A angústia da perda de um filho, aliada a dor de não poder se despedir, uniu as mães dos três brasileiros mortos em combate na Guerra da Ucrânia contra a Rússia. As famílias tem um grupo em um aplicativo de conversas e trocam mensagens sobre a incerteza e a falta de informações de onde estão os restos mortais dos familiares. A carta foi redigida pela professora de São José dos Ausentes, Cleuza Marisa Búrigo, 60 anos, mãe de Douglas Búrigo, 40, e pelas mães da paulista Thalita do Valle, 39, e do gaúcho André Luís Hack Bahi, 44, primeiro brasileiro a perder a vida no conflito no Leste Europeu. Os relatos foram reunidos pelo irmão de Thalita e encaminhados ao presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, cobrando o envio dos restos mortais dos voluntários.
— A intenção é sensibilizá-lo pela nossa situação — conta a mãe de Búrigo, que era chamado de Dodo pelos amigos e familiares.
Ele perdeu a vida em um bombardeio na região de Kharkiv, em 1º de julho de 2022. Cleuza afirma que encaminhou toda a documentação digitalizada e assinada para autorizar a cremação do corpo do filho na Ucrânia, mas até o momento recebeu apenas um atestado de óbito:
— É desesperador porque até agora não recebemos as cinzas do meu filho. A nossa família sentiu a necessidade de fazer algo. De ficar algo concreto, sabe. Não tivemos um corpo para nos despedirmos e, até o momento, nem as cinzas — desabafa a mãe.
A irmã, Denise Búrigo dos Reis, divide com a mãe e familiares a agonia da espera.
— É bem difícil, a gente já está cansado. Fizemos uma capelinha na frente da casa dos meus pais para matar a saudade. É tipo um memorial. Não sabemos mais nada em relação às urnas. É bem angustiante.
Uma das amigas mais próximas de Búrigo, Rafaela Pereira, também está angustiada. Ainda em 13 de agosto ela esperava pela chegada das cinzas, porque haviam recebido a informação de que a urna já estava a caminho do Brasil.
— A gente já não tem mais nem noção se está realmente vindo a urna. Não conseguimos ter contato com mais ninguém. A única certeza que a gente tem é que está vindo a bandeira porque os amigos dele encaminharam e mandaram o rastreio pelo correio — desabafa ela, que considerava Douglas como um irmão.
Não há informações sobre onde estão as cinzas
As famílias também relatam na carta que foram procuradas por uma suposta representante do Exército da Ucrânia. Ela solicitou dados pessoais deles e prometeu o envio dos restos mortais, que não chegaram até o momento.
"Ela solicitou diversas informações e confirmou estar com todos pertences, incluindo fardas pessoais, documentos e cartões bancários dos soldados, inclusive pediu para ficar com uma destas fardas pessoais como lembrança, em outro caso pediu que enviasse dinheiro para o envio do corpo alegando que haveria posteriormente um reembolso. (...) Ela confirmou que havia feito o envio das cinzas e pertences dos nossos filhos, mas nunca chegaram (...)", diz o texto.
Os familiares temem que os dados repassados à mulher sejam usados em algum golpe, já que a mulher é citada em uma reportagem do jornal britânico Daily Mail, que a identificou como autora de golpes com base em falsificação de documentos na Austrália e em Portugal.
Confira um trecho da carta redigida pelas mães
A carta começa lembrando o apelo por alistamentos feito pelo próprio presidente ucraniano após a criação da Legião Internacional de Defesa Territorial da Ucrânia. "Nossos filhos ouviram sua súplica e se solidarizaram, deixando suas famílias no Brasil e embarcando em missão humanitária.", cita a o texto endereçado ao presidente ucraniano.
(..) Eles morreram lutando bravamente e socorrendo os soldados e civis enfermos que foram obrigados a abandonar seus lares e sua rotina de vida normal devido à impiedosa invasão Russa. Deram as suas vidas pela pátria Ucraniana. Agora nós suplicamos ao senhor Presidente, por favor nos envie os restos mortais de nossos filhos, seus pertences que foram catalogados e garanta os seus direitos indenizatórios. Nossos filhos embarcaram com a garantia que seus dependentes receberiam um seguro de vida caso o pior ocorresse (...) Perdemos nossos filhos e estamos pedindo respeitosamente que nos deixem enterrar os seus caixões (...)
Autoridades
A reportagem entrou em contato por uma rede social com a Legião Internacional de Defesa Territorial da Ucrânia, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem. Em nota, o Itamaraty informou que mantém contato com os familiares:
"O Ministério das Relações Exteriores recebeu, por meio da Embaixada do Brasil em Kiev, confirmação do falecimento do nacional brasileiro, em território ucraniano, no dia 1º de julho, em decorrência do conflito naquele país e mantém contato com familiares para prestar-lhes toda a assistência cabível, em conformidade com os tratados internacionais vigentes e com a legislação local.
Em caso de falecimento de cidadão brasileiro no exterior, os consulados brasileiros poderão prestar orientações gerais aos familiares, apoiar seus contatos com autoridades locais e cuidar da expedição de documentos, como o atestado consular de óbito. O traslado dos restos mortais de brasileiros falecidos no exterior é decisão da família. Não há previsão regulamentar e orçamentária para o pagamento do traslado com recursos públicos.
Assim como tem feito desde o começo do conflito, o Itamaraty continua a desaconselhar enfaticamente deslocamentos de brasileiros à Ucrânia, enquanto não houver condições de segurança suficientes no país.
Ressalte-se que, em observância ao direito à privacidade e ao disposto na Lei de Acesso à Informação e no decreto 7.724/2012, mais informações poderão ser repassadas somente mediante autorização dos seus familiares diretos. Assim, o MRE não poderá fornecer dados específicos sobre casos individuais de assistência a cidadãos brasileiros."