O quadro que envolve a busca de recursos para o Hospital Geral (HG) é apenas a ponta do iceberg do setor da saúde pública em Caxias do Sul. A corrida pela abertura dos leitos ainda traz à luz situações como a defasagem do Teto MAC — que é o valor máximo disponibilizado pelo governo federal para custeio de ações e serviços de saúde de média e alta complexidade ambulatorial e hospitalar — e a falta de consenso entre os municípios da região em torno do financiamento do HG.
No fim de abril, a direção do hospital, com a presença do governador Eduardo Leite (PSDB), entregou as obras do novo complexo da instituição de Caxias. Mesmo assim, os 118 leitos (83 novos e 35 transferidos de uma ala antiga), ainda não podem entrar em funcionamento pela falta de recursos para o custeio mensal do novo prédio — calculado em cerca de R$ 7 milhões. A alternativa encontrada pelo hospital e poder público, inicialmente, é o pedido de pagamento pelo Ministério da Saúde. Ao mesmo tempo, autoridades caxienses buscam um consórcio dos municípios da Serra para auxiliar a instituição e a saúde da cidade, que recebe moradores de toda a região para atendimentos.
Com mais recursos federais, repassados pelo Estado, Caxias poderia bancar a operação da nova ala do HG. É por isso que há demanda para que o Ministério da Saúde revise o repasse de valores do Teto MAC. Um consórcio intermunicipal entre as cidades da Serra atendidas pelo sistema de saúde caxiense também é uma solução apontada pela prefeitura e por vereadores de Caxias.
O cenário de Caxias do Sul
A prefeitura usa números para mostrar as razões de não conseguir financiar sozinha a operação dos novos leitos do hospital. De 21 mil pacientes hospitalizados pelo SUS na cidade em 2022, mais de cinco mil eram de outras cidades da Serra.
No ano passado, de acordo com a Secretaria Municipal da Saúde (SMS), Caxias utilizou 27% do orçamento do município com a saúde, quantia que chega a R$ 334 milhões ao ano — cerca de R$ 28 milhões ao mês. A lei pede que as administrações municipais utilizem, pelo menos, 15% do orçamento.
Entre despesas mensais, Caxias aplica, pelo menos, R$ 58 milhões na área. O valor é para o pagamento do departamento pessoal (R$ 23 milhões); de serviços (R$ 13 milhões) - como contratação de atendimento ambulatorial, consultas e exames; subvenção aos hospitais Pompéia, Virvi Ramos e Geral (R$ 9,8 milhões); gestão das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) (R$ 4,7 milhões); material de consumo (R$ 1,9 milhão) - como medicamentos a pacientes; e outros gastos (R$ 808 mil).
Parte do valor é para Caxias manter atendimentos dos quais é referência, como cardiologia, cardiovascular, oncologia, nefrologia, neurologia, traumatologia, cirurgia bariátrica e gestação de alto risco. Para os atendimentos de média e alta complexidade, o município, como outras cidades brasileiras, recebe recursos federais do Teto MAC.
Esse é um dos desafios na saúde no município - o que impede que a prefeitura pague os recursos necessários para os novos leitos do Hospital Geral, como destaca o vereador Rafael Bueno (PDT), integrante da Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Câmara de Vereadores e que liderou a Frente Parlamentar de Apoio em Defesa da Conclusão das Obras do HG.
— Nós estamos investindo 27% em saúde. Desses recursos, só no ano passado, R$ 12 milhões para subsidiar os atendimentos dos 48 municípios da região, para suplementar os valores de cirurgia e atendimentos de alta e média complexidade. Hoje, 47% das pessoas que utilizam a alta complexidade é da região dos 48 municípios.
A defasagem do Teto MAC
O Teto MAC é o recurso federal repassado para os Estados para cobrir os atendimentos de média e alta complexidade no SUS — os governos estaduais é que fazem a distribuição para os municípios. Em 2022, o Rio Grande do Sul recebeu cerca de R$ 2 bilhões, em que R$ 75 milhões foram repassados a Caxias. Autoridades caxienses fazem dois apontamentos sobre a defasagem desse sistema.
Conforme a Secretaria Municipal da Saúde, o valor atual gasto em atendimentos de média e alta complexidade na cidade é de quase R$ 110 milhões, que seria o valor correto a ser recebido. Atualmente, o município utiliza recursos próprios, na faixa de R$ 34 milhões (que é o déficit da tabela), para cobrir o custo.
Como explica a secretária municipal da Saúde, Daniele Meneguzzi, a defasagem do Teto MAC é "uma questão histórica". O déficit existe desde 2008, mas cresceu a partir de 2015 com o aumento da demanda para o SUS, seja pelo aumento na oferta de serviços — o que cria mais procura de atendimentos —, seja pela crise financeira, em que diversas famílias migraram de planos privados para o sistema público.
— Com o passar dos anos, como a demanda do serviço de saúde é cada vez maior, a gente até costuma falar que a oferta dos serviços de saúde nunca vai ser suficiente porque ela vai sempre ser desproporcional à demanda. Então, a medida que tu oferta serviços, tu cria uma nova demanda pelo serviço novo que está sendo ofertado. Isso levou ao longo dos anos a uma série de distorções, e isso em 2015 ficou muito mais evidente — explica a secretária.
Administrações municipais anteriores e a atual procuraram o Ministério da Saúde para rever os valores repassados do Teto MAC. Porém, como relata Daniele, a resposta da pasta federal até então é a mesma: Caxias deve esgotar todas as possibilidades com o Estado. Para o Ministério, o RS tem um superávit de Teto MAC e a solução sugerida seria repassar a verba de municípios com superávit para aqueles com déficit. Mas a realidade não é essa.
Se conseguirmos equacionar esses R$ 34 milhões de déficit, conseguiríamos investir boa parte em ações voltadas à atenção primária
DANIELE MENEGUZZI
Secretária de Saúde de Caxias do Sul
A titular da secretaria caxiense revela que 183 municípios gaúchos estariam com déficit — Caxias tem a maior defasagem — e que o valor que os municípios teriam de superávit não é o suficiente para cobrir a diferença de todas as administrações. Essa foi a conclusão de um estudo da Secretaria Estadual de Saúde (SES) com os municípios, do qual a pasta caxiense fez parte da comissão técnica.
— O Estado apurou que esse superávit, essa sobra de Teto MAC de outros municípios, é irrisória perante o déficit que se tem hoje. O superávit que o Estado apurou que estaria sobrando não é suficiente para recompor o que está faltando em Caxias — simplifica Daniele.
O estudo foi concluído recentemente e entregue no início do mês à ministra da Saúde, Nísia Trindade, pelo governador, Eduardo Leite, e pela secretária estadual da Saúde, Arita Bergmann.
A defasagem atinge também o Hospital Geral. Para os 83 novos leitos, o município deveria receber mais R$ 2,1 milhões do Teto MAC. Hoje, o HG utiliza quase R$ 35 milhões do recurso federal recebido por Caxias, equivalente a R$ 75 milhões.
— Estamos, junto com o governo do Estado, de uma forma muito próxima pleiteando a busca desses dois grupos de recursos junto ao governo federal, que é quem realmente precisa dar resposta. Estamos com uma tabela SUS que não é reajustada há mais de 15 anos, todos os governos têm trabalhado com essa sistemática de não reajustar a tabela SUS. Temos enfrentado sérias dificuldades em relação a isso, haja vista a situação da saúde pública como um todo — afirma Daniele.
Caxias, assim, segue no aguardo das duas importantes manifestações do Ministério da Saúde. À reportagem, a pasta federal afirma que o setor técnico ainda não recebeu as demandas. Por outro lado, segundo a assessoria da SES, os documentos foram protocolados e, inclusive, entregues em mãos à ministra Nísia. Na última quinta-feira (25), uma comitiva estadual discutiu a recomposição de recursos para a saúde em reunião com o vice-presidente da República, Geraldo Alckmin (PSB), que recebeu o estudo dos representantes da SES.
Questionamento sobre distribuição
Além da necessidade de adequação nos valores, o vereador Rafael Bueno questiona a distribuição feita pelo Estado. Caxias tem a segunda maior população do RS, mas recebe menos verba do Teto MAC do que Pelotas e Canoas (compare na tabela).
— Caxias do Sul não tem condições (de cobrir o custeio dos novos leitos do HG). Nós já estamos com 27% do orçamento. Assim, não vamos investir mais nada em educação, lazer, turismo, nas outras pastas. E os outros municípios da região, sabendo que está mal redistribuído o Teto MAC, eles não vão apoiar Caxias do Sul na abertura dos leitos. Esse é o maior gargalo — declara Bueno.
A reportagem questionou a SES sobre os critérios para distribuição do Teto MAC, mas não obteve resposta. No Estado, Porto Alegre lidera o recebimento (sem incentivos), com R$ 601 milhões. Canoas e Pelotas aparecem na frente de Caxias, com R$ 91 milhões e R$ 81 milhões, respectivamente.
Em população, Caxias do Sul está a frente de Canoas e Pelotas. Caxias tem 503 mil habitantes, segundo prévia do censo do IBGE divulgado no final de 2022, e atende outros 49 municípios da Serra em média e alta complexidade, e fechou 2022 com 21,5 mil atendimentos. Além disso, como mencionado, o município tem o maior déficit do Estado.
Já Pelotas, com 343 mil habitantes, recebe o terceiro maior repasse do Estado. Conforme a secretária de saúde pelotense, Roberta Paganini, o município atende outras 27 cidades da região Sul e, atualmente, tem déficit de R$ 3,2 milhões no Teto MAC. Assim como Caxias, Pelotas utiliza mais do que os 15% do orçamento municipal para a saúde: cerca de 24% (R$ 366 milhões).
Caso o Ministério da Saúde aprove as demandas, Caxias veria um recurso de R$ 34 milhões ser liberado — que hoje é usado para a cobertura do Teto MAC. A secretária de saúde caxiense comenta que a verba poderia ser utilizada na atenção primária de saúde.
— Se a gente conseguir equacionar esses R$ 34 milhões de déficit, certamente conseguiríamos investir, se não todo, boa parte desse recurso em ações voltadas à atenção primária de saúde, que vão trabalhar a prevenção de doenças e a qualificação de atendimentos. É um recurso que nos permitiria contratar mais serviços para reduzir as filas de espera, mas principalmente atender aquilo que dentro da hierarquização do sistema público de saúde cabe ao município, que é atenção primária, atenção básica e trabalhar a prevenção.
O que falta para o HG
Após a conclusão das obras, o Hospital Geral precisa da habilitação do Ministério da Saúde para os leitos e a aprovação de recursos para o custeio mensal. Há ainda obras complementares que são necessárias, em que o governo do Estado repassou mais R$ 7 milhões, sendo R$ 3 milhões para itens como passarela de interligação, piso e cobertura entre os prédios, e R$ 4 milhões para uma nova subestação de energia.
— Tudo são etapas. Conseguimos finalizar a obra, com recurso público da campanha, com aporte do Estado. Agora para poder buscar a habilitação é necessário o prédio pronto, porque, o Ministério da Saúde dando o “ok”, eles fazem uma vistoria nos leitos — afirmou Sandro Junqueira.
De acordo com o diretor do HG, a secretária estadual da Saúde, Arita Bergmann, já fez o pedido da habilitação, além dos recursos, junto ao Ministério da Saúde - da mesma forma que os recursos do Teto MAC, a pasta diz ainda não ter recebido. Assim como no caso dos valores, a SES comenta que já protocolou o pedido de habilitação junto ao governo federal.
A titular da 5ª Coordenadoria Regional de Saúde (5ª CRS), Solange Sonda, diz que aguarda posição do Estado sobre a definição, mas concorda com o impacto que a abertura geraria para a Serra:
— É um hospital que é referência para 49 municípios. Com a abertura de novos leitos é um avanço para nossa região e conseguiríamos atender uma demanda maior, não apenas de Caxias.
A responsabilidade dos outros municípios
Tratando-se apenas do Hospital Geral, 25% das internações SUS em 2022 foram para municípios de outras cidades da Serra — são 3 mil de 12 mil pacientes no ano passado. Quando se trata dos atendimentos de média e alta complexidade, a instituição caxiense tem uma participação ainda maior.
Na média complexidade, Caxias teve 16 mil atendimentos em 2022, sendo nove mil realizados pelo Hospital Geral. Destes nove mil, quase dois mil são para pacientes de outras cidades (cerca de 20%). Na alta complexidade, Caxias teve 5,4 mil atendimentos, sendo que 2,9 mil ficaram com o HG. Neste caso, cerca de 1,4 mil são procedimentos para cidadãos de outros municípios da Serra — ou seja, 50% dos atendimentos.
No quadro financeiro, o atendimento para pacientes de fora de Caxias utiliza 28% dos recursos do Teto MAC para a média complexidade e 50% para a alta complexidade. Por isso, discute-se que um consórcio dos municípios da Serra seja criado para auxiliar a saúde caxiense. Uma reunião foi realizada no início de maio, sem um acordo entre representantes das cidades.
Neste momento, a Associação dos Municípios da Encosta Superior do Nordeste (Amesne) afirma que não se pronuncia. A entidade aguarda uma nova reunião para discutir o assunto. O presidente da Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Câmara de Vereadores de Caxias, Olmir Cadore (PSDB), afirma que esta reunião ocorrerá e deve contar com representantes do Estado e do Ministério da Saúde.
— A reunião dos prefeitos vai acontecer. Está de pé, e vai ocorrer em um momento oportuno. Eu assumi o compromisso e vai sair. Está sendo construída de uma forma harmônica. O prefeito quer a reunião, o Estado vai ter que participar, porque vai ser convocado, mas só vai participar quando os leitos forem habilitados em Brasília. Aí, vai haver um consentimento tripartite. Importante é que o município seja o anfitrião, e que haja participação do Estado e da União. Quando existir esse acordo entre os três, vão ser encaminhados convites para os municípios, que, se não participarem, correm o risco de serem penalizados.