Uma demanda histórica e que parece ser invencível. Assim pode ser descrita a fila de espera por cirurgias eletivas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em Caxias do Sul. Ao todo, são 9.902 procedimentos deste tipo represados na cidade. Segundo dados apurados pela Secretaria Municipal da Saúde (SMS), por solicitação da reportagem, a cada mês, em média, 270 novos pedidos são autorizados no maior município da Serra. São atendimentos que podem ser postergados sem colocar o paciente em risco no momento, mas cuja demora tira a qualidade de vida, pode agravar sintomas e gerar ainda mais angústia aos envolvidos.
O assunto, recorrente no cenário da saúde pública da cidade, voltou ao enfoque nas últimas semanas após a suspensão temporária do serviço nos hospitais Pompéia e Geral por conta da falta de leitos. Os procedimentos, segundo a secretária Daniele Meneguzzi, devem ser retomados gradativamente a partir da semana que vem.
Ao mesmo tempo que cerca de 270 novos procedimentos mensais são autorizados na cidade, a secretária pontua que outros 1.060 são realizados, por mês, nos hospitais Geral, Pompéia, Virvi Ramos e Círculo. A contagem inclui cirurgias de urgência e as que podem ser postergadas.
— Existe uma fila, sim, mas existe, também, uma produção, ou seja, um número de procedimentos feitos. É importante pontuarmos isso, porque as pessoas veem essa fila gigante e podem achar que nada acontece, que as cirurgias não andam. Temos uma média de 270 laudos autorizados por mês. Já os hospitais realizam 1.060 procedimentos mensais, incluindo urgentes e os eletivos. Mas, infelizmente, hoje, com as condições que nós temos, é uma fila difícil de ser vencida — ressalta a secretária.
Não há uma contagem por parte da SMS, de acordo com Daniele, de quantos pacientes deixaram de ser atendidos desde o último dia 7, quando foram suspensas as cirurgias eletivas Contudo, o número diminuiu em relação ao levantamento divulgado no dia 13 de junho —não foram interrompidos os procedimentos de cardiologia, oncológico e vascular.
Na ocasião, havia na fila 7.760 pessoas de Caxias e 2.314 de outras cidades da Serra, totalizando 10.074 pessoas. Ou seja, 172 pacientes a menos do que os 9.902 procedimentos represados atualmente. Desse total, 7.731 são de pacientes de Caxias e outros 2.171 são de outros municípios.
A traumatologia lidera a demanda caxiense, com 2.209 cirurgias em espera. Em segundo lugar, está a cirurgia geral (1.892) e, em terceiro, ginecologia (585) - veja mais abaixo.
O que são cirurgias eletivas
São procedimentos de média e alta complexidades, que não precisam de operação imediata ou em curto prazo, como pequenas cirurgias, cirurgias de pele, tecido subcutâneo e mucosa, cirurgias das glândulas endócrinas, cirurgias do sistema nervoso central e periférico, cirurgias das vias aéreas superiores, da face, cabeça e pescoço, cirurgias oftalmológicas e oncológicas, cirurgias do aparelho circulatório e digestivo e cirurgias do aparelho osteomuscular.
Por que este é um problema histórico?
A secretária Daniele opina que dois fatores colaboraram para o agravamento da fila nos últimos tempos: a suspensão das cirurgias durante o período mais grave da pandemia e a capacidade hospitalar da cidade que não avançou com o passar do tempo, mesmo diante do aumento populacional e da migração de pacientes privados para o sistema público de saúde.
— Ficamos quase dois anos sem realizar procedimento eletivos. A fila, que já era grande, ficou ainda maior e mais difícil de ser vencida. E por que já começamos a pandemia com fila? Porque Caxias tem um limite de realização de procedimentos, de acordo com o número de leitos, com o número de salas cirúrgicas, com a disponibilidade das equipes médicas... Os nossos hospitais vêm trabalhando no limite há muito tempo — justifica Daniele.
Outro fator pontuado pela titular da SMS é o financeiro. Ela diz que mesmo que os hospitais abrissem mais procedimentos, não haveria recurso disponível para custeá-los, reduzindo a fila de espera:
— Porque o nosso Teto MAC, que é o recurso que vem do governo federal para pagar os procedimentos de alta e média complexidade, tem uma defasagem que só no ano passado foi de R$ 34 milhões — acrescenta a secretária.
E quais são as soluções?
Para a secretária da Saúde de Caxias do Sul, é preciso que se repense, com urgência, o fato da cidade ser referência para 49 municípios da chamada Macroserra. Ela entende que a alta complexidade precisa ser dividida e melhor estruturada.
— Caxias não suportará, por muito mais tempo, ser a única referência para algumas especialidades. É muito importante que o Estado busque habilitar outros hospitais para altas complexidades para que isso possa ser dividido. Se medidas não forem tomadas, essa fila será cada vez maior — avalia Daniele.
Presidente da Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Câmara de Vereadores, Olmir Cadore (PSDB), defende que o município precisa comprar procedimentos para reduzir a fila. Ele também opina que é preciso pressionar o governo federal, tanto na oferta de recursos quanto na agilidade de habilitação dos novos leitos do Hospital Geral (HG). O parlamentar compõe uma comitiva de 16 pessoas que está em Brasília para tratar deste e de outros assuntos sobre a saúde da cidade.
— Acredito que poderíamos sim comprar cirurgias. Esta seria uma das saídas. É claro que esbarramos no fator financeiro, que é a desculpa de sempre. Mas alguma solução tem que ser feita — diz o vereador, mencionando Bento Gonçalves como um exemplo a ser seguido.
A cidade vizinha realizou uma força-tarefa, em 2022, para reduzir a demanda reprimida na pandemia, assinando contrato com hospitais como o São Carlos e o São Pedro. Na época, a meta era atender pacientes que estavam na fila desde 2016. Os atendimentos avançaram ao longo do ano.
"Sinto dor nas costas, na barriga, além do meu psicológico que abalou muito"
Há alguns meses, os analgésicos e as cintas abdominais são aliados na rotina da dona de casa Maria Regina Mentes Soares, 62 anos. Embora não possam ser descritos como companheiros agradáveis, são estes itens que trazem um pouco mais de conforto aos dias da moradora do bairro São Victor Cohab. É que desde o ano passado, Maria lida com os sintomas de uma hérnia no abdômen — o problema surgiu, de acordo com ela, semanas depois de uma operação no intestino, em novembro, para retirada de um tumor.
— Eu coloco a cinta quando levanto e só tiro quando vou deitar. É muito desconfortável ficar apertada o dia inteiro. Sinto dor nas costas, dor na barriga, além do meu psicológico que abalou muito. Eu estou com essa cirurgia liberada desde o dia 22 de fevereiro — conta Maria.
A paciente avalia que a espera é angustiante. Com medo de ficar doente e não poder fazer a cirurgia quando for chamada, ela diz que tem evitado momentos de lazer, de interação com outros familiares, se preservando dentro de casa.
— Deixei de sair para evitar de pegar uma gripe, uma sinusite, até covid... estou só em casa desde agosto do ano passado (quando foi diagnosticada com câncer). Podem me ligar amanhã ou depois para baixar o hospital e tenho que estar bem. Fico naquela expectativa, estou com a bolsa pronta desde fevereiro — ressalta.
A SMS informou, via assessoria de imprensa, que Maria tem laudo emitido e aguarda marcação do procedimento no Hospital Geral. Contudo, não foi comunicada nenhuma data para realização da cirurgia da moradora do bairro São Victor Cohab. Cada laudo tem duração de um ano, podendo ser renovado quantas vezes forem necessárias após o prazo expirar.
Débora recebeu o diagnóstico em 2021, porém não está na fila
Uma das pacientes que aguarda por um procedimento eletivo via SUS em Caxias é a auxiliar de cozinha Débora de Cássia da Silva Freitas, 41 anos. Ela conta que recebeu o diagnóstico para cirurgia de retirada do útero em maio de 2021. A moradora do bairro Bom Pastor lembra que os sintomas se intensificaram após a laqueadura realizada depois do nascimento do terceiro filho há seis anos:
— Foi identificado que eu tenho um nódulo dentro do meu útero. Tem meses que eu sangro muito, tenho cólicas insuportáveis. É um sangramento escuro, tem mau cheiro. Parece que tem algo apodrecendo por dentro. Todo mês é uma função, só Deus sabe o que eu estou passando — relata Débora.
A auxiliar de cozinha diz que nem mesmo os dois carimbos de urgência colocados pela médica que solicitou o procedimento foram capazes de agilizar o atendimento. O que resta é esperar, enquanto o corpo corre o risco de ficar cada vez mais adoecido e a cabeça se enche de dúvidas.
— Eu me sinto desamparada, fico com uma sensação de impotência, sabe? Sempre que o telefone toca eu saio correndo porque acho que pode ser do Draca (Departamento de Avaliação, Controle, Regulação e Auditoria, que emite a autorização de cirurgias eletivas) ou do posto mesmo dizendo que a cirurgia foi encaminhada. E como eu já tirei um nódulo do seio, tenho medo que isso se transforme em um câncer. Eu tenho três filhos e aí como que eles vão ficar sem a mãe? É triste, porque tu pensa muitas coisas — avalia a moradora do bairro Bom Pastor.
Sobre a situação de Débora, a SMS informa que "a paciente está em acompanhamento clínico, ainda sem laudo para cirurgia". A auxiliar de cozinha necessita passar por uma consulta especializada no ambulatório de cirurgia ginecológica para, então, receber o laudo e entrar na fila de espera pelo procedimento.
Total de pacientes à espera:
Fila das cirurgias eletivas - pacientes de Caxias do Sul
Bucomaxilo: 200
Cabeça/pescoço: 148
Cardiologia: 198
Cirurgia geral: 1.892
Cirurgia pediátrica: 443
Cirurgia plástica: 241
Cirurgia torácica: 152
Ginecologia: 585
Mastologia: 199
Neurologia: 120
Oftalmologia: 61
Otorrinolaringologista: 177
Proctologia (especialidade que trata doenças do intestino grosso, reto e ânus): 242
Traumatologia: 2.209
Urologia: 403
Vascular: 461
Total: 7.731
Fila das cirurgias eletivas - pacientes de outros municípios
Bucomaxilo: 32
Cabeça/pescoço: 137
Cardiologia: 348
Cirurgia geral: 202
Cirurgia pediátrica: 32
Cirurgia plástica: 85
Cirurgia torácica: 107
Ginecologia: 91
Mastologia: 150
Neurologia: 118
Oftalmologia: 0
Otorrinolaringologista: 14
Proctologia (especialidade que trata doenças do intestino grosso, reto e ânus): 106
Traumatologia: 364
Urologia: 131
Vascular: 254
Total: 2.171
Fonte: Secretaria da Saúde de Caxias do Sul, com dados de junho de 2023.