"Era como engolir uma espada de ferro", descreve Milton Sérgio Bertelli, primeiro médico gastroenterologista a realizar exames de endoscopia no interior do Brasil. A metáfora faz referência a um equipamento semirrígido, de fabricação alemã, adquirido em 1964 pelo profissional de Caxias do Sul em uma de suas viagens a São Paulo em busca de especialização. Hoje, prestes a completar 90 anos de idade, o médico gastroenterologista preserva o antigo endoscópio como parte de uma coleção composta por outros aparelhos que acompanharam a evolução tecnológica, atribuindo qualidade ao exame e agregando possibilidades, como coletas para biopsias e até tratamentos que podem ser realizados atualmente com um mesmo equipamento.
Aposentado da clínica, mas ainda atuante como vice-presidente da Associação Cultural e Científica Virvi Ramos, mantenedora do hospital, Bertelli segue atento às novidades da área, que agora apontam para o uso da inteligência artificial em diagnósticos mais assertivos. Tudo isso, na visão do médico com mais de seis décadas de trajetória, não altera a base do exercício da profissão:
— A medicina evolui muito tecnicamente, mas a relação médico-paciente, desde o tempo de Hipócrates (considerado o "pai da medicina") é a mesma coisa: se tu não ouvir o paciente, ele não cura, ainda mais (quando se trata do) aparelho digestivo, que envolve muito a questão emocional. A tecnologia vai ser algo fora de série, a doença emocional vai continuar a mesma, e não aparece no aparelho. É pra essa que o médico precisa estar, e não está sendo, preparado — avalia Bertelli.
A associação do aparelho digestivo com as emoções sempre foi considerada pelo médico que, desde os primeiros anos de atividade, acompanha pesquisas, buscando manter-se atualizado com idas frequentes ao Hospital de Clínicas e Instituto de Gastroenterologia de São Paulo.
Bertelli atendeu pacientes de toda a região ao longo dos 50 anos em que manteve clínica na área central de Caxias do Sul, atuando paralelamente em hospitais da cidade. Por 27 anos lecionou na Universidade de Caxias do Sul (UCS) — onde formou-se médico — e foi um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Endoscopia Digestiva (Sobed). Entusiasta da formação profissional, ele também integrou, durante 30 anos, a Comissão Estadual de Residência Médica.
— Parei porque não dá pra viajar mais, mas o que examinei de programas por aí... Precisava ter 90 anos mesmo pra fazer tudo o que fiz — conclui o médico.
Marco para a Medicina
Quando os primeiros exames eram ainda pontualmente realizados no país, Bertelli foi convidado a participar de um congresso na Bahia que teve como tema "A Endoscopia no Brasil". No evento ele apresentou a pesquisa "O álcool e o estômago", em meio a um pequeno grupo de 10 médicos endoscopistas, e sendo o único atuante fora de uma capital. No Rio Grande do Sul, também foi precursor o gastroenterologista clínico José Martins Job, em Porto Alegre.
— A gente não tinha quem acompanhasse, era um processo muito novo, mas que permitia descobrir coisas que o raio X não descobria. A partir dali, foram possíveis diagnósticos como o de gastrite. Uma série de outras doenças passaram a ser entendidas. Foi uma das maiores mudanças na Medicina, não só na gastroenterologia, mas em outras áreas que se utilizam hoje da mesma tecnologia, como no cateterismo. Quem ia adivinhar que ia ser possível fazer isso, botar o aparelho lá dentro e olhar com uma luzinha a barriga do cara — relata Bertelli.
O exercício da atividade que se propõe a curar pessoas, utilizando-se de tecnologias criadas para "enxergar por dentro" o aparelho digestivo, inspirou Mauro Sérgio Belló Bertelli, 64, que optou por seguir a mesma profissão e especialidade do pai. É no consultório dele, também na área central de Caxias, que estão preservados os aparelhos que contam uma parte importante da história da medicina.
— Acabamos mantendo os aparelhos antigos, na medida que se tornaram obsoletos, e uma das ideias foi construir uma espécie de museu endoscópico — comenta o filho.
A evolução do procedimento
:: "O primeiro aparelho endoscópico era totalmente às cegas", relata Mauro Bertelli. Segundo ele, introduzia-se no paciente uma sonda com uma câmera e eram feitas fotos aleatórias a partir de movimentos pré-determinados do aparelho. Somente depois as imagens eram reveladas e avaliadas.
:: O aparelho semirrígido (o primeiro adquirido por Bertelli) já seria uma segunda geração. De fabricação alemã, é composto por lentes que permitiam ao médico observar o estômago e o duodeno, assim como tirar fotografias para posterior análise. Mesmo sendo introduzido em pacientes sob anestesia geral, Milton Bertelli destaca que o equipamento tinha pouca flexibilidade, o que exigia extremo cuidado. Por isso, como foi descrito por ele no início desta reportagem, "era como engolir uma espada de ferro".
:: Ainda na década de 1960, o médico teve acesso ao chamado fibroscópio, de fabricação japonesa, que utilizava tecnologia da fibra óptica, aplicada até os dias de hoje. Além de oferecer melhor qualidade de imagem, tanto para observação quanto para fotografia, o equipamento mais flexível permitia acesso a mais locais do tubo digestivo, além de possibilitar a biopsia de lesões potencialmente malignas.
:: A partir da década de 1980 foi possível adaptar o equipamento a câmeras, com imagens exibidas em tempo real e impressão direta em impressoras analógicas. Na sequência, a endoscopia passou a contar com um chip eletrônico (CCD, charge-coupled device), que transmitia a imagem para um monitor. Foi neste período que Milton Bertelli encerrou suas atividades na endoscopia.
:: Acompanhando os avanços mundiais, o procedimento ganhou tecnologia digital nos anos 1990. Mauro Bertelli, que já era médico como o pai, lembra que o avanço permitiu manipular as imagens (aproximar e alterar o espectro de cor, evidenciando alterações na mucosa). Foi uma década na qual também foi difundida a ecoendoscopia, que permitiu melhor visibilidade e acesso a lesões mais profundas, além da realização de procedimentos terapêuticos, como a alcoolização em nervos de pacientes com câncer para redução da dor.
:: Hoje, pequenas cirurgias podem ser feitas do ponto de vista endoscópico, a nível ambulatorial, com sedação assistida, assim como a colocação de sondas no estômago, por exemplo. Mauro Bertelli afirma que os equipamentos atuais possibilitam cirurgia bariátrica, tratamento de doença do refluxo, além do tratamento de lesões com administração de substâncias químicas, por agulhas no aparelho ou ligadura elástica.
:: De acordo com o médico que ainda trabalha com endoscopia, o próximo passo evolutivo é a inteligência artificial associada à videoendoscopia.
— Como a imagem é digital, o padrão da mucosa do revestimento do tubo digestivo, pode ser, hoje, analisado por algorítmos que dão a chance percentual da lesão se tornar maligna ou não; dela ser tratada do ponto de vista precoce — e temos maneiras de fazer isso — sem invadir o paciente do ponto de vista cirúrgico, e com ótimos resultados —afirma Mauro Bertelli.
Peças farão parte de homenagem
Ainda neste ano, as peças serão catalogadas e transferidas para o Hospital Virvi Ramos, onde Milton Bertelli atua há 35 anos, tendo também presenciado a inauguração da instituição, ainda como estudante. Os equipamentos ficarão expostos no Centro de Endoscopia Dr. Milton Sérgio Bertelli, uma justa homenagem ao profissional. O espaço foi inaugurado em março deste ano, com três salas de procedimento e uma sala de recuperação exclusiva ao procedimento oferecido pelo hospital de forma particular e também a pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS). Anteriormente, o Hospital Virvi Ramos tinha capacidade para realização de 350 a 400 exames de endoscopia por mês e, agora, a capacidade é de 1,2 mil exames mensais.