Desde o resgate de 207 trabalhadores que atuavam na colheita de uva, em Bento Gonçalves, e viviam em condições análogas à escravidão, o trabalho de colheita e a mão de obra que movimentam o setor econômico de todo o Rio Grande do Sul, passaram a ser questionados. O resgate, que ocorreu no dia 22 de fevereiro, foi considerado o maior do Estado, conforme informou o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), de Caxias do Sul.
De acordo com o gerente regional do MTE, Vanius Corte, para evitar a repetição de casos como o de Bento Gonçalves e manter o trabalho de colheita atrativo para trabalhadores de maneira digna, seguindo as regras trabalhistas, é necessário rever algumas práticas.
— Com a possibilidade ilimitada de terceirização, as empresas passaram a buscar outras empresas que fornecem mão de obra. Aí, são comuns situações como essa que a gente viu (em Bento Gonçalves). O empregado que vem não sabe a condição que vai trabalhar. Para ser atrativo para esse trabalhador, ele tem que ter noção das condições do trabalho que estão sendo oferecidas e do cumprimento daquelas promessas que foram informadas na contratação — explica Corte.
Desde a descoberta do caso dos 207 trabalhadores, sendo a maioria da Bahia, a busca por assuntos relacionados teve aumento expressivo, segundo dados do Google Trends. Entre os dias 26 de fevereiro e 4 de março, a busca por "trabalho análogo à escravidão Bahia" cresceu 110%. O valor, quando atinge ou passa de cem, representa que a popularidade de um termo atingiu o ponto mais alto de interesse público, conforme o Google.
Para a diretora de fortalecimento do movimento de Direitos Humanos da ONG Conectas, Júlia Neiva, o impacto de um caso com tantas pessoas vivendo nessa situação mostra que o Brasil, último do continente americano a abolir a escravidão, ainda produz e consome produtos que estão relacionados ao trabalho semelhante à escravidão. O incentivo à fiscalização é uma forma de contribuir para a erradicação dessa prática.
— Esse número expressivo serve para nos alertar e fazer uma denúncia sobre as relações arcaicas de trabalho. Por outro lado, também mostra a importância do trabalho de fiscalização, que por muitos anos foi enfraquecido e teve corte nos fundos. Sabemos que existem verbas para a fiscalização, que precisam ser executadas para que as empresas contratantes fiscalizem as cadeias produtivas, como a contratação de empresas terceirizadas, e façam isso de forma transparente para que casos como esse deixem de existir. A partir de incentivos à fiscalização, o trabalhador estará protegido para exercer aquela função para a qual foi contratado — afirma a diretora.
O caso de Bento Gonçalves é clássico do que ocorre em outras partes do país e traz componentes comuns aos demais. Conforme reforça Júlia, entre os aspectos estão a situação degradante, o racismo, os nomes de grandes empresas envolvidas, a migração de mão de obra de outros estados, as dívidas dos funcionários com os empregadores e as promessas de salários e condições dignas que não são cumpridas.
A advogada e professora de Direitos Humanos Priscila Caneparo, aponta que outro fator que pode ser adotado pelos trabalhadores para que tenham interesse em prestar serviços para o setor, está em uma avaliação sobre a empresa que faz a proposta do vínculo.
— Hoje, existem selos para essas empresas. Então, procurar por esses selos pode ajudar a encontrar um ambiente de trabalho digno. Existem selos nacionais e internacionais, que são concedidos por organizações que vão tornar o ambiente favorável e propício para que o trabalhador possa exercer a sua profissão. Esses selos identificam, por exemplo, uma empresa que respeita o direito das mulheres e por aí vai. Outra coisa está nas próprias empresas, que devem primeiramente compactuar com a legislação trabalhista e garantir o ambiente saudável desses trabalhadores — comenta Priscila.
A questão de legislação, conforme reforça Júlia, é ponto crucial para que o trabalho da colheita seja mantido. Atualmente, o Brasil conta com diferentes meios de combate ao trabalho similar à escravidão, comumente presente no setor rural. Lista Suja, Grupo Especial de Fiscalização Móvel, Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, comissões estaduais e legislação que combate o racismo são alguns deles.
A partir do cumprimento da legislação por parte dos empregadores, de acordo com a diretora, os trabalhadores estarão atendidos e correm menos riscos de passar por casos de trabalho em condições degradantes. A legislação aponta o pagamento de salários, boas condições de alojamentos, alimentação e o uso de equipamentos de proteção individual (EPIs), que muitas vezes não são fornecidos aos funcionários.
Mão de obra de fora é atraída pelo salário, enquanto a local prefere funções fixas
Conforme aponta Vanius Corte, muitos trabalhadores que chegam de outros estados para trabalhar no Rio Grande do Sul não encontram nos locais onde moram oportunidades com a mesma remuneração oferecida para o período da colheita — em média, R$ 2 mil por mês. Além disso, trabalhadores que moram ou são do Estado preferem funções fixas, evitando a incerteza presente em serviços de curtos períodos. Os trabalhadores que atuam na colheita são comumente contratados para trabalhar por até três meses.
— Se a pretensão dos agricultores é continuar com essa mão de obra que vem de fora, considerando que quem está aqui opta por serviços fixos de longo prazo, precisam ser cumpridas as promessas feitas, com o oferecimento de condições adequadas de trabalho — afirma Corte.
No caso de cativar trabalhadores da região, o gerente do MTE afirma que quem é do Estado e conhece outros meios de trabalho que não sejam temporários pode ser atraído, além do segmento dos direitos trabalhistas, por benefícios financeiros mais atrativos que as demais opções do mercado.
A advogada Priscila Caneparo reforça que todas as práticas trabalhistas que afetam a dignidade da pessoa humana e a condição dela viver, são consideradas análogas à escravidão.
— Quando o empregador não dá condições dignas para que ela exerça o trabalho e não remunera com um salário que condiz com o exercício da função, ou quando ela vive em condições degradantes e com uma jornada exaustiva, que não segue efetivamente os diretos trabalhistas descritos na lei, isso é trabalho análogo à escravidão — afirma a advogada.
Priscila também lembra que é preciso reforçar que empregadores que oferecem moradia e comida, mas não retribuem esse trabalho com o salário, estão cometendo o crime.
A colheita legislada
O trabalho de colheita no Rio Grande do Sul está presente em diferentes produtos que são fabricados no Estado. Entre eles, a maçã. Em Vacaria, região dos Campos de Cima da Serra, 1.250 hectares da Rasip Agropastoril são responsáveis pela produção de até 70 mil toneladas da fruta.
Nos gigantes campos verdes, que a olho nu parecem não ter fim, cerca de 2,5 mil trabalhadores atuam entre os meses de janeiro e abril para a colheita da maçã gala. Os homens, de diferentes regiões do Brasil, moram em alojamentos instalados dentro das três unidades de produção da empresa.
Os ambientes com beliches, aparelhos de televisão, banheiros e equipados com wi-fi, contam com um restaurante próprio, a poucos metros dos alojamentos, onde equipes servem café da manhã, almoço e jantar. Os alimentos são comprados pela Rasip da empresa Sodexo.
O líder indígena Edino da Silva, 53 anos, trabalha há uma década na Rasip. Vindo de Miranda, região do Pantanal mato-grossense, afirma preferir o trabalho de colheita no Rio Grande do Sul pelas poucas oportunidades que encontra onde mora.
— Venho todos os anos trabalhar aqui porque nossa região lá é carente, não tem empresas ou firmas para a gente trabalhar. Quando foram lá e trouxeram a gente para trabalhar aqui, nós viemos e vimos que receberíamos um tratamento diferenciado. Eu já trabalhei na colheita em outra empresa, mas era complicado. Aqui, nosso povo é respeitado e considerado como ser humano e respeitado como trabalhador — afirma Silva, que lidera um dos grupos de trabalhadores indígenas que atuam na empresa.
De acordo com o diretor da companhia, Celso Zancan, na cultura dos povos originários está a obediência a um líder. Quando o trabalho é finalizado, os funcionários seguem esse líder para retornar aos alojamentos. Ao todo, são cerca de 800 profissionais dos povos terena e guarani, vindos do Mato Grosso. A mão de obra originária está presente na Rasip desde 2009.
— Quando a gente é fiscalizado pelo Ministério Público (do Trabalho), eles vistoriam cada item presente na NR31, que prevê número de camas, distância entre eles, número de pessoas por quarto, número de chuveiros, torneiras nos banheiros. Essas fiscalizações acontecem todos os anos e somos fiscalizados também pelo órgão específico para indígenas, que inclusive já esteve aqui no início deste ano — afirma Zancan.
A Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae) do Mato Grosso também faz fiscalizações anuais para verificar as condições de trabalho dos indígenas no local. O salário de todos os funcionários, conforme afirma Zancan, é feito com a base salarial, somada ao rendimento na colheita feita por cada trabalhador.
— Nós estamos aqui procurando dar o melhor para as nossas famílias. Aqui, cada trabalhador ganha por rendimento, então cada um faz a sua parte. A gente recebe por quilo de sacola e sai daqui alegre com o nosso dinheirinho no bolso. A gente vem três vezes por ano trabalhar e temos um contrato de 30 dias para a colheita da gala. Às vezes, se estende por mais tempo. Depois de um período de descanso, a gente volta para a colheita da fugi — conta Silva.
Atualmente, a maçã colhida no Estado é a gala. Após a colheita, que segue até meados de abril, os funcionários darão início à colheita da fugi, popular por ser um pouco mais doce e com menos acidez.