos, como a própria aplicação da insulina ou consumo de alimentos, a depender de cada caso. Se a pessoa fica muito tempo no estado de hipoglicemia, sem ação para regular, em casos mais graves o paciente pode ter perda de consciência e até mesmo morte cerebral. Isso acontece porque o cérebro precisa dessa oxigenação e de glicose para trabalhar — explica a nutricionista.
Com relação aos cuidados necessários para a alimentação, os carboidratos exigem atenção maior no caso de pessoas com diabetes. Como explica a nutricionista, os carboidratos se tornam açúcar no organismo depois de consumidos e agem rapidamente na corrente sanguínea. Isso faz com que o corpo tenha um pico elevado de glicemia e precisa haver uma ação para a redução.
— Os cuidados também precisam estar no consumo de frutas, aquelas mais doces. Então, frutas em forma de geleia, frutas secas, bananas ou laranjas tem um teor de frutose maior e influência no agravamento da diabetes. Isso não quer dizer que o paciente não possa consumir, mas que deve ter cautela e equilíbrio para evitar os picos de glicemia — pontua Gisele.
Iniciativas públicas
Um projeto de lei tramita na Câmara dos Deputados, em Brasília, para classificar a diabetes tipo 1 como deficiência. A iniciativa é para que pessoas diagnosticadas com a doença recebam atenção, assim como pessoas com deficiência. Conforme a proposta, no Brasil cerca de 16,8 milhões de pessoas vivem com diabetes. Dessas, 564 mil são do tipo 1.
O projeto está em processo de ser concluído e será analisado pelas comissões de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência; de Seguridade Social e Família; e de Constituição e Justiça e de Cidadania.
A Secretaria Municipal de Educação de Caxias afirmou em nota que um encontro com as mães está marcado para o dia 6 de setembro para avaliar as demandas. A Secretaria Municipal da Saúde informou que o sensor não “está contemplado no rol de produtos fornecidos pelo SUS pelo Estado ou pelo Ministério da Saúde” e que um estudo sobre a possibilidade de fornecimento está sendo feito, custando cerca de R$ 1 milhão ao ano.
A Saúde mencionou que o SUS fornece fitas e lancetas para controle da glicose, bem como insulina. Sobre profissionais de saúde para a aplicação de insulina em ambiente escolar, a “demanda ainda não foi recebida oficialmente pela SMS” para ser avaliada.