Há três anos, Jussara Flores de Oliveira, 35, concentra esforços para tirar o nome do temido cadastro do Serviço de Proteção de Crédito (SPC), por meio do pagamento de contas atrasadas, especificamente parcelas de compras feitas em Caxias do Sul. A moradora do bairro Belo Horizonte trabalha como higienizadora e recebe R$ 1,6 mil de salário por mês. O rendimento não representa nem um quarto dos R$ 7 mil de dívidas acumuladas no nome dela após compras feitas por outra pessoa em seu nome.
— Tô renegociando aos poucos, só o dinheiro do trabalho não dá, daí faço coisas pra vender: salgados, pão, cuca... E assim tô me virando — afirma.
Com isso, Jussara entra para as estatísticas que, há pelo menos uma década, se mantêm na média de três a cada 10 moradores inadimplentes em Caxias. Dados mais recentes fornecidos pela Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL), referentes ao mês de maio deste ano, contabilizam 150.790 pessoas inadimplentes no município, o que representa 28,7% da população de 523.716 habitantes (estimativa do IBGE 2021).
A pedido da reportagem, a entidade levantou dados da última década para comparativo, o que demonstrou um aumento de 16% no número de pessoas inadimplentes. Em maio de 2013, eram 130.023 pessoas inadimplentes contabilizadas em uma população estimada em 465.304 habitantes, o que representava um percentual de 27,9%, e que seguiu oscilando perto dos 30% ao longo da última década.
Inadimplência cresce acima do aumento populacional
No relatório apresentado pela CDL, os dados foram contextualizados em informações como o tamanho da população e da chamada PEA (população economicamente ativa), que considera pessoas de 10 a 65 anos. Em 2013, a PEA era de 373.407 pessoas e, em 2023, são 420.283. Nesse recorte, é possível constatar que a inadimplência cresce acima do aumento populacional, que foi de 12,5%.
Um dado que chama a atenção é o aumento proporcional da inadimplência entre as mulheres, acima do crescimento entre os homens. A proporção, que em 2013 era de 48,12% de mulheres para 51,88% de homens, passou para 49,98% de mulheres e 50,02% de homens.
A renda média da população também foi considerada no levantamento. "Em 2013, o caxiense ganhava, em média 3,3 salários mínimos, que era de R$ 678. Ou seja, o caxiense em 2013 ganhava em média pouco mais de R$ 2 mil. Em 2023, o caxiense passou a ganhar em média 2,7 salários mínimos, o que representou uma queda de 18%, porém, com os aumentos do salário mínimo ao longo do tempo, o rendimento médio teve um crescimento de 59%, passando para R$ 3.564,00, considerando que, em 2023, o salário mínimo foi definido em R$ 1.320".
— Mesmo com o aumento no rendimento médio, estamos vendo este número (da inadimplência) continuar a crescer. Se olharmos pelo aspecto de que tivemos uma pandemia no meio disso tudo, podemos até ficar otimistas e com a sensação de que não está bom mas poderia estar pior. Por outro lado, tivemos 10 anos para aprender a gerenciar melhor as nossas finanças e a lidar com as ofertas de crédito, e falhamos nas duas — avalia o coordenador de Tecnologia, Informação e Inovação da CDL Caxias do Sul, Cleber Figueredo, que assinou o relatório.
Redução de poder de compra e de empregos influencia o cenário
A diferença de 80% no Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), oficialmente considerado como indicador da inflação no país, é também mencionada no relatório da CDL. Para a professora e economista Jacqueline Maria Corá, o dado é fundamental para análise do cenário, tendo em vista o impacto que gera o poder de compra da população.
— Em termos absolutos, temos aumento de renda, mas há que se considerar na análise a inflação, que encolhe o poder de compra — destaca a especialista.
Se aplicada a correção do IPCA, no comparativo com o salário mínimo de 2013, o salário mínimo deste ano chegaria a R$ 4.041,50. Por isso, de acordo com a economista, com essa contextualização, o rendimento médio da população trabalhadora diminuiu.
Outro dado que ela considera importante relacionar é o referente ao número de empregos, uma vez que, em uma análise mais ampla, a PEA representa o potencial de mão de obra, e o grupo é impactado pela redução no número de empregos nos últimos 10 anos.
O relatório do Desempenho da Economia Caxiense, produzido pela Câmara da Indústria Comércio e Serviços (CIC) de Caxias do Sul, indicava 186.310 pessoas formalmente empregadas na cidade em abril de 2013, sendo 95 mil no setor da indústria e construção civil. Já o relatório de abril deste ano aponta 160.895 pessoas com vínculo formal, sendo 75 mil no setor da indústria e construção Civil.
— Estamos falando em queda de 14% no número de empregos. Aumentou a população, mas reduziu o número de vínculos empregatícios, e onde estão essas pessoas? Elas precisam de renda para consumir, para sobreviver, então temos aumento de MEIs (microempreendedores individuais) e empreendedores por necessidade. Em todas as épocas de crise aumenta o número de pessoas que migram pra outras atividades, formalizados ou não, como autônomos, para obter renda. Não é exatamente abrir mão de emprego para implementar um sonho, abrir o próprio negócio, vão empreender como forma de sobrevivência, o que impacta na renda e níveis de endividamento — conclui.
Conforme dados do Ministério da Fazenda, em 31 de maio deste ano o sistema de recolhimento simplificado do MEI registrava 45.519 optantes em Caxias do Sul. O número é quase cinco vezes maior do que o registrado há 10 anos, na mesma data em 2013, quando eram registrados 9.137 optantes.
Uma população que envelhece com dívidas
Conforme dados levantados pela CDL, os devedores com 40 anos ou mais passaram de 37,4% em 2013 para 52,7% em 2023, representando atualmente mais da metade do total de pessoas inadimplentes no município. Para Figueiredo, este deslocamento pode ser justificado por uma manutenção dos devedores ao longo do tempo.
— Muito provavelmente, a maioria dos devedores de 10 anos atrás continua na base de devedores e, assim, passou mais de uma década com o nome sujo — aponta o coordenador.
Segundo ele, um dos pontos que sustentam esta hipótese é o percentual recorde de "superendividados" — condição na qual o endividado assume de boa fé que não tem capacidade de pagar as dívidas e manter o mínimo necessário para a sobrevivência. Conforme pesquisa divulgada em janeiro deste ano pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), 21,5% dos endividados declararam o comprometimento de mais de 50% da renda mensal com o pagamento de dívidas.
Outro indício é a redução de inadimplentes entre os mais jovens. Em 2013, menores de 24 anos representavam cerca de 18% do total de devedores. Em 2023, este número é inferior a 9%. Este mesmo fenômeno de redução ocorre no perfil de pessoas até 39 anos, onde os devedores de 2013 representavam 61,6% e agora, no ano de 2023, está em 47,3%.
— Este assunto é extremamente sensível, pois afeta a saúde financeira dos nossos empreendimentos e a capacidade de compra dos nossos consumidores. Nossa recomendação sempre estará direcionada ao consumo responsável. Tanto nossos empreendedores quanto nossos consumidores devem trabalhar para garantir que o crédito seja concedido e adquirido dentro das possibilidades de pagamento — avalia.
Para o consumidor que cai na inadimplência, a CDL promove ações como o Feirão Limpa Nome. Uma iniciativa para incentivar o pagamento de pendências e a regularização de crédito dos consumidores por meio de descontos que chegam a 80%. Além do abatimento de juros e isenções de multas com as empresas participantes. O evento já teve cinco edições na cidade. Costuma ocorrer entre outubro e janeiro, aproveitando o período aquecido da economia, e também motivado pelo pagamento do 13º salário.
Na edição de abril da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência dos Consumidores gaúchos (PEIC-RS), feita pela Fecomércio-RS, o percentual de famílias com contas em atraso ficou em 40,5% no Estado.
No início deste mês, o governo federal anunciou o programa Desenrola Brasil, que pretende beneficiar mais de 70 milhões de pessoas que estão endividadas no país. Conforme o Ministério da Fazenda, a iniciativa prevê a renegociação de dívidas a partir do refinanciamento para o devedor, sem que o credor precise esperar o pagamento.
O programa, que ainda depende de aprovação no Congresso, prevê duas faixas: na primeira, pessoas que ganham até dois salários mínimos ou inscritas no Cadastro Único (CadÚnico) – e que foram negativas até 31 de dezembro de 2022 - poderão saldar suas dívidas de até R$ 5 mil; a segunda faixa é destinada somente a pessoas com dívidas no banco, que poderá oferecer aos clientes a possibilidade de renegociação de forma direta. Essas operações não terão a garantia do Fundo FGO.
Para a economista Jacqueline Maria Corá, que coordena o curso de Ciências Econômicas da Universidade de Caxias do Sul (UCS), esse tipo de iniciativa tem mais eficácia se aliada à educação financeira.
— Problema financeiro não se resolve com dinheiro, mas com mudança de comportamento. A gente vê iniciativas buscando aliviar a situação do endividamento, pra que as pessoas possam voltar a ter crédito e a consumir, mas esses mesmos endividados, se não mudarem de comportamento, dentro de um ano estarão endividados novamente. E o endividamento traz consigo uma série de problemas: de relacionamento, emocionais e na própria saúde. As pessoas adoecem por conta das dívidas. É importante trabalhar no porquê das pessoas se endividarem, ensinando a desenvolverem uma relação inteligente e saudável com o dinheiro para romper este ciclo — observa a economista.
Projeto auxilia superendividados
Desde outubro de 2022, pessoas que buscam informações junto ao Procon de Caxias do Sul, quando enquadradas na modalidade chamada de superendividamento — caracterizado quando o rendimento não permite pagar débitos e garantir o mínimo existencial para sobrevivência —, são encaminhadas a um projeto realizado em parceria do serviço com o Centro Universitário da Serra Gaúcha (FSG) e com o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc). O procedimento todo é realizado com base na lei nº 14.181/21, que dispõe sobre a renegociação dessas dívidas em uma conciliação judicial.
— No início, teve procura maior e agora vem reduzindo. Foram poucas as pessoas que se enquadraram, de fato, na lei, que é exclusiva para relação de consumo. Muitas vezes, pessoas vêm com despesa de condomínio, pensão alimentícia, aluguel... Esse tipo de situação não se enquadra. Dívidas de contratação de financiamentos de veículos ou imóveis também não entram na lei do superendividamento — destaca o coordenador do Procon de Caxias, Jair Zauza.
É por meio do Escritório Modelo de Advocacia Cidadã (Emac) que o projeto ganha continuidade dentro da FSG, onde, com auxílio de estudantes do curso de Direito, os superendividados são auxiliados para elaboração do plano de pagamento, prevendo a quitação dentro de dois a cinco anos. Até o momento, 23 atendimentos já foram realizados. O documento é apresentado em sessão de mediação, promovido pelo Cejusc junto aos credores e, caso eles não concordem com o plano, a FSG presta assessoria jurídica em ação para introdução compulsória do plano.
— O objetivo da lei é recuperar crédito, pra pessoa que tem interesse em pagar, e possa ingressar novamente no mercado, na sociedade, com crédito liberado — destaca a professora de Direito Fernanda Sartor Meinero, que coordena o Núcleo de Prática Jurídica da FSG.
A partir da metade deste ano, plantões serão organizados pelas turmas de Ciências Contábeis e Gestão Financeira da FSG, para auxiliar individualmente pessoas superendividadas, encaminhadas pelo Emac. Nos atendimentos, a pessoa será auxiliada com plano de organização financeira para sair do endividamento ou evitar recaídas. Estes atendimentos também contarão com o curso de Psicologia.
— Antes de negociar dívida em atraso, algo que sei que não vou conseguir pagar, tenho que verificar o que consigo deixar sobrar na minha renda. Então, não adianta eu ganhar R$ 1 mil, gastar R$ 500 com alimentação e tudo mais e renegociar dívida com parcela de R$ 700. Às vezes, tenho que priorizar também dívidas, conforme custo de juros, por exemplo, e é muito importante ter comprometimento de todo o núcleo familiar — afirma a contadora Catherine Chaippin Dutra, coordenadora dos cursos de Ciências Contábeis e Gestão Financeira envolvidos no projeto.
Dicas para evitar dívidas
:: Todo mundo que está no núcleo familiar precisa estar ciente da situação e deve se esforçar para sair do quadro ou não recair nele.
:: É importante destinar recursos para bons investimentos e buscar fontes de recursos menos onerosas, com juros mais baixos.
:: Inadimplentes são os que estão devendo e, mais que isso, foram cadastrados em algum órgão de proteção de crédito. Endividado significa que a pessoa tem parcelamentos a pagar. O problema é quando estes parcelamentos venham a totalizar um valor maior do que a pessoa tenha a capacidade de pagar. O ideal é ter controle do orçamento, especialmente com as parcelas em aberto.
:: Tentar ser mais racional possível nas compras e escolhas, tomando cuidado com consumismo, compras por impulso, sem necessidade, especialmente com uso de cartão.
:: Cuidado principalmente com parcelas anuais - 13º salário e férias -, mantendo a otimização dos gastos.
:: Ver o que ganha e ver o que gasta e, a partir daí, fazer uma organização financeira. Sempre necessário manter acompanhamento de forma permanente e contínua, analisando variações e refletindo gastos atípicos, pra que se possa sempre melhorar a situação.
Inadimplência nos últimos 10 anos em Caxias
Percentuais da inadimplência
Ano Inadimplentes na população total Inadimplentes na PEA
2013 27,9 28,9
2014 27,7 34,5
2015 28,9 36,1
2016 30,74 38,3
2017 30,54 38,05
2018 28,9 36,08
2019 29,49 36,75
2020 28,64 35,69
2021 27,01 33,65
2022 27,22 33,92
2023 28,79 35,87
Fonte: CDL de Caxias do Sul
Obs.: PEA é a população economicamente ativa