A professora Gilca Santana Pires, 57 anos, nasceu em Santo Amaro da Purificação, região do recôncavo baiano, mas escolheu Caxias do Sul para viver e construir sua vida. Ao longo dos últimos dias, os olhos dela e do resto do país se voltaram para Bento Gonçalves, onde trabalhadores da Bahia foram resgatados em condição similar à escravidão na noite de 22 de fevereiro. Mesmo que soubesse que este tipo de situação acontece no Brasil, a incredulidade tomou conta da professora.
Solidária aos conterrâneos, ela acompanhava as notícias da operação do Ministério do Trabalho e Emprego e da polícia, e logo em seguida presenciou um novo episódio, que também atingiu e abalou a comunidade: o ataque do vereador caxiense Sandro Fantinel (sem partido) aos baianos resgatados em Bento Gonçalves.
Em discurso na tribuna da Câmara de Vereadores, na sessão de terça-feira (28), o caxiense afirmou que "com os baianos, que a única cultura que têm é viver na praia tocando tambor, era normal que fosse ter esse tipo de problema." Fantinel também sugeriu a agricultores, produtores e empresas agrícolas da região para dar a preferência a trabalhadores argentinos, que seriam "limpos, trabalhadores, corretos".
— A fala do vereador é horrível demais. Quer realmente saber se a pessoa é racista, xenófoba e preconceituosa? Brigue com ela. Esse vereador fala como se estivesse numa mesa com seus amigos e familiares tomando uma deliciosa sopa de agnoline. Ele "esqueceu" que estava numa tribuna, todo o Brasil ouviu e muita gente ficou indignada, mas quem sentiu a dor mesmo fomos nós, os trabalhadores baianos! Vereador, qual o problema de tocar tambor? Tocamos tambor para os bravos orixás, para os atletas nas rodas de capoeira, para os dançarinos das escolas de samba e blocos carnavalescos, na praia… Tocamos tambor e trabalhamos, afinal de contas, a Bahia e todo o Nordeste ainda é capitalista! Muito capitalista! — destaca a professora.
O trabalho análogo a escravidão é uma chaga que precisa ser resolvido não só por meio das leis, mas principalmente com projetos, pessoas qualificadas e orçamento
GILCA SANTANA PIRES
Professora
Casada com o caxiense Marcos Pires, Gilca mora na Serra há 23 anos, após se mudar com a família para cuidar da sogra que tinha sofrido um acidente. Ela transferiu o curso de Licenciatura em História na Universidade Estadual, de Feira de Santana, para a Universidade de Caxias do Sul, onde se formou em 2003. Atualmente ela leciona no laboratório de informática na Escola Ítalo João Balen e, à tarde, fica na biblioteca da Escola Alberto Pasqualini.
A professora conta que, no ano passado, trabalhou o tema do trabalho análogo à escravidão dentro do conteúdo Mundo do Trabalho com estudantes do 9º ano na disciplina de geografia. Foi quando um aluno incrédulo questionou: "profe Gilca, será que ainda existe meeesssmo esse tipo de trabalho no Brasil?
—Só não sabia que estavam tão pertinho, atrelados a produtos que aprecio, de fino trato — lamenta ela.
Para a professora, as justificativas das empresas envolvidas no caso soam como uma normalidade, quase dizendo que "a culpa é dos pobres, dos baianos e dos trabalhadores". Gilca ressalta que lida com o racismo, o preconceito e a xenofobia em situações diversas, nas falas indiretas e diretas, nas brincadeiras e piadas, nas entrelinhas e aspas.
— Meu filho ainda criança, ao brincar com os colegas, não era poupado, ouvia da roda de adultos esse mesmo tipo de fala do vereador. Tenho enfrentado tudo isso com luta e também com muita gente boa e feliz que não compactua com o preconceito. Algumas lutas perdi, faz parte. Porém, sigo um lema: “Não há fronteiras para os que exploram, não deve haver para os que lutam”.
O lema é da Juventude Operária Católica, grupo no qual participava quando conheceu o marido durante o 4º Congresso Nacional de Jovens Trabalhadores em Osasco (SP), em 1987. Ao chegar em Caxias, ela tinha um pequeno círculo de convivência. Na UCS, fez amizades, e entre colegas e professores, lembra que se sentia acolhida e com eles ia superando a saudade da família e dos amigos que deixou na Bahia.
— Ao passar dos meses, na lida diária, comecei a sentir muito mais o choque cultural do que o climático… Como sempre falo, frio é o de menos, usamos um bom agasalho e tomamos uma sopa quentinha, pronto, já ficamos aquecidos… agora a cultura meu rei... Precisa de tempo para haver mudanças significativas.
"Esses comentários pejorativos ferem, machucam, maltratam", desabafa empresário baiano
"Quando ouço falas xenofóbicas e preconceituosas de um vereador, eleito pelo povo, que é misturado, porque a gente não sabe de onde veio, qual é nossa raiz de fato, e temos uma árvore genealógica gigantesca, eu tenho nojo". Esse é o sentimento do empresário baiano Roberto Purificação, 43, depois da repercussão do pronunciamento do vereador Sandro Fantinel. Ele também espera que o caso dos 207 trabalhadores resgatados em trabalho similar à escravidão, que motivou o discurso xenofóbico, tenha punição, e sirva como exemplo para que estes episódios não se repitam.
Eu espero que esse vereador perca o mandato e nunca mais seja eleito. Esse vereador eleito pelo povo, que é misto, não me representa, eu baiano que sou com o maior orgulho do mundo.
ROBERTO PURIFICAÇÃO
Empresário natural de Salvador
Natural de Salvador, o ex-atleta profissional chegou a Caxias do Sul para representar o time de vôlei da UCS. Na cidade, se apaixonou por uma caxiense, casou e construiu uma família. Pai de dois filhos, um de oito e um de seis anos, hoje ele atua no ramo pet.
— Sou um cara que saiu da favela, sou negro e sofri preconceitos a minha vida inteira por ter nascido negro. Fico enojado porque penso nas milhares de pessoas mortas na escravidão, mortas pelo nazismo, e olha o século que estamos e ainda vivemos isso? É inconcebível, e esses comentários pejorativos ferem, machucam, maltratam, mas antes era corriqueiro, e hoje é crime.
Ele ressalta que mesmo que tenha sido acolhido no Rio Grande do Sul, já escutou muitas falas e comentários xenofóbicos e até de cunho escravocrata.
— Já fui barrado em porta de banco no Estado, e questionado se era correntista, as pessoas te confundem no mercado, porque se você é negro só pode ser segurança, você não pode ter nenhum tipo de ascensão, já me falaram: "um negro com um carro desses só pode ser jogador de futebol ou marginal". Eu já registrei ocorrência porque fui à Canoas com um cliente do pet shop e saiu um funcionário do banco, me olhou e perguntou: "tu não vai me assaltar, não" e eu perguntei para ele: "por que eu sou negro?" — lembra Roberto.
Sobre os conterrâneos que foram resgatados em trabalho similar à escravidão, o empresário afirma que é um amante do vinho, e sabe o que o setor representa para região, mas que não consegue aceitar a situação em que os baianos foram encontrados:
— Não vou mais consumir esse produtos. Temos que ter carinho pelo ser humano, é impossível acreditar que ninguém sabia o que acontecia. Os envolvidos têm que ser punidos e sofrer as consequências.
Para ele, a punição tem que ser exemplar:
— Esse vereador também tem que ser preso. Não podemos cruzar os braços, o que será dos meus filhos? Eles podem sofrer preconceito a qualquer momento e sempre vai ser assim? Caxias do Sul ainda é muito preconceituosa e temos que acabar com isso. Que esses episódios sirvam de exemplo: temos que ser tratados como iguais, que é o que somos. A gente precisa ocupar espaços, e espaços de destaque, porque a gente não tem as mesmas possibilidades que os brancos — desabafa.
"Se você ofendeu um baiano, você ofendeu todos os nordestinos", diz empreendedora que vive em Caxias há 18 anos
A empreendedora e agente de serviços ao cliente Aline Santos do Carmo, 38, é natural de Jequié. Ela está no Rio Grande do Sul há 18 anos. Antes de chegar a Caxias do Sul, morou em Ararica, na região metropolitana de Porto Alegre, e em Nova Hartz, no Vale dos Sinos, por seis meses, e depois veio para a cidade. Aline conta que desde o ensino médio tinha vontade de vir morar em Caxias influenciada por uma professora que insistia que ela deveria estudar na UCS.
— Esse caso do resgate dos baianos em Bento me lembrou muito os retirantes, que deixavam suas famílias em busca de melhores condições de vida. Os destinos sempre foram Sul e Sudeste. Pensar que no ano de 2023 ainda ocorre a saga dos retirantes é devastador. Acredito que o Nordeste precisa de indústrias que gerem emprego e renda, qualificação de mão de obra e maior valorização no mercado de trabalho. Enquanto isso não ocorrer, continuaremos com esse ciclo de abuso e exploração da mão de obra barata — aponta Aline.
Assim como os conterrâneos resgatados, ela buscou na Serra melhores condições de trabalho.
Hoje em dia me sinto blindada quanto a questão do preconceito tanto racial quanto regional, pois entendo que o preconceituoso é uma pessoa medrosa e ignorante no sentindo de falta de conhecimento.
ALINE SANTOS DO CARMO, 38
Empreendedora e agente de serviços
— Quando surge uma oportunidade você agarra com todas as forças, independente do quão longe é de sua casa. Torço para que os responsáveis respondam pelos seus atos na Justiça e que seja esclarecido o mais breve possível esse caso de analogia à escravidão.
Aline aconselha ao vereador Fantinel que estude a história e trajetória do povo nordestino. Ela lembra que desde o século 16, a elite daquela região depreciava negros e índios escravizados e os descrevia como desorganizados e sujos, depois como analfabetos e sem conhecimento, e, finalmente, como preguiçosos para defender a necessidade de manter a escravidão:
— Considero lamentável a fala desse vereador, que mediante a sua ignorância quanto à cultura do povo nordestino como um todo, porque se você ofendeu um baiano, você ofendeu todos os nordestinos. Ele teve um comportamento de papagaio reforçando um estereótipo construído historicamente e reforçado pelos coronéis e famílias oligarcas, detentores do poder e da mídia que reproduzia os interesses da elite na época.
Câmara de Caxias tem 90 dias para analisar caso de Fantinel
Com a abertura de processo de cassação do vereador caxiense Sandro Fantinel (sem partido), confirmado após sessão na Câmara de Vereadores de Caxias do Sul na manhã de quinta-feira (2), os parlamentares têm até 90 dias para concluir os trâmites. A comissão processante, que irá comandar o processo no Legislativo, será formada pelos vereadores Tatiane Frizzo (PSDB), Edi Carlos Pereira de Souza (PSB) e Felipe Gremelmaier (MDB). Eles foram sorteados e, depois, eleitos presidente, relator e vogal, respectivamente.
Fantinel é acusado de quebra de decoro parlamentar após as falas preconceituosas contra os baianos no discurso proferido na última terça-feira. Na quinta-feira (2), ele conversou com o Pioneiro e falou sobre a abertura do processo. No fim do dia, o vereador também publicou uma nota oficial nas redes sociais em que atribuiu o discurso a um "lapso mental".
— Prefiro mil vezes ser cassado do que continuar lutando pelo certo, porque eu vi que lutar pelo certo não vale a pena, infelizmente. Não que o que eu tenha dito na minha fala daquele dia seja certo, aquilo é errado, mas eu estou me referindo a muitas outras coisas — afirma Fantinel.
Nota oficial
O vereador Sandro Fantinel também divulgou uma nota oficial nas redes sociais sobre o ocorrido, além de um vídeo no qual faz a leitura do texto. Confira a íntegra:
"Gostaria de reiterar os meus sinceros pedidos de desculpas pelas minhas falas ocorridas em 28/02/23, em sessão na Câmara de Vereadores de Caxias do Sul.
Registro que tenho muito apreço ao povo Baiano, e a todos do norte/nordeste do país.
Em um momento de lapso mental, proferi palavras, que não representam o que eu penso e sinto pelo povo da Bahia e do norte/nordeste.
Somos todos iguais e estou profundamente arrependido."