Há quase dois meses a família de Pedro aguarda por uma consulta com neurologista infantil pelo Sistema Único de Saúde (SUS), em Caxias do Sul. O nome do menino de três anos é fictício, mas a situação relatada por quem o acompanha de perto, desde que nasceu, é tão real quanto a de outras famílias de crianças com autismo, que integram a fila de espera na cidade.
O assunto chegou a ser abordado na Câmara de Vereadores, pela vereadora Tatiane Frizzo (PSDB), que protocolou uma indicação, solicitando ao Poder Executivo a contratação de médicos da área, no intuito de reduzir a espera destes pacientes. Na justificativa, a vereadora destacou que, em janeiro de 2023, havia mais de 900 solicitações de consultas com neurologistas, de acordo com informações do Departamento de Avaliação, Controle, Regulação e Auditoria (Dacra). No final deste mês, são 2.352 pacientes aguardando por consulta.
A Secretaria Municipal da Saúde (SMS) diz que não há previsão para novas contratações, alegando que, apesar do tamanho da fila, há significativa oferta mensal de consultas na especialidade — 337 para adulto e 174 para infantil — e que, no momento, não há disponibilidade de recursos para ampliação do quadro de especialistas que atendem a pacientes da cidade e região.
Alta prioridade tem fila de nove meses
Com entrada pela UBS Bela Vista, no dia 2 de fevereiro, a demanda de Pedro foi encaminhada e classificada como de número 447-2023 pelo Dacra. Em documento enviado à família, o departamento informou, ainda, que o paciente recebeu a classificação de "alta prioridade" mas que os agendamentos atuais tem contemplado pacientes da mesma categoria, que aguardam há nove meses, desde junho de 2022.
— A previsão que me deram é de oito meses a um ano para ele ser atendido — afirma Bibiane Ferreira Barbosa, 39, tia do menino.
Segundo ela, o autismo de grau 3 — o mais grave do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) — foi identificado ainda quando Pedro tinha um ano de idade. Uma semana depois, a mãe dele, cunhada de Bibiane, foi diagnosticada com câncer no intestino. A doença se espalhou e a levou à morte, em dezembro de 2022. A perda da mãe, segundo a tia, desencadeou uma piora no quadro do sobrinho, que já apresentava sérios problemas comportamentais em meio a uma saga da família em busca de medicamentos e terapias que pudessem melhorar a qualidade de vida dele e de toda a família.
— Eu estou indignada com a demora da consulta, revoltada, porque "tu fica" sem saber o que fazer. Ficamos enlouquecendo dentro de casa, correndo risco dele se machucar, porque ele tem ataques em que se arranha e se morde. Meu irmão está a ponto de perder o emprego porque meu sobrinho só aceita ficar com ele — relata a familiar, que protagoniza a busca por atendimento e terapias ao menino.
Segundo ela, a empresa na qual o irmão trabalha como metalúrgico chegou a flexibilizar a jornada para que ele possa dar atenção ao menino. Ainda assim, o tempo continua escasso, uma vez que Pedro não aceita ficar na própria casa, nem de familiares, e só se acalma quando é levado para passear de carro, algo que despende, ainda, gastos com combustível.
— Ele já ficou das cinco horas da manhã até as nove horas da noite circulando e fazendo tudo de carro. Chegou a rodar quase mil quilômetros em uma semana para acalmar as crises dele. Estamos com a família toda mobilizada para conseguir dar a volta, porque além de gasolina tem fralda, leite especial... — relata.
"Uma solução que abriria todas as portas"
O acesso a terapias gratuitas oferecidas pelo Centro de Autismo, inaugurado em agosto de 2022 na cidade, é o principal objetivo da família de Pedro. O encaminhamento ao serviço deve, obrigatoriamente, se dar pelo SUS e, por isso, depende da consulta que agora é aguardada. Enquanto isso, por meio do plano de saúde do pai, o menino será atendido pela quarta vez para adequação do medicamento. Pelo plano, ele também tem acesso a uma terapia a domicílio, duas horas por dia, de segunda a sexta-feira.
— Pelo plano não conseguimos muita coisa, e ele precisaria de estímulos e terapias para ficar bem. Essa consulta seria uma solução que abriria todas as portas . A gente fica preocupada porque tem muitas mães na mesma situação, e sabendo que esta espera pode causar outras situações ainda mais graves — relata.
Laudo para visibilidade e acesso aos serviços
Segundo dados atualizados mensalmente, até fevereiro, foram emitidas 10.547 unidades da Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Ciptea) no Rio Grande do Sul. O documento, criado em 2021, tem como objetivo a definição de políticas públicas para as pessoas com TEA e exige laudo para ser encaminhado.
Em Caxias, são 580 carteirinhas e o número chega a 898 na soma com outras oito cidades mais populosas da Serra: Bento Gonçalves (70), Farroupilha (56), Gramado (56), Canela (34), Vacaria (54), Canela (34), Garibaldi (25) e Flores da Cunha (23) também figuram na lista de emissões feitas pela Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para Pessoas com Deficiência e com Altas Habilidades do RS (Faders), disponíveis no chamado Cipotômetro.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) fez a inclusão de uma pergunta sobre autismo no questionário de coleta de dados para o Censo de 2022 mas, por enquanto, o recurso estadual, criado em 2021, é um dos poucos indicadores disponíveis.
A vereadora Tatiane Frizzo, que integra a Frente Parlamentar de Conscientização e Defesa dos Direitos dos Autistas da Câmara Municipal, alerta que o dado não representa a realidade:
— Sabemos que estes números não refletem a realidade, por isso temos feito ações para que as pessoas façam o cadastro, até para termos uma ideia de quem são e podermos fazer políticas públicas mais assertivas.
A demora para as consultas com neuropediatras na cidade é apontada pela vereadora como sendo um dos entraves para o acesso dos pacientes à carteirinha e aos serviços da rede pública. Ela aponta a necessidade de contratações emergenciais ou parcerias que possam garantir uma ampliação do serviço na cidade, além de atenção ao tema na elaboração da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que prevê anualmente a destinação dos recursos municipais.
SMS não prevê contratações
Sete neurologistas atuam hoje para a rede pública de saúde em Caxias do Sul, em consultas que são realizadas no Centro Especializado de Saúde (CES), Hospital Geral, Pompéia e Virvi Ramos. A titular da pasta, Daniele Meneguzzi, afirma que não há previsão de novas contratações.
— Essa fila é presente há bastante tempo, tivemos represamentos em função da pandemia e, aos poucos, estamos recuperando e dando segmento. Mesmo que haja uma fila grande, há oferta significativa de consultas. São demandas cada vez mais crescentes e nem sempre conseguimos acompanhar, até porque há limitação financeira — aponta a secretária, destacando que o município, hoje, aplica 26% da receita resultante de impostos ao SUS, enquanto o obrigatório seria 15%.
A secretária também destaca os limites de capacidade técnica e física para a ampliação do quadro que dá conta não apenas da população local, mas também presta atendimento a pacientes de municípios da região que tenham as instituições locais como referência.
— Caxias é único município do Nordeste do Estado que é referência para neurocirurgia, pelo SUS. Portanto, essa fila não é apenas de Caxias — destaca.
Em relação aos pacientes que aguardam avaliação para laudo do TEA, Daniele afirma que este tipo de identificação também pode ser feita pela área da psiquiatria infantil e que os encaminhamentos são realizados pelos médicos das UBSs, onde é realizada a triagem para classificação da prioridade, que pode ser alta, média ou baixa.
— Obviamente "alta prioridade" tem um tempo de espera menor do que os classificados com "baixa prioridade", sendo levados em conta critérios técnicos — completa.
A SMS não possui um levantamento de quais são as demandas dos pacientes que aguardam por consultas com neurologistas em Caxias do Sul. Em relação ao Centro de Autismo, a pasta informa que o local tem capacidade para acolher a 80 pacientes. O número de pessoas que aguardam por uma vaga no local, que centraliza os atendimentos a crianças de até oito anos, em parceria com o Círculo Saúde, não foi informado. Por meio de assessoria, a SMS afirmou que as crianças que estão em fila de espera seguem sendo absorvidas pelos demais serviços da rede e não estão desassistidas.
A cidade também conta com o Centro Regional de Referência em Transtorno do Espectro Autista (CRR TeAcolhe), que funciona em uma parceria da Secretaria Estadual de Saúde, a partir do programa TEAcolhe, com as seis prefeituras da área de abrangência. Além de moradores de Caxias, a equipe técnica tem profissionais de Neurologia, Psiquiatria, Psicologia e Fonoaudiologia também atende a pacientes de Canela, Gramado, Linha Nova, Nova Petrópolis e Picada Café.
39,9 mil pacientes aguardam por consulta especializada
Ao todo, a espera por consultas com especialistas na rede pública de saúde totaliza 39,9 mil pacientes. Dentre as 65 especialidades médicas ofertadas na cidade, os atendimentos com maior demanda são para Oftalmologia, que lidera a lista de espera com 4.783 pacientes; seguida pela Dermatologia, com 4.759 pacientes na fila; e a Otorrinolaringologia, que tem 3.375 pessoas aguardando por consulta. A oferta de consultas, por mês, para cada uma delas, é de 1.056, 299 e 439, respectivamente.
Na relação os números informados pela SMS, os últimos pacientes da espera por consulta com otorrinolaringologista, por exemplo, precisarão aguardar, pelo menos, 11 meses para atendimento.
Articulação com mais de 20 cursos da UCS envolvidos
Medicina, Psicologia, Fonoaudiologia, Nutrição, Assistência Social, Educação Física, Fisioterapia, Pedagogia e Medicina Veterinária são alguns dos mais de 20 cursos que deverão ser associados ao Centro Interprofissional para Pessoas com Transtorno do Espectro Autista da UCS (CiaTea-UCS). Ainda não há previsão para início das operações no espaço, que é desenvolvido pela universidade em parceria com instituições públicas, privadas e movimentos que visam dar respostas à demanda de atenção a pessoas com autismo da cidade e região.
O Centro será gerido pela UCS, com atendimentos via SUS e também privado, em convênios com operadoras de saúde e parcerias com prefeituras das cidades da região. O CiaTea-UCS será instalado nas dependências que antes abrigavam a Incubadora Tecnológica, no Travessão Solferino.
A primeira reunião sobre a implantação ocorreu em dezembro de 2022 e, neste ano, os grupos de trabalho atuam na elaboração de um plano de investimento para parceiros, com foco em captação de recursos a serem dedicados à infraestrutura; e de plano de negócio com os parceiros, voltado à manutenção e o custeio das operações. O investimento inicialmente previsto gira em torno de R$ 5 milhões.