Após a negativa ao Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) pela empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda, investigada por manter trabalhadores em situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves, o Ministério Público do Trabalho (MPT) segue a apuração através de um inquérito civil. O procedimento administrativo foi aberto após o flagrante em uma pousada, no último dia 22.
O inquérito trata não só do flagrante, como também o descumprimento de termos trabalhistas anteriores. No TAC negado, constava o pagamento de R$ 600 mil por danos morais individuais aos 207 trabalhadores resgatados, obrigações a respeito de aliciamento de trabalhadores e de alojamento e também a exigência de pagamento de multa por parte da empresa por violação dos termos de um TAC anterior, assinado em 2017.
Segundo o MPT, "o órgão tem algumas opções de providências à disposição, mas não vê conveniência em adiantar sua estratégia a partir de agora". O Ministério Público do Trabalho também explica que, como o TAC trata-se de um acordo extrajudicial, isso permite que a empresa possa negar a negociação.
O advogado criminalista Maurício Reis explica que, não concordando com o TAC, a empresa pode ser alvo de uma ação na Justiça do Trabalho, que arbitrará uma eventuaçl condenação.
— De fato, é possível que os diretores das empresas (neste caso, as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton) e os agricultores não tivessem conhecimento da atividade criminosa da Fênix. Nesse caso, eles não deverão responder criminalmente. Porém, se eles podiam saber, mas preferiram se manter ignorantes, incide uma técnica de imputação chamada cegueira deliberada, ou seja, quando o agente poderia tomar conhecimento da prática ilegal, mas preferiu não fazer para se beneficiar — explica Reis.
Professora de Direito Internacional e advogada especializada em Direitos Humanos, Priscila Caneparo, afirma que o Poder Judiciário deve dar uma resposta adequada aos trabalhadores envolvidos, garantindo os direitos humanos.
— Se o Poder Judiciário não der uma resposta que garanta os direitos aos trabalhadores, o assunto pode parar em fóruns internacionais — opina Priscila.
Em relação a possíveis novos casos, a professora e advogada defende que a publicização de casos, como o resgate da semana passada, provoca a identificação para outros trabalhadores.
Prisão e fiança
Pedro Augusto de Oliveira Santana, 45 anos, preso durante a operação, foi liberado após pagar a fiança. Natural de Valente (BA), ele é investigado por aliciar mão de obra em Salvador (BA) para trabalhar na colheita de uva e no abate de frangos na cidade serrana. O valor da fiança foi de 30 salários mínimos, totalizando R$ 39.060.
Em investigação de Pioneiro e GZH, Santana foi apontado como sócio e proprietário de nove empresas, com controle de rede de empresas. A reportagem tenta entrevista com o empresário desde segunda-feira (27), para pegar a versão dele, mas, até o momento, seus advogados alegam que ele não está em condições de falar.
O que dizem as vinícolas?
Por meio de assessorias de imprensa, as três empresas publicaram comunicados.
O que diz a Aurora
"No início do século passado, algumas famílias italianas cruzaram o Atlântico à procura de dias melhores. Nas malas, poucas peças de roupa, uma ou outra foto desbotada, muita coragem e um sonho: refazer a vida em um país estranho. A Vinícola Aurora nasceu desse sonho. Desse sonho e de muito trabalho.
O trabalho que sempre correu nas veias de nossos fundadores logo se misturou a esta terra, espalhou-se por entre os parreirais, nutriu cada planta com um inegociável senso de respeito pelas mãos que a semearam, que a colheram, que a ajudaram a ser da uva, o vinho, e a ganhar o mundo, reconhecimentos e, mais importante, ganhar um lugar à mesa e no coração dos brasileiros.
Os recentes acontecimentos envolvendo nossa relação com a empresa Fênix nos envergonham profundamente. Envergonham e enfurecem. Aprendemos com aqueles que vieram antes que, sem trabalho, nada seriamos. O trabalho é sagrado. Trair esse princípio seria trair a nossa história e trair a nós mesmos. Entretanto, ainda que de forma involuntária, sentimos como se fora isso que fizemos.
Primeiramente, gostaríamos de apresentar nossas mais sinceras desculpas aos trabalhadores vitimados pela situação. Ninguém mais do que eles trazem, nos ombros curados pelo Sol, o peso de uma prática intolerável, ontem, hoje e sempre. A testa daqueles que fazem o Brasil acontecer, todos os dias, às custas do seu suor honesto, deveria estar sempre erguida, orgulhosa, e nunca subjugada pela ganância de uns poucos. Repudiamos isso com todas as nossas forças.
Em seguida, sentimo-nos obrigados a estender essas desculpas ao povo brasileiro como um todo, não apenas como discurso, mas como prática. Já cometemos erros, mas temos o compromisso de não repeti-los. Como empresa, garantimos que a atenção a um tema que nos é tão relevante será redobrada, práticas serão revistas, e todas as garantias para que um episódio indesculpável como esse não venha a se repetir serão tomadas. Temos um longo caminho pela frente, mas todo longo caminho começa com um primeiro passo, e ele é dado agora.
Desde já estamos trabalhando em um programa robusto que deve implementar mudanças substanciais nas dinâmicas da Vinícola Aurora. Essas mudanças devem qualificar não apenas a nossa relação com todos os parceiros, na busca de obtermos controle sobre os processos como um todo, mas também nas práticas e politicas internas da empresa e quanto ao nosso papel enquanto agente econômico, social e cultural de destaque em nossa região e a responsabilidade que advém disso.
Acreditamos nos valores que queremos reafirmar para nos tornarmos dignos da confiança do Brasil mais uma vez e espalhar o seu nome aos quatro cantos do mundo, em cores vivas e pujantes e não em notas cinzas como a que atravessamos neste momento.
Esperamos sair do outro lado como uma empresa melhor. Estamos aqui, com a mente e o coração abertos, a começar tudo de novo, se for preciso, como fizeram nossos antepassados ao aqui desembarcarem. Apenas, ao contrario deles, que eram pura incerteza sobre uma terra estranha, fazemos isso com a convicção de ser este um pais maravilhoso que merece o melhor de nós.
Trabalho não nos assusta. Deveria ser sempre uma fonte de alegria e realização. E a Vinícola Aurora não medirá esforços para colaborar com a construção de um mundo em que o respeito, o orgulho e a realização façam parte da vida de cada trabalhador.
Sinceramente,
Cooperativa Vinícola Aurora"
O que diz a Salton
"Em meio às notícias divulgadas, recentemente, sobre casos de trabalho análogo à escravidão na região de Bento Gonçalves (RS), nós, líderes da Vinícola Salton, nos expressamos, publicamente, para esclarecer os fatos que envolvem o nome da nossa empresa. Em primeiro lugar, a Salton repudia, veementemente, qualquer ato de violação dos direitos humanos e expressa, também, seu repúdio a todas e quaisquer declarações que não promovem a pacificação social.
Não adotamos e nem adotaremos uma posição omissa. De imediato, tomamos medidas internas que dizem respeito à melhoria do trabalho em toda nossa cadeia produtiva. Podemos listar ações que estão sendo intensificadas e outras que serão desempenhadas com a urgência que a gravidade do tema demanda:
Revisão de todos os processos de seleção e contratação de fornecedores, com implantação de critérios mais rigorosos e que coíbam qualquer tipo de violação aos dispositivos legais, incluindo direitos humanos e trabalhistas;
Estruturação de um cronograma para a realização de auditoria sobre práticas trabalhistas junto aos fornecedores e prestadores de serviços de forma recorrente e sistematizada;
Contratação de auditoria independente externa para certificar as práticas de responsabilidade social;
Ampliação e divulgação de nossos canais de denúncia e ampla disseminação de nossos códigos de conduta e ética em nossa cadeia produtiva;
Adesão ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo.
Adotaremos, ainda, medidas complementares a partir de novas recomendações de entidades públicas, privadas e órgãos fiscalizadores. Para melhor elucidar o contexto dos acontecimentos, esclarecemos que o período de safra da uva é dinâmico, exigindo, por vezes, contratações urgentes para um curto período. Este ano, no mês de fevereiro, precisamos recorrer à contratação terceirizada de 14 profissionais para a descarga de caminhões de uva.
Ao tomarmos ciência do gravíssimo resgate ocorrido nas dependências da empresa prestadora de serviço, suspendemos imediatamente o contrato de trabalho. Além disso, em total colaboração com o Ministério Público do Trabalho, fizemos depósitos para o pagamento do fornecedor, visando a garantia das verbas rescisórias e retorno dos trabalhadores a seus lares.
Somos uma empresa de 112 anos, cujo legado foi construído por milhares de trabalhadores que sempre foram tratados com respeito e lealdade. Acreditamos na sustentabilidade e na valorização das relações humanas como premissa de negócio.
Em nome da transparência e integridade, há anos, disponibilizamos para todos os públicos nosso Canal de Ética através do site, 0800 800 4545 ou pelo aplicativo para receber denúncias, anônimas ou não, para averiguar qualquer tipo de conduta que não esteja de acordo com os nossos valores ou com as leis vigentes.
A Salton segue colaborando com as autoridades e reforçou o seu compromisso, solidariedade e colaboração junto ao Ministério Público do Trabalho. Reiteramos nossos valores sociais e éticos e nosso compromisso de trabalhar, incessantemente, na melhoria contínua e na implementação de ações para que ocorrências lastimáveis como esta não se repitam.
Atenciosamente,
Família Salton"
O que diz a Cooperativa Garibaldi
"Nota à imprensa
Diante das recentes denúncias que foram reveladas com relação às práticas da empresa sob investigação no tratamento destinado aos trabalhadores a ela vinculados, a Cooperativa Vinícola Garibaldi esclarece que desconhecia a situação relatada.
Com relação à empresa denunciada, o contrato era de prestação de serviço de descarregamento dos caminhões e seguia todas as exigências contidas na legislação vigente. O mesmo foi encerrado.
A Cooperativa aguarda a apuração dos fatos, com os devidos esclarecimentos, para que sejam tomadas as providências cabíveis, deles decorrentes.
Somente após a elucidação desse detalhamento poderá manifestar-se a respeito.
Desde já, no entanto, reitera seu compromisso com o respeito aos direitos – tanto humanos quanto trabalhistas – e repudia qualquer conduta que possa ferir esses preceitos."
O que diz a Fênix
NOTA DE ESCLARECIMENTO
Bento Gonçalves, 2 de março de 2023.
A Empresa FÊNIX SERVIÇOS DE APOIO ADMINISTRATIVOS* vem, por meio desta, se expressar em virtude dos fatos divulgados pelas mídias, ocorridos nos últimos dias, envolvendo a sua idoneidade, seriedade, respeito pelos seus colaboradores e 10 anos de trabalho sério.
Primeiramente, assim como toda a população, estamos consternados com os acontecimentos, já que somos uma empresa que sempre se posicionou em garantir, a qualquer trabalhador, seja de qualquer lugar do País, todos os direitos preceituados na legislação vigente, reconhecendo e protegendo a dignidade de todos os seus colaboradores através do respeito, seriedade e cumprimento, de forma rigorosa, dos ditames da lei.
Nesse sentido, após os relatos da mídia, estamos averiguando os acontecimentos e apurando qualquer suposta irregularidade a partir dos relatos dos colaboradores, e tomaremos todas as medidas cabíveis que nos competem, pois sabemos e cumprimos à risca todas as nossas responsabilidades como Empresa.
Oportuno salientar que não aceitamos qualquer tipo de trabalho ilegal, o qual não acata o preceito central da Constituição Federal, qual seja, a Dignidade da Pessoa Humana.
Esclarecemos, também, que já enviamos todos os documentos solicitados pelos Ministérios Público do Trabalho e do Trabalho e Emprego, com quem mantemos aberto canal de conversação, assim como outras instituições que quiseram comprovar que não há irregularidades na nossa Empresa, e continuamos sempre abertos para ajudar a sanar qualquer dúvida que eventualmente apareça.
Reafirmamos o nosso compromisso em esclarecer os fatos, e agradecemos aquelas instituições que, antes de qualquer divulgação, se disponibilizaram a nos ouvir, assegurando, desta forma, a garantia constitucional do contraditório e a ampla defesa.
Estamos sempre à disposição para quaisquer esclarecimentos adicionais.
Fênix Serviços de Apoio Administrativos
*No CNPJ da empresa, consta que o nome completo é Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda