Essa é segunda reportagem da série Educação em Pauta, que é veiculada no Pioneiro, em GZH e na Gaúcha Serra. A primeira abordou a saúde mental de alunos e professores e nos próximos meses serão abordados a inclusão no processo de ensino, a evasão escolar e a preparação dos estudantes para além do currículo básico. A ideia é que, além de mostrar os desafios, as reportagens também apresentem soluções e bons exemplos.
A violência está atravessada por uma série de emoções desconfortáveis para as quais crianças e adolescentes precisam elaborar maneiras de lidar. Essa é uma premissa no trabalho que está sendo feito na Escola Estadual de Ensino Médio Dr. Assis Antônio Mariani, em Caxias do Sul, que tem 587 alunos. É no prédio localizado no bairro Jardim Eldorado que Ivonete Caxambú leciona há 14 anos. Professora de Espanhol e Ensino Religioso, além de envolvida com o Projeto de Vida e o Mundo do Trabalho, ela se dedicou, nos últimos três meses, a trabalhar essa questão com os estudantes.
Ivonete fez uma roda de conversa e levou um emotion (representação figurativa das emoções) para os alunos. Depois de vencer a vergonha, eles começaram a se falar e compartilhar. As perguntas eram simples, mas feitas com sinceridade: como estou hoje? Como você está hoje? Feitas no tom certo e com expectativa real das respostas, elas conseguiram desarmar os estudantes para que eles compartilhassem os sentimentos.
Tem que trabalhar as emoções para prevenir a violência porque muitas vezes eles vêm para a escola com alguma coisa que aconteceu na família, no bairro, na comunidade
IVONETE CAXAMBÚ
Professora
— Tem que trabalhar as emoções para prevenir a violência porque, muitas vezes, eles vêm para a escola com alguma coisa que aconteceu na família, no bairro, na comunidade. Recebemos alunos de vários bairros e tem muitas localidades do entorno que tem um certo grau de violência. Para resgatar esses alunos, temos que fazer essa escuta porque os conflitos aumentaram na pandemia, tem que fazer o resgate enquanto família também — analisa a professora, ao contar que chegou a chorar uma manhã inteira após ouvir relatos de tristeza e abandono dos estudantes.
Outro trabalho feito com os estudantes foi o do Día de Los Muertos, data comemorada no México no dia 2 de novembro, em que é costume visitar os túmulos de entes queridos e preparar altares com alimentos, velas, flores, entre outros. A ideia foi mostrar a significação e valor da vida humana e abordar o amor, a religiosidade e as emoções. Os estudantes assistiram ao filme A Vida é uma Festa e criaram salas temáticas para encerrar as atividades:
— As turmas receberam a visita das demais turmas. Cada uma se apresentou de uma maneira diferente e o projeto foi bem aceito pelos estudantes. Acredito que se trabalharmos em equipe, os objetivos serão alcançados — afirma Ivanete.
Novos líderes
A formação de líderes nas escolas é vista como essencial para combater casos de violência. Um dos encontros ocorreu em outubro no Centro de Cultura Dr. Henrique Ordovás Filho. Sentados em um círculo, alunos de escolas públicas conversaram sobre o tema. Os adolescentes participaram do projeto Capacitar para liderar, promovido pela Coordenadoria da Juventude e pela Justiça Restaurativa.
Para o adolescente Leandro da Silva Velho, 17 anos, aluno da professora Ivonete, é essencial unir os colégios. Ele cursa o segundo ano do Ensino Médio e entende que essa integração é uma forma de amparar quem precisa de ajuda.
— Acredito muito nesses encontros porque muita gente acaba sofrendo com bullying, violência, discriminação e preconceito sexual. É uma questão de unificar todas as escolas e os estudantes passarem uma visão e uma imagem diferente. É importante reunir grupos e realizar projetos para escutar um pouquinho de cada um para poder acolher cada um do seu jeitinho.
O fortalecimento dos grêmios estudantis para atuarem como mediadores de conflitos e trocarem experiências também é apontado como umas das medidas positivas.
— Não só os alunos, mas o Grêmio Estudantil também está muito perdido na nossa formação e, com esses eventos, a gente consegue se unir para beneficiar os alunos. Eu participei do primeiro eixo em que falamos das emoções e agora da formação de lideranças que nos ajuda a seguir um caminho — destaca o presidente do Grêmio Estudantil do Colégio Estadual Imigrante, Victor Gabriel Graff de Souza, 16 anos.
Um problema de todos
Todas as escolas públicas de Caxias contam com representantes da Comissão Interna de Prevenção a Acidentes e Violência Escolar (Cipave). A coordenadora da Cipave do Estado na Serra, Marivane Carvalho, ressalta que o trabalho demanda o envolvimento de toda a comunidade escolar. Ela explica que, com base nos relatos dos professores, fica visível que a violência na escola surge como um reflexo do que o aluno vive em casa ou na comunidade.
As escolas perceberam, por exemplo, que aumentaram os casos de bullying. Segundo ela, depois de diagnosticar quais os casos com maior incidência, as escolas viram a necessidade de criar lideranças juvenis e garantir protagonismo aos estudantes.
— Gosto de olhar e escutar cada demanda e assim construir com a Cipave da escola a melhor ou possivelmente mais assertiva das ações para aquelas necessidades. Cada escola é uma escola, e precisamos diagnosticar as ações voltadas para cada uma delas, de acordo com o que elas precisam. A violência é um problema nosso, e temos que trabalhar juntos para resolver.
Marivane Carvalho fala sobre violência nas escolas:
As estratégias são diversas. Uma escola da rede estadual levou os alunos para o cinema para tentar melhorar o convívio em sala de aula. A avaliação foi de que assistir ao filme conjuntamente, em um momento de descontração, e, depois, ter um diálogo sobre o assunto, era um jeito interessante de avançar no coleguismo. Marivane explica que nem todas as ações são divulgadas porque há necessidade de preservação das escolas, mas salienta que as experiências têm trazido resultados:
A violência é um problema nosso, e temos que trabalhar juntos para resolver
MARIVANE CARVALHO
Coordenadora da Cipave na rede estadual para a Serra
— Foram transformadoras. Sempre digo que quem tem coragem de se olhar (diagnóstico) e fazer (planejamento de ações e coloca-las em ação) vai colher bons frutos. Meu papel é acolher essas comissões, pensar junto e construir possibilidades. Escolas que saíram de um caos nos relacionamentos para uma tranquilidade. Possivelmente não será apenas uma ação que fará a grande mudança, mas todas as ações, pequenas ou grandes, que farão a transformação.
Resgate dos Grêmios Estudantis
Na rede municipal, um dos braços de atuação da Cipave é a habilitação dos professores como facilitadores na construção de paz. A ideia é incentivar a própria escola a estabelecer vínculos e que a instituição seja pacificadora.
A assessora referência da Cipave municipal, Bruna Conrado, lembra que as comissões e os grêmios estudantis foram desativados na pandemia. Por isso, na volta das aulas, foi necessário retomar e fortalecer esses grupos. Bruna reforça a necessidade de oferecer espaços de escuta para evitar a violência escolar:
— Se a gente não dá esse espaço, eles acabam usando, às vezes, os espaços de uma maneira negativa. Então, trabalhar um pouquinho com a questão do espelhamento positivo, de dar a essa gurizada uma oportunidade de eles se espelharem em seus pares de uma maneira positiva. E não pela briga no recreio, não pelo envolvimento da facção, não pelo envolvimento com a droga, mas por algo positivo.
Se a gente não dá esse espaço pra eles, eles acabam usando, às vezes, os espaços de uma maneira negativa
BRUNA CONRADO
Assessora referência da Cipave municipal
Durante três meses, houve movimento para reestruturar os grupos na rede municipal. Depois, a equipe promoveu encontros online a cada 45 dias para abordar a realidade de cada escola. Em novembro, os colégios trabalharam o tema das redes sociais e o chamado cyberbulliyng, um problema que piorou com o acesso mais desordenado à internet:
— Nós temos tido muitas situações de perfis fakes de fofocas da escola: fofocas da escola tal e o nome da escola e eles expõem de uma maneira que não é bacana. Nós fizemos ao longo desse ano algumas intervenções no sentido de prevenir, para além do que isso implica na vida da gente legalmente, mas as questões do eu, do outro, da empatia, do respeito. Como eu me sinto quando me expõem dessa maneira? Por que eu não devo expor o outro?
Parte da mudança
As escolas do município têm investido em ações para combater conflitos. Um dos destaques foi o concurso de vídeos Faça parte da mudança, navegue com segurança. A ação fez parte da Semana de Conscientização da Exploração Infantil e Combate aos Crimes de Internet.
Com o documentário A internet não esconde o agressor, a Escola de Ensino Fundamental José Protázio Soares de Souza venceu o concurso. Localizada no Jardim Eldorado, a instituição é uma das maiores da rede. Ao longo do ano, assim como demais colégios da cidade, a Protásio registrou problemas de convívio, além de casos de ansiedade e depressão. A equipe, então, pensou em como combater essas questões e ajudar os estudantes.
A diretora Letícia Comerlatto destaca que o uso das redes também levava a esses conflitos. Tanto que o vídeo que criaram foi baseado em uma situação real, que aconteceu pelo Instagram com fofocas, expondo os alunos.
— A gente montou o vídeo para mostrar a eles o quanto isso afeta a vida das pessoas, a vida das família e o quanto interfere no ambiente escolar e na própria vida pessoal. A gente fez todo acolhimento com todas essas ações a fim de fazer com que esse grupo voltasse a se sentir pertencente dessa escola porque eles estavam meio que soltos. É uma caminhada grande, mas a gente já avançou bastante, já tivemos progressos.
O problema da violência também é percebido na rede particular. O professor Augusto de Campos Lima, de Educação Física, ressalta que na escola em que atual, o Colégio La Salle, aposta-se em muita conversa. Uma psicóloga está atenta a essas condições. Para ele, o esporte é uma ferramenta a ser usada para trabalhar a sociabilidade.
— É valiosa para a questão do contato, da autoestima e proporciona essa resolução de conflitos. Na Educação Física, é onde eles conseguem se soltar e colocar a euforia para fora, botar o que está preso, dentro das quatro paredes, na sala de aula, para fora, onde eles conseguem ter um pouco mais de liberdade.
As agressões no mundo virtual
O bullying, termo usado para definir práticas agressivas feitas de forma intencional e repetitivas, ganhou visibilidade nas últimas décadas. Reconhecido como problema crônico nas escolas, o bullying já atingiu um em cada três estudantes no mundo. O dado é da Organização das Nações Unidas (ONU). Além disso, a professora Cibele Cheron destaca que um estudo do Instituto Ayrton Senna mostra que vítimas podem enfrentar problemas de autoconfiança, apresentam menos curiosidade para aprender e se sentem menos entusiasmados no ambiente escolar.
O bullying, por se tratar de uma agressão praticada por crianças ou adolescentes contra crianças ou adolescentes, é uma questão especialmente preocupante que demanda um trabalho sério e multidisciplinar
CIBELE CHERON
Pesquisadora e professora
A pesquisadora aponta que até pouco tempo atrás o bullying era ignorado por professores, diretores e pais. Os conselhos, que vinham em um contexto social de repressão, se limitavam a ignorar o que era chamado de brincadeira sem graça ou a retribuir as violências físicas. Cibele afirma que esse cenário começou a mudar a partir da democratização política do país e a maior liberdade para se debater diferentes assuntos, inclusive as questões psicológicas. O surgimento de leis de proteção aos mais frágeis, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, que criou os conselhos tutelares, também levou a se repensar o jeito de educar as crianças.
— Nesse novo cenário, todas as violências físicas/psíquicas praticadas contra eles se tornaram objeto de investigação e penalidade. Porém, o bullying, por se tratar de uma agressão praticada por crianças ou adolescentes contra crianças ou adolescentes, é uma questão especialmente preocupante que demanda um trabalho sério e multidisciplinar (professores, diretores de escola, psicólogos e pais), pois suas consequências podem ser graves, reverberando inclusive em suicídios ou ataques.
Com o distanciamento social, o mundo digital ganhou mais espaço na vida dos estudantes. Isso fez com que crescesse a preocupação com o cyberbullying, ou seja, práticas agressivas com características de bullying, mas na internet.
— A onipresença do cyberbullying pode causar grande ansiedade entre crianças e adolescentes, que se sentem desamparados. Essa ansiedade, combinada com o fato de que os cyberbullys costumam fazer declarações mais ofensivas online do que fariam pessoalmente, torna o cyberbullying uma forma destrutiva de violência — salienta Cibele.
Reflexo da sociedade
A violência nas escolas é o reflexo do que acontece na sociedade. Para especialistas, não há como dissociar uma realidade da outra. A professora Cibele Cheron, que integra o Grupo de Pesquisa Educação e Violência do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), assinala que tem ocorrido um acirramento de conflitos, com destaque para a escalada da violência em questões políticas. A doutora em Ciência Política salienta ainda o aumento de casos de violência doméstica e familiar, de feminicídios, e assédio em espaços de trabalho, por exemplo. A pandemia trouxe ainda uma carga social para o problema da violência. Além do aumento da evasão escolar e do atraso nos conteúdos, registra-se um crescimento do desemprego e a volta da fome aos patamares de 1990.
A violência é um fenômeno complexo, multifatorial, para o qual contribuem elementos estruturantes da sociedade, como o racismo e o machismo, assim como elementos conjunturais, como as crises econômicas
CIBELE CHERON
Professora e pesquisadora
O especialista em segurança Igor Pipolo adiciona que é preciso discutir qual é o risco a que os estudantes estão expostos, tanto no ambiente interno quanto nos arredores das escolas. Para ele, é preciso que existam condições físicas bem estruturadas nos prédios e reforço de monitoramento nas proximidades, por meio de câmeras e do contato com autoridades. Além disso, ele salienta a importância de regras que definam qual é a resposta a ser dada em casos de violência interna.
— O risco de dentro que eu digo é desde os riscos físicos, de não ter uma barreira, de não ter um controle de acesso, de qualquer pessoa poder entrar na escola, de não ter muro, não tem iluminação adequada, da escola não estar em boas condições físicas. Depois, dentro dela, tem aquela questão da disciplina, de ter uma resposta imediata.