Essa reportagem abre uma série que será apresentada no Pioneiro, em GZH e na Gaúcha Serra ao longo de cinco meses. Outros assuntos que serão abordados no Projeto Educação em Pauta são as condições de segurança nas escolas, a inclusão no processo de ensino, a evasão escolar e a preparação dos estudantes para além do currículo básico. A ideia é que, além de mostrar os desafios, as reportagens também apresentem soluções e bons exemplos.
O isolamento social, as aulas a distância e a perda do contato presencial, somados ao estresse e medo de contaminação, geraram reflexos que se mantêm nas salas de aula mesmo após o arrefecimento da pandemia. São unânimes os relatos de aumento de casos de dificuldades emocionais tanto entre professores quanto entre estudantes nas redes de ensino de Caxias do Sul. Não há números para medir o tamanho desse problema, mas crises de ansiedade, dificuldade de retomar o convívio e de aprender são situações que se repetem no dia a dia das escolas.
Às vezes, as instituições percebem a necessidade de atendimento especializado e fazem encaminhamentos para a rede de saúde. Ou até mais que isso. Em uma escola de Caxias do Sul, por exemplo, um grupo de professores se uniu para garantir uma avalição psicológica a um aluno. Direções também têm se mobilizado para formar uma rede de apoio interna, com projetos que podem servir de inspiração para outras instituições.
Fernanda Molin, coordenadora pedagógica da Escola Municipal Afonso Secco, ressalta que a expectativa de retomada da vida dentro da chamada "normalidade" é inviável. Ela pontua que a baixa convivência social tornou a volta ao presencial desafiadora.
— A escola, na sua essência, é um espaço rico de relações e o quadro da pandemia impactou em cheio. As defasagens encontradas no processo de aprendizagem e as dificuldades de convivência dos estudantes ficaram evidentes logo no início. Todos os envolvidos —professores, familiares e estudantes — passaram a demonstrar ansiedade e desejo de recuperar os dois anos em alguns dias. É claro que isso é impossível, gerando sentimento de frustração, decepção em todos.
O cenário não é diferente em escolas particulares. A sobrecarga de trabalho com as aulas virtuais e o medo da doença fragilizaram a todos.
— Sinto que uma parcela de estudantes ainda está com dificuldade de controlar suas emoções, de se concentrar e de voltar a um ritmo de estudo. Os professores também tiveram um grande abalo emocional e há sintomas de exaustão, estresse e esgotamento físico. O apoio da escola, de colegas de trabalho e da família tem sido fundamental para recuperarmos as lacunas que a pandemia nos deixou —afirma Luciane Bof, professora de biologia do Colégio São José.
Uma parcela de estudantes ainda está com dificuldade de controlar suas emoções, de se concentrar e de voltar a um ritmo de estudo
LUCIANE BOF
Professora
Para a professora Vanessa Luísa Endres, da escola estadual Victorio Webber, o foco nos últimos meses foi na recuperação do conteúdo, sem um olhar para a saúde mental. Ela defende a presença de um psicólogo em todas as instituições de ensino para que a realidade deles seja melhor compreendida:
— Todos os problemas que essas crianças e esses adolescentes enfrentam hoje ecoam na escola. Enquanto professores, nós estamos sozinhos. Grande parte das escolas, eu falo isso a nível estadual, hoje não tem um profissional que possa fazer esse trabalho de ouvir e de tentar auxiliar esse aluno da melhor forma possível.
Inseguranças e excessos
O processo de aprendizagem sempre dependeu das condições emocionais dos estudantes. Por isso, ajudá-los a se organizar nesse sentido, ainda mais com a crise desencadeada pela pandemia, é uma das prioridades:
— A preocupação com a aprendizagem não é só na dimensão cognitiva, é com essa dimensão socioemocional, e ela tem até ocupado um lugar bem de destaque, tem se sobreposto à questão da aprendizagem cognitiva, embora essa também seja uma demanda muito séria — assinala Caroline Lemons, assistente pedagógica da Secretaria Municipal da Educação, que trabalha no assessoramento a 17 escolas da Zona Norte de Caxias do Sul, uma das regiões mais vulneráveis socioeconomicamente da cidade.
A expressão dos sentimentos incômodos pode variar de acordo com as experiências de vida de cada criança ou adolescente: para alguns, a depressão se sobrepõe, em outros aparecem crises de ansiedade e há os que se tornam agressivos. Por isso, cada escola tem de definir estratégias específicas:
— Comportamentos inesperados, de isolamento ou de ausência frequente, logo são comunicados à coordenação pedagógica. A escola oferece suporte e promove reflexões permanentemente. Uma das grandes estratégias é o círculo de convivência ou de resolução de conflitos, onde existe a possibilidade de partilha e de escuta — detalha o professor Márcio Barreto, de ensino religioso no Colégio São José.
Aprender é o pegar no colo, é o contato olho no olho, ele é o afeto, é o acolhimento, é a interação.
CAMILA TEIXEIRA
Psicopedagoga
A psicopedagoga Camila Teixeira conta que a alfabetização fora do tempo esperado é o fator que mais leva as famílias ao consultório, mas, além disso, a profissional percebe que as crianças estão mais impulsivas, com dificuldade de seguir regras e atrasos na motricidade.
— Crianças que com certeza não tiveram esse contato, esse vínculo, esse afeto, porque o aprender é o pegar no colo, é o contato olho no olho, ele é o afeto, é o acolhimento, é a interação. Então, isso impactou e as crianças estão com dificuldade em socializar, estão com crises de sono, estão mais inseguras, estão com excesso de telas.
Apoio na escola para superar ansiedade
Quando fala sobre o período da pandemia, a estudante Ketlen de Lima, 16 anos, tem uma expressão que parece endurecer, com o corpo mais rígido e os olhos paralisados nas lembranças. No tom de voz, é possível perceber um certo engasgo, apesar da fluidez da adolescente ao descrever os sentimentos. Sentada na sala da direção, para onde foi buscar apoio durante períodos mais difíceis, ela também falou à reportagem sobre como sentiu falta da convivência e dos momentos de trocas afetivas:
— A pandemia foi um momento bem difícil. Diversas crises de ansiedade. Eu lembro de nunca conseguir vir buscar atividades da escola e pensar coisas ruins.
Ketlen voltou à escola Alberto Pasqualini, no bairro Bela Vista, no final do ano passado. Ela já havia conversado com a direção sobre as dificuldades que vinha enfrentando e encontrou um apoio que descreve como fundamental.
A pandemia foi um momento bem difícil.
KETLEN DE LIMA
Estudante
— Eu tive uma crise de ansiedade no meio da aula. Eu fui ao banheiro, não recorri direto à direção, e comecei a chorar muito. As pessoas começaram a entrar no banheiro e eu fiquei muito tensa, e ficaram me perguntando se estava tudo bem e eu não queria falar se estava tudo bem ou não. Então, só me deram um abraço e chamaram a diretora. Daí eu vim para a sala e a gente conversou — relata.
A estudante conta que as crises de ansiedade diminuíram. Além do tratamento individualizado, ela diz que os projetos da escola têm um papel importante para a saúde emocional não só dela, mas também dos colegas.
Trabalho multidisciplinar
Uma breve caminhada pelos corredores da escola Alberto Pasqualini é o suficiente para despertar uma reflexão sobre o autocuidado e o respeito ao próximo. Há estudantes que param para escrever sobre como se sentem e depositam em uma caixa esse relato. Nos murais, estão cartazes do chamado respeitômetro: os alunos expuseram os níveis de tolerância em relação a homofobia, ao racismo e ao modo de vestir diferentes, entre outros.
Essas são algumas das iniciativas encabeçadas por professores e direção no apoio a estudantes dentro do projeto Acolher, Educar e Transformar. Criado em 2022, ele foi gerado devido ao aumento dos casos de estresse, ansiedade e depressão. Conforme a diretora, Gabriela Reginato, os alunos passaram a apresentar até sintomas físicos, como dores de estômago, falta de ar e automutilação.
— Por mais que a gente entenda que não é um problema não só da escola, é um problema que aconteceu na sociedade, na família... Mas a escola é o espaço que o aluno tem para manifestar também essas emoções e a gente precisa acolher — afirma a diretora.
Uma das percepções é que os jovens precisavam de espaço e incentivo para se expressarem. Com quase dois anos de isolamento, muitos perderam a capacidade de relacionamento e conexão. Interessada nos aspectos socioemocionais, a professora Daniela Adriane Arce da Silva, de Língua Portuguesa, se considera uma felizarda por trabalhar com uma disciplina que possibilita a expressão pela palavra.
Nas aulas dela, alunos do 8º ano têm o último período da sexta feira para ações de escrita livre. Já os alunos do 9º ano são responsáveis pela caixinha do diário secreto, aquela que fica disposta em um dos corredores do prédio da escola. São os estudantes que dão encaminhamento quando há pedidos de apoio.
— Tudo o que eu queria era realmente saber como meu aluno estava se sentindo após esse retorno presencial, como foi para ele essa nova adaptação. Então, eu percebi que as minhas metodologias deveriam começar a ser para o lado do socioemocional — explica Daniela.
Alfabetização emocional
A psicóloga Natália Lopes do Prado, sentada em uma pequena plataforma, pergunta a alunos do 5º ano do Ensino Fundamental da Escola Municipal Tancredo Neves, em Caxias do Sul, o que acontece com eles ao sentirem raiva.
— Não dá vontade de fazer nada — responde uma menina, acomodada logo à frente da profissional e ao lado dos colegas.
O diálogo se passou na Sala Mágica do colégio, um ambiente lúdico, em uma manhã de setembro com temperaturas amenas. Durante o encontro, Natália explicou ao grupo que uma emoção sentida individualmente, como a tristeza, também pode afetar o colega. Por isso, no lugar de se atacarem, eles devem se unir.
A ideia é desenvolver ferramentas emocionais que, muitas vezes, essas crianças sequer aprenderam em família. Para representar as emoções, a psicóloga utiliza bonequinhos, uma forma de materializar algo tão subjetivo.
— Nós damos nome às emoções. Eu digo que é uma alfabetização emocional — conta a psicóloga.
Natália foi contratada pela Fundação Marcopolo para trabalhar na escola desde abril. No colégio da Zona Norte, faz rodas de conversa, trabalhos em grupo e mediação de conflitos.
A Tancredo Neves está encravada em uma região de alta vulnerabilidade social, onde a saúde é prejudicada pela falta do básico, como acesso à alimentação. Mas o impacto positivo do apoio psicológico, conta o diretor Vagner Peruzzo, é visível. Segundo ele, diminuíram os casos de conflitos que terminavam em agressões ou combinações de brigas.
— Tenho a impressão de que a escola passa a ter essa função social, para além de ensinar, mediar leitura, escrita, pensamento lógico, também contribuir um pouquinho para a harmonia da comunidade.
A Fundação Marcopolo fornece psicólogas a duas instituições de ensino de Caxias. Também comprou livros e desenvolveu dois projetos, voltados às emoções. Deisi Noro, analista de Responsabilidade Social da instituição, explica que a ideia é que o material chegue aos professores e alunos, mas que o conteúdo seja extrapolado para as famílias:
— Com isso, a gente tem essa possibilidade de disseminar o autoconhecimento e melhorar a convivência social.
Cenário geral
A dificuldades emocionais em sala de aula não se resumem aos estudantes e tão pouco se limitam a uma região ou cidade. Pesquisas do Instituto Península, que realiza estudos sobre os cenários em sala de aula em nível nacional, mostram que a saúde mental dos professores também se tornou uma preocupação maior. A coordenadora de Conteúdo e Formadora da Plataforma Vivescer do Instituto, Silvia Breim, aponta dois focos para a reversão desse desgaste emocional: na gestão escolar e na relação dos professores com o grupo de alunos.
Cada escola vai precisar encontrar soluções que façam sentido para sua realidade.
SILVIA BREIM
Coordenadora de Conteúdo e Formadora da Plataforma Vivescer do Instituto
O acolhimento pedagógico, diz a especialista, pode esclarecer o que impede um estudante de avançar em determinado conteúdo ou qual é a maneira de otimizar a aprendizagem. Com isso, pode-se planejar as aulas conforme a necessidade apresentada por eles. Na gestão, aponta Silvia, também é necessário parar para escutar o que os professores têm a dizer.
— Tem que virar essa chavezinha no jeito de olhar para os professores e para os alunos. A gente passa a usar uma lente que temos chamado de cultura do acolhimento. É esse olhar para uma mudança das relações na escola. Passar a ouvir mais os alunos dentro da sala de aula, fazer rodas de conversa, buscar a colaboração de todos, para que se sintam parte do grupo. Se tornar mais sensível ao que está acontecendo na sala de aula dele.
Para atender a diferentes realidades, ela sugere a criação de redes dentro do ambiente escolar. Como exemplo, cita a conversas de alunos com psicólogos ou assistentes sociais a cada 15 dias, a criação de um espaço coletivo, aulas de dança, um momento de leitura ou uma roda de conversa para expressão de sentimentos.
— Cada escola vai precisar encontrar soluções que façam sentido para sua realidade. Um caminho é fazer composições que mesclam diferentes setores para entender as questões que estão se revelando e se tem como resolver sem outro tipo de intervenção.
A especialista destaca, no entanto, se houver problemas de saúde mental mais sérios, é preciso recorrer a outros meios. Essas situações precisam ser encaminhadas via rede de atendimento, desde a psicologia escolar até o próprio sistema público de saúde e assistência social.
Ouça a reportagem:
Dados
O Instituto Península realizou em junho de 2022 a pesquisa Retratos da Educação pós pandemia: uma visão dos professores. Os dados foram coletados de 10 de maio a 26 de junho e 957 pessoas de todas as regiões do país participaram do estudo. O levantamento compara dados com uma pesquisa anterior feita em maio de 2020.
- 73% dos professores se preocupam com os alunos.
- 59% demonstraram preocupação com a própria saúde mental neste ano. Em agosto de 2020, eram 54%.
- 30% foi o aumento na quantidade de professores que relataram se sentir sobrecarregados, na comparação de maio de 2020 com julho de 2022.
- 11% é o número de alunos que vão conseguir cumprir o ano letivo, conforme previsão dos entrevistados.
- A maior parte dos professores acredita que a estratégia mais efetiva para aumentar a motivação e aprendizagem dos alunos é um maior envolvimento das famílias e da comunidade escolar.
- Mais de 90% dos professores concordam que os alunos estão com dificuldades de concentração e mais de 70% relatam dificuldade de relacionamento.