Na manhã da última segunda-feira, assim como faz três vezes por semana, Ronaldo Diaz entrou na piscina da academia que frequenta no bairro São Pelegrino, em Caxias do Sul. Para muitos uma atividade corriqueira, para Ronaldo cada mergulho reafirma a conquista que foi fruto da reinvenção a que se propôs cinco anos atrás, quando decidiu que não seria a sua doença que o definiria ou diria até onde ele poderia ir e o que poderia alcançar.
Ronaldo, 40 anos, é portador de esclerose múltipla, doença autoimune que afeta o sistema nervoso central e pode comprometer diversas funções neurológicas, como a visão, os movimentos, o equilíbrio ou a sensibilidade em determinada parte do corpo. Pelo fato de seus sintomas se confundirem com o de outras doenças, o diagnóstico pode levar meses, ou até anos. No caso de Ronaldo, foram duas crises, com espaçamento de sete anos, sendo que apenas no segundo surto foi dado o diagnóstico. A história está relatada no livro Diários de um esclerosado, lançado pela editora Autografia (68 páginas. Preço médio R$ 35, pela internet).
A primeira foi aos 28 anos, em 2010, e começou com um formigamento na mão direita, que evoluiu para uma dor insuportável que afetou o braço e todo o lado direito do corpo, fazendo com que precisasse de ajuda para realizar as tarefas mais básicas ao longo de sete meses. O segundo surto, em 2017, foi quando o médico avaliou que os sintomas preenchiam os critérios que permitem diagnosticar a esclerose múltipla. Ouvir a sentença foi um baque.
– Fiquei sem chão. Quando ouvi que era uma doença incurável imaginei que ia passar o resto da vida na cama e dependente para tudo. Tinha pouca informação na época. Tive que ir a um especialista em Chicago (EUA) para ter uma perspectiva mais clara de como poderia tratar e ele me acalmou, dizendo para confiar na medicação prescrita. E ele estava certo. Além de estar estabilizado, hoje me tornei uma pessoa muito mais determinada a estudar, aprender coisas novas, como nadar, e a cuidar do meu corpo e da minha saúde – comenta.
A reação negativa de Ronaldo é comum a qualquer pessoa que recebe o diagnóstico de uma doença incurável, e era mais justificável anos atrás, antes da medicina avançar no diagnóstico e nas alternativas de tratamento que retardam a progressão, além de prevenir novos surtos.
– Dentre as doenças da área da neurologia, talvez a esclerose múltipla tenha sido a que teve um maior boom de tratamento e diagnóstico nas últimas duas décadas. Hoje tanto médicos quanto pacientes dispõem de muito mais informações e de melhor qualidade, e isso faz com que a gente busque cada vez mais esse diagnóstico, por mais que ele seja complexo. É uma doença plenamente tratável – atesta o médico neurologista caxiense Tobias Gaviraghi (confira a entrevista completa no fim desta reportagem).
ROTINA INTENSA
A esclerose múltipla é caracterizada pela inflamação em uma espécie de capa que recobre neurônios no cérebro e na medula espinhal, provocada pelo próprio sistema imunológico, daí ser uma doença autoimune. Por ser também degenerativa, o progresso pode debilitar o paciente e provocar quadros de infecções, mesmo que não haja novos surtos. Os tratamentos cada vez mais eficazes, no entanto, permitem a pacientes como Ronaldo levar uma vida plena.
Graduado em Letras pela UCS, estudante de Gastronomia e mestrando em Turismo e Hotelaria pela mesma universidade, Ronaldo mantém a EM controlada com um medicamento que toma por via oral, três vezes por semana. O remédio, obtido de forma gratuita pelo SUS, somado a um estilo de vida saudável – com alimentação regrada e rotina de atividades físicas – faz com que Ronaldo só lembre da doença quando recebe algum feedback de suas participações em lives ou de algum dos diversos eventos que participa:
– Quis escrever meu livro para que ele possa dar um conforto a quem já tem ou possa vir a ter o diagnóstico, ou para que a pessoa que tenha algum caso na família possa oferecer um suporte melhor. Eu passei pela depressão, mas venci e me reinventei com um propósito de vida muito mais claro. Quem nos define somos nós mesmos, não uma doença.
De acordo com a plataforma DataSUS, estima-se que haja no Brasil cerca de 40 mil pessoas que convivem com a esclerose múltipla, sendo 1,3 mil delas no Rio Grande do Sul e cerca de 200 pacientes em Caxias do Sul.
"Eu escolhi ser feliz"
Foram 11 anos desde a primeira crise, em 2002, até o diagnóstico de esclerose múltipla finalmente ser dado em 2013. Tanto a demora em descobrir a doença quanto a dificuldade que os médicos encontravam à época para receitar o melhor tratamento, fizeram com que a moradora do bairro Santa Corona, em Caxias, Leodir Luiza Camazzola, 55, passasse a precisar de cadeira de rodas para se locomover, devido à perda da força muscular nas pernas provocada pela esclerose.
A doença provocou sérias restrições em sua rotina, para além da perda do movimento nas pernas. A fraqueza no braço direito a impede de escrever, por isso interrompeu a faculdade de Matemática. Também teve de largar o emprego em um restaurante, e passou a viver do benefício da aposentadoria por invalidez. O hobby preferido, da costura, teve de se contentar em ensinar para as amigas. A rotina caseira, no entanto, é feliz. Desfruta da companhia dos dois cães, Blade e Theodor, lê e assiste a séries e filmes, especialmente de ação, e só sai de casa aos finais de semana, quando o filho a busca para algum passeio, ou quando precisa aplicar a medicação, na UPA da Zona Norte, a cada 45 dias.
– Quando o médico falou que era esclerose o que eu tinha, fiquei pensativa. Mas durou meia hora, só. Logo decidi que o fato de ainda estar viva era o mais importante, e que no restante a minha saúde é muito boa. Tenho tudo para ser feliz e foi essa a minha escolha. Fica chorando não faz bem e ainda provoca rugas – brinca.
Agora, com a volta da fisioterapia oferecida pela FSG, que voltou a ser oferecida regularmente após um período suspensa pela pandemia, a esperança de voltar a caminhar se renovou. Em cada sessão Leodir fica meia hora de pé, mas ainda não tem forças para firmar os pés no chão:
– Espero um dia voltar a caminhar, nem que seja mancando. Mas enquanto isso não vou me vitimizar, porque isso seria pior para mim e para os que convivem comigo.
ENTREVISTA: Dr. TOBIAS GAVIRAGHI
Médico neurologista caxiense que atende em consultório particular e também no setor de neurologia do Hospital Pompéia, o Dr. Tobias Gaviraghi esclarece, a seguir, algumas das principais dúvidas sobre a esclerose múltipla. O especialista destaca que, embora os avanços tenham sido significativos nos últimos anos, o diagnóstico ainda é "um quebra-cabeças", devido ao fato dos sintomas se confundirem com o de outras doenças. No entanto, é possível iniciar um tratamento mesmo sem a certeza da doença, sempre apresentando os riscos e os benefícios da escolha, que cabe sempre ao paciente. Confira a entrevista:
O que é a esclerose múltipla e o que se sabe sobre suas causas?
É uma doença primariamente autoimune, que acomete o sistema nervoso central. Antigamente se acreditava que apenas a substância branca era acometida, que é a capinha que envolve os nervos, mas hoje em dia já se sabe que ela também acomete a substância cinzenta, o que a torna uma doença de todo o sistema nervoso central.
A origem é a pergunta de um milhão. Não se sabe o que causa a esclerose múltipla. Sabe-se que pode estar associada a infecções na infância, a alguma carga genética, mas é uma somatória de fatores. Trata-se de uma doença multifatorial, sendo que a gravidade varia muito de pessoa para pessoa.
Como se chega ao diagnóstico de EM?
É um quebra-cabeças. Não há um exame diagnóstico que vá determinar sim ou não. Juntam-se dados da história clínica e do exame neurológico do paciente, do exame do líquido cérebro-espinhal, e a da ressonância magnética, que é um dos grandes pilares no diagnóstico. Com isso em mãos, tentamos, através de critérios, determinar se o paciente apresenta ou não EM. Em alguns casos os paciente não preenchem todos os critérios, mas a EM é o diagnóstico mais provável, sendo que nesses casos, em decisão compartilhada médico-paciente, pode se iniciar o tratamento no intuito de reduzir possíveis consequências futuras da doença.
Por que a EM afeta mais mulheres?
Doenças autoimunes, por questões biológicas, são mais comuns em mulheres: lúpus, artrite reumatóide, miastenia gravis, etc. A questão da predominância em brancos caucasianos é algo que se observa epidemiologicamente. Há estudos que relacionam níveis baixos de vitamina D, com maior incidência da doença, mas o mecanismo não é claro e, por esse motivo, a suplementação para prevenção de EM não é embasada por artigos científicos renomados.
Existe prevenção para a EM? E o que é possível alcançar com os tratamentos?
Não. O que a gente recomenda é aquilo que serve para qualquer doença, como atividade física, alimentação saudável e exposição ao sol, porém evitando horários que possam favorecer um possível câncer de pele.
Os tratamentos, que são as chamadas drogas modificadoras da doença, têm como objetivo reduzir os episódios de exacerbação da doença, e também evitar a progressão da doença. Pois, mesmo sem os surtos, a doença progride, ainda que muito lentamente. No momento em que há o surto, porém, é preciso procurar o atendimento médico com urgência, pois há medidas que podem ser tomadas, além da medicação contínua, para tornar o episódio mais brando e com menor impacto na vida do paciente.
A EM pode evoluir para óbito?
Igual às demais doenças neurológicas, quando a EM progride muito ela vai levar a uma maior dificuldade de mobilidade, de deglutição, de interação, e isso, na maior parte das vezes, vai ocasionar alguma infecção, principalmente pulmonar, e a infecção pode levar a pessoa ao óbito. É muito raro que um surto de EM leve ao óbito.
Todo o tratamento para EM é fornecido pela rede pública de saúde?
Não existe "tudo" quando falamos em medicina, mas uma grande variedade de tratamentos é liberada pelo SUS. É preciso a liberação pela Farmácia do Estado, que se encontra no CES (Centro Especializado em Saúde), após a consulta com neurologista que dará a comprovação de que a pessoa tem EM. Por sua prevalência, pelo impacto na vida do paciente e pelo custo do tratamento, a esclerose está dentro dos PCDTs (Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas) do Ministério da Saúde, fato que assegura o acesso as medicações através do SUS de forma gratuita e mais rápida.
É possível, então, levar uma vida plena com essa doença?
É claro que ninguém gosta de receber esse diagnóstico, mas, quando a gente fala em EM no consultório, a pessoa tende logo a achar que está recebendo uma sentença de que irá viver numa cadeira de rodas ou numa cama, ou que irá sofrer de um quadro demencial, que em seis meses estará inválida. O que a gente tem hoje, ao contrário disso, é que é uma doença crônica tratável, onde as pessoas, em grande parte dos casos, conseguem desempenhar as funções que elas desempenhavam antes. Com a progressão da doença podem surgir limitações, necessidade de adaptação, mas que não irá impedir que a pessoa tenha qualidade de vida, desde que siga com o tratamento adequado, e todas as terapias que forem necessárias (como fisioterapia, psicoterapia, terapia ocupacional, etc.).