Doce, alegre, mas com uma tristeza que surgia, às vezes, em meio aos sorrisos. Uma menina que cresceu longe do carinho e do conforto da mãe e que encontrou nos avós as referências de pai e mãe. Conforme o relato de vizinhos, Angélica Schena, 28 anos, morta na noite do último domingo (27), enfrentou situações difíceis desde o nascimento. Natural de Farroupilha, ela morreu após ser arrastada por um carro por mais de um quilômetro em Caxias do Sul.
No bairro Primeiro de Maio, em Farroupilha, onde Angélica cresceu, os vizinhos lamentaram a morte da jovem, que a maioria conheceu desde pequena. O clima era de tristeza e até de uma certa incredulidade. Mesmo com receio de se envolver, especialmente, devido à brutalidade e repercussão em torno da morte, eles contaram o que lembram sobre Angélica.
A Rua Achylles Fernando Bonfanti é longa e sem saída. Considerada tranquila, a via termina na descida de um morro. Numa das casas, com dois andares, pouco antes da descida mais íngreme, Angélica cresceu com Vendelino Schena e Florinda Eva Catharina dos Reis, os avós paternos. Foi lá que, como qualquer outra criança, brincava com meninas e meninos do bairro.
Os vizinhos conversaram com a reportagem, mas não aceitaram se identificar. Todos eles moram há mais de 30 anos na comunidade e têm lembranças de Angélica da infância até a adolescência. Hoje, a casa da família está vazia no andar superior e o térreo foi alugado para outras pessoas há cerca de dois meses.
— Ela teve uma vida marcada pelo abandono. Ela já nasceu marcada pelo abandono. A mãe rejeitou ela ainda bebê. Deixou ela no hospital. A mãe abandonou a própria filha. Ela teve os avós, mas cresceu com essa marca, sem o nome da mãe na certidão — conta uma vizinha, que conhecia a avó da jovem.
Outra vizinha, que reside na mesma quadra onde Angélica morava quando menina, se emocionou e segurou o choro ao falar sobre a morte da jovem:
— Essa menina (gaguejando, fazendo esforço para continuar) era muito querida. Até os 14 ou 15 anos ela morou aqui na rua. Agora fazia muito tempo que eu não via ela por aqui. Pobre dessa menina — lamentou a moradora.
Um vizinho lembra que a jovem, quando criança, demonstrava sinais de que precisava de atenção:
— A Angélica era uma criança carente e tinha algo no olhar. E isso me faz pensar em como as pessoas podem ser invisíveis até para a gente. Nunca sabemos o que acontece em outras casas. Ela teve uma vida cheia de provações — conta um morador que mora a algumas quadras da casa da família.
Outra vizinha ouviu sobre a morte em uma emissora de rádio:
— Fiquei sentida. Coitadinha. Todos ficamos sentidos.
Um morador da Rua Evandro Casagrande também tem lembranças dela.
— Lembro dela menina, quando ia para a escola. A avó morreu há muitos anos e quem criou ela mesmo foi o avô. Depois que ele morreu, há uns dois anos, ela não veio mais aqui. Eu fiquei muito triste. Tenho filhos e filhas e, quando li tudo o que ela passou... É horrível.
O passado de abandono, segundo o relato dos moradores, levou a jovem a escolhas que, para vizinhos, deixaram a vida dela ainda mais difícil.
Angélica nasceu em 20 de outubro de 1994, em Farroupilha, e estudou do 1º ao 6º anos na Escola Municipal de Ensino Fundamental 1º de Maio. Na escola, as professoras atuais não têm lembranças do tempo em que ela frequentou o colégio. Em 17 de junho de 2009, aos 15 anos, ela foi transferida para a Escola Municipal de Ensino Fundamental Antônio Minella. No colégio, não há registro de que a jovem tenha frequentado as aulas.
— Ela engravidou na adolescência, mas não sei com quem ficou o bebê. Se ele foi para a adoção. Era só uma menina e com muitos problemas — lembra uma das vizinhas.
A outra complementa:
— Vi ela grávida na adolescência, e depois ela seguiu um outro caminho. E ela veio cada vez menos aqui. Não importam as escolhas dela, a menina estava perdida.
Atendimentos
Quando pequena e na adolescência, Angélica teve acompanhamento do Conselho Tutelar. Também passou por atendimentos em programas sociais. Em Farroupilha, ela foi atendida no Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas), em 2013. O último atendimento foi em 22 de outubro de 2020 no Centro de Referência de Assistência Social (Cras).
Já em Caxias do Sul, em julho de 2022, ela foi para a Casa de Passagem São Francisco. Passou seis dias no local e solicitou desligamento. Em 6 de agosto, procurou atendimento pela última vez no Centro Pop Rua. Na noite de 27 de novembro, a jovem morreu. Saiu do anonimato para ser personagem de uma história com fim brutal. Angélica não teve velório. O corpo dela foi sepultado no cemitério de Farroupilha, na tarde da última segunda-feira (28).
Após ter sido preso, o motorista do carro foi liberado e responde o inquérito em liberdade.