A celebração comunitária de chegada do Papai Noel e abertura do Natal em Nova Prata reuniu cerca de cinco mil pessoas na Praça da Bandeira no último sábado (2), mas ficou marcada por momentos de constrangimento supostamente devido a uma questão racial. O alvo foi uma servidora pública negra que fazia o papel de Mamãe Noel em um cenário montado especialmente para fotos.
Funcionária da secretaria de Obras, Lisiane Lisboa Vieira, 41 anos, varre as ruas de Nova Prata há três anos e, pelo seu carisma e simpatia, foi convidada pela Secretaria de Turismo, Cultura, Esporte e Lazer a desempenhar o papel que deveria trazer encantamento aos pais e seus filhos. No entanto, alguns moradores teriam demonstrado descontentamento ao verem que uma negra fazia o papel de Mamãe Noel. Os comentários de parte do público foram percebidos por uma testemunha, que relatou as falas à Lisiane. Constrangida, a funcionária da prefeitura disse que se tornou insustentável permanecer na praça e foi embora.
Vestida de vermelho, com touca e avental branco, ela viu a empolgação com a festividade durar pouco até perceber o comportamento das pessoas logo que chegou ao local, já vestida com os trajes natalinos.
— A reação era de espanto das pessoas quando entravam e me viam ali. Tiveram pais que quando entravam na casinha do Papai Noel pediam se as crianças queriam tirar foto na árvore e nem cogitavam a possibilidade de chegar perto de mim. Uma colega que organizava a fila ouviu pais que olhavam na porta e diziam: "A Mamãe Noel é negra, nem vamos bater foto". E as crianças respondiam: "É, nem vamos". Foi bem constrangedora a situação. Ficou tão fora do normal que acabei desistindo, voltei pra secretaria tirei a roupa e chorei muito — contou.
A tristeza e a revolta de Lisiane foram causadas também pela presença do filho e do neto dela que acompanhavam a mãe e avó no trabalho de receber a comunidade para as fotos. Segundo ela, a situação ficou tão fora do normal que não tinha como continuar.
— Se eu fiquei uma hora ali foi muito. Enxergava no lado de fora as pessoas que paravam e olhavam pela janela da casinha como se fosse para ter certeza do que estavam vendo. Juntou muita gente para olhar. Foi uma experiência amarga que nunca mais quero sentir — desabafou.
O Papai Noel que acompanharia Lisiane no cenário ainda não havia chegado quando os primeiros comentários foram ouvidos. O suporte após o ocorrido veio da Secretaria de Turismo.
Responsável pelo evento que segue até o dia 25 de dezembro, a Secretaria de Turismo, Cultura, Esporte e Lazer emitiu uma nota de repúdio às agressões verbais e constrangimento sofridos pela vítima. Além disso, disse tratar o caso e a identificação dos autores como prioridade. Câmeras de segurança espalhadas pela Praça da Bandeira poderão auxiliar nas investigações. No entanto, a identificação esbarra no fato de as injúrias terem sido praticadas dentro da casinha temática onde Lisiane, vestida com os trajes natalinos, recebia a comunidade.
— É lamentável, jamais esperávamos que fosse acontecer essa situação. Ela é uma pessoa extremamente carismática, uma mãezona que tem todo o perfil para ser uma Mamãe Noel. Estamos apoiando ela, porque fatos como esse não podem acontecer. Não fizemos o Boletim de Ocorrência (BO) porque ela não sabe dizer quem são as pessoas, mas as imagens das câmeras de segurança serão mostradas a ela numa tentativa de achar os culpados e fazer com que eles recebam as punições cabíveis — afirmou a secretária do Turismo, Veridiana Vallar Ciotta.
Publicada no Instagram, na conta oficial da secretaria, a nota de repúdio lamentou o ocorrido e fez com que, nos comentários, pessoas prestassem solidariedade à servidora. Confira na íntegra:
A Secretaria Municipal de Turismo, Cultura, Esporte e Lazer de Nova Prata vem a público para manifestar o repúdio pela lamentável situação ocorrida na noite de sexta-feira, 02, durante a chegada do Papai Noel. Convidamos uma das nossas servidoras para ser a Mamãe Noel naquela noite, por ser, dentre outras qualidades, carismática e alegre. Naquela noite, momento em que as crianças se dirigiram para a Praça da Bandeira, no intuito de fazer um registro e abraçar o Papai Noel em sua casinha ali instalada, também estava a Mamãe Noel, que ouviu de pais e pessoas que ali chegaram, comentários preconceituosos e racistas, pela sua cor. É realmente lamentável, nos tempos em que cada vez mais se prega inclusão, nos depararmos com estas situações descabidas e para agravar ainda mais, vindas de adultos e na presença de nossas inocentes crianças. Um momento que deveria ser de pura alegria e encantamento, deixou traumatizada nossa Mamãe Noel, que a fez abandonar seu posto diante de tanto constrangimento. O Natal tem todas as cores, todos os tamanhos de todas as pessoas que desejam fazer dos bons valores o brilho desta época.
Novo convite
A solidariedade chegou até Lisiane que foi convidada a retornar ao posto, algo que ela ainda não decidiu. Uma colega que dividiria a função com ela também desistiu e por enquanto a Festa de Natal de Nova Prata está sem Mamãe Noel. A servidora não descarta registrar um BO contra os agressores que a causaram nas suas palavras, uma "experiência amarga".
— Se eu reconhecer, vou fazer um BO e entrar com um processo sim. Porque se eu me calo hoje amanhã será com um filho meu. Não me encorajei de voltar, muita gente está me dando apoio e me dizendo para voltar, vou ver com a minha família, se me apoiarem a voltar eu volto, se não acabo expondo eles também. Foi uma situação ridícula o que fizeram, olha em que século estamos, eu achei que isso não existia, mas existe numa proporção fora do normal — disse.