O vice-coordenador Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Ministério Público do Trabalho (Conaete/MPT), o procurador baiano Italvar Medina, avalia que a empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, investigada por manter trabalhadores em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves cometeu crime de tráfico de pessoas. Ele faz parte da força-tarefa que, junto com procuradores do Rio Grande do Sul, investiga o caso descoberto a partir de operação realizada em 22 de fevereiro na cidade serrana e que resgatou 207 trabalhadores contratados pela Fênix.
Segundo ele, o crime tráfico de pessoas e de trabalho escravo estão intimamente relacionados, desde a época de escravidão oficial, e também não precisa ser internacional. Internacionalmente ele é definido pelo protocolo de Palermo e dentro do Brasil é definido como crime no artigo 149 A do Código Penal.
— Estão presentes todos os elementos contidos neste artigo. Os trabalhadores foram aliciados, foram recrutados na Bahia, para, em seguida, serem transportados para o Rio Grande do Sul, onde foram alojados para o fim de submissão ao trabalho análogo ao de escravo e à servidão por dívidas, inclusive. Essa conduta foi praticada mediante fraude porque foi prometido aos trabalhadores falsamente ótimas condições de trabalho e de remuneração que não se verificaram na prática, o que configura o crime de tráfico de pessoas — ressalta ele.
Ele acrescentou que a condição de vulnerabilidade social dos trabalhadores foi explorada pela Fênix, que contratou os trabalhadores, a maioria baianos, para que aceitassem mudar de cidade para trabalhar na colheita da uva. Medina aponta que em relação ao trabalho análogo à escravidão há, em muitos casos concretos, práticas que empregadores costumam usa para dificultar ou impedir o rompimento do vínculo de trabalho por meio de vários métodos de coerção. Entre eles, ameaças, agressões, retenção de documentos, não disponibilização de meios de transportes, sobretudo em lugares remotos.
— A servidão por dívidas que se verificou ocorre quando o empregador leva o funcionário a constituir dívidas de forma fraudulenta de modo que todo o salário dele acaba se revertendo de volta ao empregador e o empregado não consegue se livrar dessa situação. No caso concreto havia a necessidade dos empregados comprarem mantimentos diários em armazéns mantidos pelo explorador e que eram vendidos a preços muito acima do mercado. Além disso, eles adquiriram alguns empréstimos a juros extorsivos da pousada onde estavam hospedados e foram descontados deles os gastos com transporte e o próprio alojamento, de modo que as dívidas eram crescentes, justamente, como modo de mantê-los naquelas condições degradantes de trabalho — explica ele.
Com o avanço das investigações, o procurador destacou que também podem vir a ser comprovados os crimes de lesão corporal e tortura com base no relato dos trabalhadores e no material apreendido no alojamento, como cassetetes, aparelhos de choque elétrico e spray de pimenta. Após o resgate, os trabalhadores relataram à policia e aos fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) que eram agredidos por seguranças da empresa.
Medina ressalta ainda que em 2023, apenas nos dois primeiros meses, o número de resgatados em trabalho análogo à escravidão já supera a soma de todo o ano passado, quando 156 trabalhadores foram encontrados nestas situações no Rio Grande do Sul. No caso mais emblemático, da Serra, foram 207 pessoas resgatadas.
O resgate em Bento supera as 80 pessoas que foram encontradas em abril de 2022 em Bom Jesus, também na serra gaúcha, após serem constatadas as péssimas condições de alojamento e irregularidades na contratação dos funcionários para colheita da maçã. Há ainda a investigação sobre uma idosa que foi encontrada em um hotel na cidade de Garibaldi após ficar 44 anos desaparecida.
O Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul se manifestou por nota:
"A investigação está em andamento e o MPT-RS segue apurando os elementos do caso. Com relação às demais etapas do procedimento, o MPT-RS não vê conveniência em adiantar publicamente sua estratégia para o caso a partir de agora."
Procurada pela reportagem da RBS TV nesta manhã, a defesa da Fênix disse que não se manifestaria sobre essa questão neste momento.
Relembre o caso
O caso dos trabalhadores em situação análoga à escravidão foi denunciado após seis homens conseguirem fugir do local onde eram mantidos e buscar contato com a Polícia Rodoviária Federal, que prestou auxílio e deu início à operação. Um dos denunciantes já havia gravado vídeo com um celular e publicado em uma rede social reclamando das condições de trabalho. Ele relata que foi agredido pelos supostos empregadores por isso. O homem contou à polícia que aproveitou quando os agressores foram atender uma ligação e pulou de uma janela, correndo até um mato próximo do local onde estava. Ele e mais dois trabalhadores, que estavam com ele, aguardaram até as 3h da quarta-feira (22) para sair e pedir ajuda.
Ainda na quarta, uma operação conjunta de PRF, Polícia Federal (PF) e MTE flagrou 180 homens no alojamento, em situação precária de hospedagem, higiene e alimentação. À equipe, trabalhadores relataram que sofriam violência verbal, física, ameaças de morte e eram alimentados com comida estragada. Após o primeiro flagrante, outros 27 homens foram resgatados, na quinta, e encaminhados ao ginásio.
O aliciador da mão de obra e administrador da empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, Pedro Augusto Oliveira de Santana, chegou a ser preso ainda na quarta, mas foi liberado no dia seguinte após pagar fiança de R$ 39.060. Natural de Valente (BA), o empresário está sendo investigado. Ele trabalharia na região, com prestação de serviço, há pelo menos 10 anos, conforme o MTE.
Os homens resgatados atuavam, principalmente, na colheita da uva, em propriedades rurais do município. As três vinícolas — Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton —, citadas pelos trabalhadores e que contrataram o serviço terceirizado da prestadora, afirmaram em notas não ter conhecimento da situação em que os homens eram expostos até a operação, e que irão colaborar com a investigação. As investigações seguem com o MTE, Ministério Público do Trabalho (MPT) e Polícia Federal (PF).
Além de vinícolas, 23 proprietários rurais contratavam serviços de trabalhadores resgatados em Bento. Os nomes dos 23 não foram divulgados. A investigação ainda aponta que os trabalhadores atuavam na carga e descarga da uva em vinícolas e na colheita da uva nas propriedades rurais.
O que dizem as vinícolas?
Por meio de assessorias de imprensa, as três empresas publicaram comunicados.
O que diz a Aurora
"No início do século passado, algumas famílias italianas cruzaram o Atlântico à procura de dias melhores. Nas malas, poucas peças de roupa, uma ou outra foto desbotada, muita coragem e um sonho: refazer a vida em um país estranho. A Vinícola Aurora nasceu desse sonho. Desse sonho e de muito trabalho.
O trabalho que sempre correu nas veias de nossos fundadores logo se misturou a esta terra, espalhou-se por entre os parreirais, nutriu cada planta com um inegociável senso de respeito pelas mãos que a semearam, que a colheram, que a ajudaram a ser da uva, o vinho, e a ganhar o mundo, reconhecimentos e, mais importante, ganhar um lugar à mesa e no coração dos brasileiros.
Os recentes acontecimentos envolvendo nossa relação com a empresa Fênix nos envergonham profundamente. Envergonham e enfurecem. Aprendemos com aqueles que vieram antes que, sem trabalho, nada seriamos. O trabalho é sagrado. Trair esse princípio seria trair a nossa história e trair a nós mesmos. Entretanto, ainda que de forma involuntária, sentimos como se fora isso que fizemos.
Primeiramente, gostaríamos de apresentar nossas mais sinceras desculpas aos trabalhadores vitimados pela situação. Ninguém mais do que eles trazem, nos ombros curados pelo Sol, o peso de uma prática intolerável, ontem, hoje e sempre. A testa daqueles que fazem o Brasil acontecer, todos os dias, às custas do seu suor honesto, deveria estar sempre erguida, orgulhosa, e nunca subjugada pela ganância de uns poucos. Repudiamos isso com todas as nossas forças.
Em seguida, sentimo-nos obrigados a estender essas desculpas ao povo brasileiro como um todo, não apenas como discurso, mas como prática. Já cometemos erros, mas temos o compromisso de não repeti-los. Como empresa, garantimos que a atenção a um tema que nos é tão relevante será redobrada, práticas serão revistas, e todas as garantias para que um episódio indesculpável como esse não venha a se repetir serão tomadas. Temos um longo caminho pela frente, mas todo longo caminho começa com um primeiro passo, e ele é dado agora.
Desde já estamos trabalhando em um programa robusto que deve implementar mudanças substanciais nas dinâmicas da Vinícola Aurora. Essas mudanças devem qualificar não apenas a nossa relação com todos os parceiros, na busca de obtermos controle sobre os processos como um todo, mas também nas práticas e politicas internas da empresa e quanto ao nosso papel enquanto agente econômico, social e cultural de destaque em nossa região e a responsabilidade que advém disso.
Acreditamos nos valores que queremos reafirmar para nos tornarmos dignos da confiança do Brasil mais uma vez e espalhar o seu nome aos quatro cantos do mundo, em cores vivas e pujantes e não em notas cinzas como a que atravessamos neste momento.
Esperamos sair do outro lado como uma empresa melhor. Estamos aqui, com a mente e o coração abertos, a começar tudo de novo, se for preciso, como fizeram nossos antepassados ao aqui desembarcarem. Apenas, ao contrario deles, que eram pura incerteza sobre uma terra estranha, fazemos isso com a convicção de ser este um pais maravilhoso que merece o melhor de nós.
Trabalho não nos assusta. Deveria ser sempre uma fonte de alegria e realização. E a Vinícola Aurora não medirá esforços para colaborar com a construção de um mundo em que o respeito, o orgulho e a realização façam parte da vida de cada trabalhador.
Sinceramente,
Cooperativa Vinícola Aurora"
O que diz a Salton
"Em meio às notícias divulgadas, recentemente, sobre casos de trabalho análogo à escravidão na região de Bento Gonçalves (RS), nós, líderes da Vinícola Salton, nos expressamos, publicamente, para esclarecer os fatos que envolvem o nome da nossa empresa. Em primeiro lugar, a Salton repudia, veementemente, qualquer ato de violação dos direitos humanos e expressa, também, seu repúdio a todas e quaisquer declarações que não promovem a pacificação social.
Não adotamos e nem adotaremos uma posição omissa. De imediato, tomamos medidas internas que dizem respeito à melhoria do trabalho em toda nossa cadeia produtiva. Podemos listar ações que estão sendo intensificadas e outras que serão desempenhadas com a urgência que a gravidade do tema demanda:
Revisão de todos os processos de seleção e contratação de fornecedores, com implantação de critérios mais rigorosos e que coíbam qualquer tipo de violação aos dispositivos legais, incluindo direitos humanos e trabalhistas;
Estruturação de um cronograma para a realização de auditoria sobre práticas trabalhistas junto aos fornecedores e prestadores de serviços de forma recorrente e sistematizada;
Contratação de auditoria independente externa para certificar as práticas de responsabilidade social;
Ampliação e divulgação de nossos canais de denúncia e ampla disseminação de nossos códigos de conduta e ética em nossa cadeia produtiva;
Adesão ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo.
Adotaremos, ainda, medidas complementares a partir de novas recomendações de entidades públicas, privadas e órgãos fiscalizadores. Para melhor elucidar o contexto dos acontecimentos, esclarecemos que o período de safra da uva é dinâmico, exigindo, por vezes, contratações urgentes para um curto período. Este ano, no mês de fevereiro, precisamos recorrer à contratação terceirizada de 14 profissionais para a descarga de caminhões de uva.
Ao tomarmos ciência do gravíssimo resgate ocorrido nas dependências da empresa prestadora de serviço, suspendemos imediatamente o contrato de trabalho. Além disso, em total colaboração com o Ministério Público do Trabalho, fizemos depósitos para o pagamento do fornecedor, visando a garantia das verbas rescisórias e retorno dos trabalhadores a seus lares.
Somos uma empresa de 112 anos, cujo legado foi construído por milhares de trabalhadores que sempre foram tratados com respeito e lealdade. Acreditamos na sustentabilidade e na valorização das relações humanas como premissa de negócio.
Em nome da transparência e integridade, há anos, disponibilizamos para todos os públicos nosso Canal de Ética através do site, 0800 800 4545 ou pelo aplicativo para receber denúncias, anônimas ou não, para averiguar qualquer tipo de conduta que não esteja de acordo com os nossos valores ou com as leis vigentes.
A Salton segue colaborando com as autoridades e reforçou o seu compromisso, solidariedade e colaboração junto ao Ministério Público do Trabalho. Reiteramos nossos valores sociais e éticos e nosso compromisso de trabalhar, incessantemente, na melhoria contínua e na implementação de ações para que ocorrências lastimáveis como esta não se repitam.
Atenciosamente,
Família Salton"
O que diz a Cooperativa Garibaldi
"Nota à imprensa
Diante das recentes denúncias que foram reveladas com relação às práticas da empresa sob investigação no tratamento destinado aos trabalhadores a ela vinculados, a Cooperativa Vinícola Garibaldi esclarece que desconhecia a situação relatada.
Com relação à empresa denunciada, o contrato era de prestação de serviço de descarregamento dos caminhões e seguia todas as exigências contidas na legislação vigente. O mesmo foi encerrado.
A Cooperativa aguarda a apuração dos fatos, com os devidos esclarecimentos, para que sejam tomadas as providências cabíveis, deles decorrentes.
Somente após a elucidação desse detalhamento poderá manifestar-se a respeito.
Desde já, no entanto, reitera seu compromisso com o respeito aos direitos – tanto humanos quanto trabalhistas – e repudia qualquer conduta que possa ferir esses preceitos."
O que diz a Fênix
NOTA DE ESCLARECIMENTO
Bento Gonçalves, 2 de março de 2023.
A Empresa FÊNIX SERVIÇOS DE APOIO ADMINISTRATIVOS* vem, por meio desta, se expressar em virtude dos fatos divulgados pelas mídias, ocorridos nos últimos dias, envolvendo a sua idoneidade, seriedade, respeito pelos seus colaboradores e 10 anos de trabalho sério.
Primeiramente, assim como toda a população, estamos consternados com os acontecimentos, já que somos uma empresa que sempre se posicionou em garantir, a qualquer trabalhador, seja de qualquer lugar do País, todos os direitos preceituados na legislação vigente, reconhecendo e protegendo a dignidade de todos os seus colaboradores através do respeito, seriedade e cumprimento, de forma rigorosa, dos ditames da lei.
Nesse sentido, após os relatos da mídia, estamos averiguando os acontecimentos e apurando qualquer suposta irregularidade a partir dos relatos dos colaboradores, e tomaremos todas as medidas cabíveis que nos competem, pois sabemos e cumprimos à risca todas as nossas responsabilidades como Empresa.
Oportuno salientar que não aceitamos qualquer tipo de trabalho ilegal, o qual não acata o preceito central da Constituição Federal, qual seja, a Dignidade da Pessoa Humana.
Esclarecemos, também, que já enviamos todos os documentos solicitados pelos Ministérios Público do Trabalho e do Trabalho e Emprego, com quem mantemos aberto canal de conversação, assim como outras instituições que quiseram comprovar que não há irregularidades na nossa Empresa, e continuamos sempre abertos para ajudar a sanar qualquer dúvida que eventualmente apareça.
Reafirmamos o nosso compromisso em esclarecer os fatos, e agradecemos aquelas instituições que, antes de qualquer divulgação, se disponibilizaram a nos ouvir, assegurando, desta forma, a garantia constitucional do contraditório e a ampla defesa.
Estamos sempre à disposição para quaisquer esclarecimentos adicionais.
Fênix Serviços de Apoio Administrativos
*No CNPJ da empresa, consta que o nome completo é Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda