A pandemia provocou uma série de mudanças na rotina das famílias que, como as aulas de forma remota, acentuaram o uso de computadores, tablets e celulares por parte de crianças e adolescentes. Isso faz com que esse público esteja ainda mais exposto a um risco silencioso e extremamente perigoso: os crimes praticados por meio da internet. Especialistas na área da segurança e da Pediatria, que prestam assistência a esse público infanto-juvenil, alertam que os pais devem intensificar os cuidados com os filhos quando o assunto é o meio virtual. Eles dão dicas de prevenção.
Quem tem mais de 30 anos, deve ter na memória a mãe ou o pai recomendando algo como "não converse com estranhos na rua" ou "não aceite doces de pessoas estranhas". O cenário mudou. Com as crianças passando mais tempo em mídias eletrônicas, os riscos da rua agora estão dentro de casa. Mas, as orientações devem seguir no mesmo sentido. A internet é um ambiente de infinitas possibilidades. É preciso direcionar, entre elas, quais são construtivas, educativas ou mesmo de diversão para as crianças e quais elas não devem ter acesso. Esse controle deve ser feito pelos responsáveis.
— Os benefícios da internet são inúmeros, como fonte de conhecimento e de diversão, mas também uma grande fonte de risco. E ocorre que os pais, por também estarem atarefados, têm essa falsa segurança de que as crianças estão dentro de casa e estão fora de perigo, estão só utilizando o computador. Na verdade, aí é que mora o perigo. Os pais não deixam uma criança sozinha em um shopping, mas a deixam sozinha em uma rede social, sem ter noção dos riscos que ela está correndo — alerta a delegada Sabrina Doris Teixeira, da Divisão da Criança e do Adolescente da Polícia Civil.
Isso porque os criminosos se utilizam dos meios, dos gostos, do vocabulário para se fazerem passar por crianças ou adolescentes para envolver as vítimas. E como esse é um público ainda em formação, muitas vezes não tem discernimento para identificar a ameaça.
— As crianças são muito inocentes. As vezes, acham que estão fazendo uma nova amizade com alguém de outra cidade ou Estado quando, na verdade, é um adulto criminoso que está por trás daquele perfil coletando dados — alerta a delegada.
A agente da segurança pública explica que a internet pode ser usada para prática de diversos crimes contra crianças e adolescentes, como aliciamento para fins libidinosos, para obtenção de material digital, como fotos e vídeos para abastecimento e divulgação em redes de pornografia infantil, ameaças, injúria por meio de bullying, estímulo à auto mutilação, estupro virtual, entre outros. Nos cinco primeiros meses deste ano, o número de casos registrados pelo Observatório Estadual da Segurança Pública, como condutas relacionadas a pedofilia na internet e outros meios de comunicação superou o do mesmo período do ano passado em 40%, passando de 10 para 14. Mas esse é apenas um recorte porque apenas uma parte dos casos chega aos órgãos de segurança e descritos de diversas maneiras.
— Durante a pandemia, todos os crimes praticados pela internet, de modo geral, aumentaram significativamente. Percebemos esse aumento, mas ele não é nada comparado ao que suspeitamos que ocorra. Os crimes praticados contra vulneráveis têm uma subnotificação muito grande. Então, mesmo que os registros tenham aumentado, eles não refletem a realidade porque muitos dos crimes não chegam ao conhecimento das autoridades — pondera a delegada, referindo que a suspensão das aulas presenciais por causa da pandemia também teve impacto negativo na detecção de casos, já que o ambiente escolar é onde, muitas vezes, eles são percebidos ou revelados.
A internet também é um ambiente propício para a incitação à prática de atos infracionais. Isso ocorre quando um adulto ou outro adolescente ou grupo instiga um adolescente a cometer práticas que, no âmbito dos adultos, são consideradas criminosas, como a violência ou a injúria (racial ou geral), por exemplo. A delegada Sabrina lembra que é equivocado o pensamento de anonimato na internet:
— Há uma falsa sensação de que a pessoa fala o que quiser, ameaça, e isso vai ficar no anonimato. Nós dispomos de tecnologia que identifica quem comete crimes (ou atos infracionais) pela internet.
Os pais devem ser honestos e orientar
Para evitar que os filhos se tornem vítimas de crimes pela internet, é possível adotar algumas práticas de controle, respeitando a privacidade e a individualidade dos filhos.
— Vale a regra: não fale com estranhos. Se só esse filtro fosse maior, já reduziríamos bastante as chances (de crime) — disse a delegada Sabrina.
Outra questão importante é desenvolver uma relação de confiança com o filho e dar liberdade para que ele possa contar quando sentir-se aflito ou desconfortável com alguma situação. A pediatra Maria de Fátima Fernandes Gea diz que os pais têm que saber com quem os filhos se relacionam, seja na forma presencial ou no mundo virtual. Ela coordena o Centro de Referência no Atendimento Infanto-Juvenil (Crai), em Porto Alegre, serviço especializado em atender crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.
— Para tudo requer uma idade, maturidade, mas sabemos que os adolescentes vivem nas redes sociais. É o público mais atingido por essa abordagem. Então, tem que haver essa supervisão dos pais, para saberem com quem os filhos estão se relacionando. Os pais têm que ter uma relação honesta com os filhos. Não podem ter vergonha ou pudor de ensinar que ninguém toca no corpo dele, que existem adultos que se passam por adolescentes para conhecê-los e que, daqui a pouco, vão pedir fotos deles. Esse esclarecimento, a família tem que dar.
A especialista também aponta para outro importante papel da família é estar atenta aos sinais que as crianças e adolescentes dão de que algo está errado:
— Se está tudo bem na família, não tem nenhuma situação que possa ser o agente causador de um comportamento estranho da criança ou do adolescente, e tem um filho que só quer ficar no quarto, se isola, não quer conversar, que está perdendo autoestima, ou criança que está irritadiça, ansiosa, tem que pensar nisso. Aí, entra o papel do pai ou da mãe que, se estiverem vigilantes, vão conseguir perceber essas mudanças e tentar intervir, que é o mais importante.
Um caso que ilustra essas situações resultou na prisão de um estudante gaúcho de Medicina de 19 anos, condenado em segunda instância, no ano passado, a mais de 12 anos de reclusão por adquirir, possuir e armazenar fotografias com cena de sexo envolvendo crianças. Entre elas, um menino de 10 anos, e por estupro virtual de vulnerável. O caso chegou à polícia porque o pai do menino, de São Paulo, percebeu que o filho trocava mensagens de conteúdo sexual com o suspeito. Ele levou o caso à Polícia Civil daquele Estado, que rastreou os diálogos e chegou a Porto Alegre, descobrindo que mensagens eram enviadas de computadores da faculdade onde o estudante era aluno.
Cuidados que podem ajudar na prevenção
Para as crianças e adolescentes:
:: Não fale com estranhos em redes sociais.
:: Cuidado especial em ambientes que parecem inofensivos, como jogos virtuais, por exemplo, e com mensagens privadas recebidas nesse contexto.
:: Não forneça dados pessoais, de onde estuda e onde mora. Não repasse nem poste fotos da casa, de veículos, em frente à escola ou com uniforme da escola nem com roupas íntimas ou sensuais, no caso de adolescentes.
:: Não abra arquivos ou anexos enviados com propagandas ou promoções que podem vir associados a conteúdos de jogos ou brincadeiras. Eles podem conter conteúdos impróprios para a idade ou podem abrir portas para invasores.
Para os pais:
:: Restrinja o acesso e monitore as redes sociais dos filhos. Verifique o histórico da internet de busca por conteúdos.
:: Configure os aplicativos de conversa ou rede social para mostrar a foto da criança ou adolescente apenas para os amigos.
:: Existem no mercado aplicativos de monitoramento que podem ser instalados em computadores e dispositivos móveis, que permitem controle de acesso, de tempo de uso, bloqueio de sites.
:: Oriente os filhos a não falar com estranhos, a desconfiar de pessoas que puxem conversa e façam perguntas por redes sociais. Oriente sobre a existência de perfis falsos e a não forneça dados pessoais nem fotos.
:: Não poste ou compartilhe fotos dos filhos bebês sem roupas.
:: Utilize literatura ou vídeos educativos para falar sobre o assunto e gerar conhecimento na criança ou adolescente. Quanto mais informação, maior é a chance de prevenção.
:: Fique atento aos sinais que a criança e o adolescente emitem se estiverem sendo vítimas de algum crime: isolamento, toque excessivo no órgão genital ou super estimulação, aumento no tempo de permanência na internet, distanciamento das demais pessoas da casa quando está utilizando internet, segredos, mudança de humor, irritabilidade, mudança de hábitos alimentares, baixa no rendimento escolar, pesadelos, problemas para dormir, sintomas autodestrutivos, como automutilação e pensamentos suicidas.
Os crimes ou atos infracionais (se praticados por adolescentes são equiparados):
:: Aliciar, assediar ou constranger criança com fim de praticar ato libidinoso, com pena de um a três anos de reclusão e multa.
:: Produzir, reproduzir ou vender fotografia, vídeo ou registro de cena de sexo envolvendo criança ou adolescente, pena de quatro a oito anos de reclusão e multa.
:: Disponibilizar ou publicar fotos, vídeos de sexo, com pena de três a seis anos de reclusão e multa.
:: Armazenar material contendo cenas de sexo ou partes íntimas envolvendo criança ou adolescente, com pena de um a quatro anos de reclusão e multa.
:: Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo ou partes íntimas por meio de adulteração ou montagem de fotos ou vídeo, com pena de um a três anos e multa.
:: Incitação ao crime, detenção de três a seis meses ou multa.
:: Ameaça, com pena de detenção de um a seis meses, ou multa.
:: Injúria (pode aparecer como consequência de bullying, quando são usadas palavras ofensivas contra a criança e o adolescente): se consiste em violência, detenção, de três meses a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência; se referir a raça, cor, etnia, religião, origem ou à condição de pessoa com deficiência, reclusão de um a três anos e multa.
:: Invasão de dispositivos móveis, pena de reclusão de um a quatro anos, e multa.
:: Estupro virtual: em decisão de pouco mais de um ano, o Tribunal de Justiça do Estado manteve condenação de estupro para um caso ocorrido por meio de sites de relacionamento e chat na internet, em que o réu fez com que a vítima se despisse e praticasse atos libidinosos.
Onde denunciar:
:: Na delegacia mais próxima, por meio de registro de ocorrência. Em Caxias, Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), na Rua Marquês do Herval, 1.178, no Centro, ou pelo (54) 3214 2014.
:: Disque 181, de denúncias do Estado.
:: 0800 6426400, da Divisão Especial da Criança e do Adolescente da Polícia Civil.
:: Conselho Tutelar.
* Os dados dos denunciantes e envolvidos são mantidos em sigilo.