Melissa Castanho, 43 anos, descobriu um pré-câncer no colo do útero em novembro do ano passado. A descoberta ocorreu durante consulta e exames de rotina feitos na rede particular de Caxias do Sul, já que o sistema de saúde pública estava com atenção voltada para atendimentos de pacientes de covid-19. A comprovação do diagnóstico veio junto da indicação médica de cirurgia para retirada do órgão afetado em até cinco meses. Diante da situação e do valor cobrado pelo procedimento (R$ 12 mil), desempregada e sem ter como arcar com o custo, Melissa procurou a rede pública. Refez consulta e exames, conseguiu um encaminhamento e a autorização da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) para realizar a cirurgia pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O problema é que, desde então, entrou para uma fila que pouco tem andado.
— O nível da minha lesão é 3, é o último nível. Meu nome está na lista. Mas é uma baita lista e estão suspensas as cirurgias. E eu fico assim... os dias vão passando. Não sei o que pode acontecer, daqui a pouco, se não faço. Estou apavorada — diz.
A fila a que a Melissa se refere, da ginecologia, tinha, até esta terça-feira (4), 481 pacientes aguardando por uma cirurgia em Caxias. Entre todas as especialidades, a fila é de 5.346 pessoas esperando por atendimento. Se considerarmos pacientes de outros municípios que realizam procedimentos em hospitais da cidade, são mais 1.168, totalizando 6.514 pessoas. As áreas com maior demanda represada são as de cirurgia geral (1,4 mil casos) e traumatologia (1.353 casos). Aliás, é dessa última o paciente de Caxias que aguarda há mais tempo por uma cirurgia, desde fevereiro de 2019. Na região, a cardiologia é a segunda área em demanda (131), perdendo apenas para a geral (174).
As cirurgias eletivas, aquelas que não são de urgência ou emergência, estão suspensas desde fevereiro em todo o Estado, segundo a Secretaria Estadual da Saúde (SES). Só neste ano foram três documentos do Centro de Operação de Emergência (COE) para covid-19 do Estado orientando que os hospitais suspendessem as cirurgias não emergenciais: o primeiro deles foi em 19 de fevereiro com prazo até 31 de março; outro em 29 de março, prorrogando a data até 30 de abril.
Nesse período, as equipes técnicas, a área física e os equipamentos hospitalares deveriam ser disponibilizados na integralidade para atendimento a pacientes suspeitos ou confirmados de covid-19 em função do crescimento acelerado no número de internações. Ao se aproximar do fim do prazo, no último dia 28, o COE emitiu novo documento estendendo a recomendação até 31 de maio. As duas últimas comunicações consideram, além da ocupação hospitalar, a situação crítica dos medicamentos do kit entubação.
Cirurgias eletivas autorizadas e não realizadas em Caxias:
:: Bucomaxilo 135
:: Cabeça/pescoço 151
:: Cardiologia 87
:: Cirurgia Geral 1.400
:: Cirurgia Pediátrica 302
:: Cirurgia Plástica 165
:: Cirurgia Torácica 139
:: Ginecologia 481
:: Mastologia 151
:: Neurologia 75
:: Oftalmologia 68
:: Otorrinolaringologista 138
:: Pneumologia 2
:: Proctologia 166
:: Traumatologia 1.353
:: Urologia 287
:: Vascular 246
Total: 5.346
Cirurgias eletivas autorizadas e não realizadas de pessoas de outros municípios:
:: Bucomaxilo 16
:: Cabeça/pescoço 128
:: Cardiologia 131
:: Cirurgia Geral 174
:: Cirurgia Pediátrica 22
:: Cirurgia Plástica 27
:: Cirurgia Torácica 70
:: Ginecologia 68
:: Mastologia 100
:: Neurologia 66
:: Otorrinolaringologista 6
:: Proctologia 52
:: Traumatologia 100
:: Urologia 98
:: Vascular 110
Total: 1.168
*Fonte: Secretaria Municipal de Saúde de Caxias do Sul
Fila de espera era maior antes da pandemia
Segundo a secretaria municipal de Saúde (SMS), a fila de espera em Caxias do Sul antes da pandemia era maior do que a de agora. Em fevereiro de 2020, eram 5.753 pacientes, 407 a mais do que atualmente, ou seja houve uma redução de 7%. A explicação, segundo Marguit Meneguzzi, diretora do Departamento de Avaliação, Controle, Regulação e Auditoria (Dacra), é que alguns procedimentos foram sendo realizados nesse período de acordo com a avaliação clínica e necessidade.
— Outro fator que interferiu foi a diminuição das consultas eletivas, as quais geram os laudos. Automaticamente, quando diminuem as consultas, a emissão de laudos vai diminuir. Outro aspecto é referente aos laudos que estão vencidos, que não foram revalidados pelos pacientes — explicou a gestora.
Os laudos têm validade de 12 meses e o paciente é orientado a revalidar caso não tenha feito o procedimento nesse período. Atualmente, estão sendo realizadas, de acordo com a capacidade instalada e disponibilidade de medicações nos serviços, cirurgias cardíacas e oncológicas e também cirurgias ambulatoriais que não precisam de leitos e anestesia geral. Porém, ainda não estão ocorrendo na mesma quantidade de antes da pandemia, o volume de procedimentos realizados é de cerca de 50%.
A prefeitura de Caxias programa iniciar em maio um plano para reduzir as filas de espera. Entre as medidas que podem ser adotadas está a realização de mutirões de consultas especializadas; a assinatura de convênios com instituições que disponibilizem atendimento médico especializado a exemplo das instituições de Ensino Superior; potencialização da Atenção Básica aumentando a resolutividade e reduzindo encaminhamentos a especialidades; instalação de um sistema nos moldes do telessaúde da Secretaria Estadual da Saúde; e reforço ao Centro de Especialidades em Saúde (CES), com atendimento nutricional; implantação de uma clínica de Fisioterapia no CES para pacientes pós-covid, entre outras iniciativas. As ações foram informadas ao vereador Juliano Valim (PSD) após requerimento de informações.
Suspensão também se deve à falta de remédios nos hospitais
Nas notas de suspensão de cirurgias eletivas, o Centro de Operação de Emergência (COE) para covid-19 do Estado apontou os casos em que os procedimentos seriam inadiáveis: pacientes gestantes, recém-nascidos e mulheres que deram à luz nos últimos 45 dias; pós-cirúrgicos para todos os tipos de cirurgias já realizadas; pacientes oncológicos, de cardiologia, neurologia, pediatria e traumatologia. Ou seja, um leque de procedimentos que não se enquadram como urgentes ou de emergência, mas que são importantes para impedir o agravamento de doenças, poderiam estar sendo realizados. Alguns até foram. O problema é que os hospitais esbarraram em outro entrave causado pela covid-19: a falta de medicamentos do chamado kit entubação. São bloqueadores neuromusculares, sedativos e anestésicos, imprescindíveis nas unidades de terapia intensiva (UTIs).
Os próprios comunicados do COE consideram posicionamento dos conselhos nacionais de Secretários de Saúde (Conass) e de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) que recomendaram a suspensão enquanto não houver a regularidade do abastecimento dos medicamentos utilizados na entubação.
Os efeitos da pandemia, de altas taxas de hospitalizações, priorização de pacientes covid e falta de medicamentos, que resultaram nas suspensões das eletivas, fizeram o número de cirurgias desse tipo despencarem nos hospitais. Entre as instituições duas maiores cidades da Serra, Caxias e Bento Gonçalves, o Tacchini, em Bento, foi o que teve a maior queda em percentual no comparativo entre o primeiro trimestre deste ano e o mesmo período do ano passado, 67,5%. A instituição chegou a suspender as cirurgias oncológicas, consideradas inadiáveis, por falta de medicamentos. Entre os de Caxias, o Hospital Virvi Ramos teve queda de 50%. No Hospital Unimed, o percentual foi semelhante, de 47%. O Hospital do Círculo registrou redução de 38%. O Hospital Pompéia foi o que teve menor taxa de redução, de 10%. O Pompéia diz que retomou as cirurgias eletivas nos últimos 20 dias.
— Existem algumas patologias que levam ao agravo das doenças, então, não podemos deixar de fazer — declarou Thiago Passarin, diretor técnico do Pompéia.
Confira a situação em hospitais de Caxias e Bento:
Hospital Geral
:: Realiza procedimentos sob anestesia local e geral, com alta a partir da sala de recuperação; procedimentos de alta complexidade que requerem intervenção a curtíssimo prazo, com reserva de UTI e leito possível; todas as cirurgias de emergência.
:: Todas as áreas estão igualmente comprometidas, cirurgias oncológicas, cardiovasculares, mastologia, urologia, cirurgia torácica, do aparelho digestivo, bariátrica, de cabeça e pescoço, pediátrica, plástica.
:: O HG foi adaptado para atender a demanda de pacientes com covid19. A maioria dos leitos estão sendo utilizados para este fim, comprometendo a capacidade de atender pacientes não covid-19. Não há leitos para internação, não há estoque suficiente de drogas compartilhadas entre o bloco cirúrgico e as UTIs para atender a demanda de cirurgias.
:: Não há previsão de retomada à normalidade das cirurgias eletivas devido à manutenção da ocupação total do hospital e da incerteza quanto à reposição das drogas para sedação, analgesia e bloqueio neuromuscular.
:: Foi criado o Núcleo de Agendamento Cirúrgico, que envolve a Regulação Interna de Leitos, o bloco cirúrgico, a Coordenação das UTIs, a Comissão de Colaboração Clínica e que mantém constante troca de informações com as equipes cirúrgicas, sob orientação da direção, para possibilitar a execução de procedimentos.
Unimed
:: Estão sendo realizadas todas as cirurgias eletivas de caráter ambulatorial, ou seja, que não necessitem de internação hospitalar. As cirurgias de urgência nunca tiveram interrupção.
:: No primeiro trimestre de 2020 foram realizadas 3.285 cirurgias, enquanto no primeiro trimestre de 2021 foram realizadas 1.746 cirurgias.
:: Há represamento em todas as áreas. Ele ocorreu devido à suspensão dos procedimentos eletivos, visto que o hospital priorizou, neste período, o tratamento dos pacientes com covid-19.
:: A retornada das cirurgias eletivas será gradativa, à medida que a ocupação hospitalar dos pacientes covid-19 vá diminuindo.
:: O hospital não tem pacientes em lista de espera para cirurgias eletivas, sendo que cada médico tem sua própria demanda de pacientes em espera.
Círculo
:: Estão sendo liberadas algumas cirurgias eletivas, mas com restrições, principalmente pela condição dos medicamentos. Cirurgias que dependam de recuperação em UTI e não são urgência, não estão sendo liberadas.
:: A ampliação para liberação cirurgias depende de estoque de medicamentos para anestesia que a indústria nacional não está abastecendo. O hospital importou remédios, mas, por causa do trâmite na importação, a previsão de chegada é para o início de maio.
:: No primeiro trimestre de 2021, foram 1.176 pacientes atendidos nas áreas de cirurgia geral relacionada ao aparelho digestivo, como tumores (inclui os exames de endoscopia e colonoscopia); ortopedia e traumatologia relacionadas, na maioria, a pacientes com fraturas; e urologia. No primeiro trimestre 2020 foram 1.891 atendidos.
Virvi Ramos
:: São realizadas apenas procedimentos cirúrgicos que não necessitem da utilização do kit entubação. Cirurgias ambulatoriais eletivas com uso de sedação local ou peridural, gases anestésicos.
:: Represamento maior em endoscopias e colonoscopias diagnósticas eletivas, cirurgias de otorrino infantil.
:: Redução de 50% no primeiro trimestre deste ano em comparação ao mesmo período do ano anterior.
:: O hospital registrou falta de medicamentos do kit entubação e falta de retaguarda de leitos de UTI para cirurgias de grande porte, em função ainda da alta ocupação de leitos por covid-19.
:: Não há previsão de retomada das eletivas, em virtude de não haver projeção de retomada das entregas do kit entubação nas quantidades necessárias e também, porque não houve ainda uma redução significativa na ocupação de leitos de UTI.
Pompéia
:: Seguiu fazendo cirurgias de urgência e emergência e as oncológicas.
:: O hospital foi redirecionado para cuidar dos pacientes com covid-19. Além disso, também foi impactado na questão dos medicamentos. Por isso, foram liberadas apenas as cirurgias realmente necessárias.
:: Nos últimos 20 dias voltou a fazer eletivas tanto do SUS quanto de convênios em todas as áreas, com tentativa de minimizar tempo de internação, quando possível. Hospital está atendendo 80% do que realizava normalmente. A ideia é em maio retomar a rotina.
:: O maior represamento ocorre nas áreas de ortopedia e traumatologia, que incluem procedimentos em coluna, quadril, joelho.
:: No primeiro trimestre de 2021 foram 1,8 mil cirurgias e no mesmo período de 2020, 2 mil.
Tacchini
:: As cirurgias oncológicas foram suspensas entre 23 de março e 1º de abril, por falta de medicamentos kit entubação.
:: Foram realizadas no primeiro trimestre deste ano 1.222 cirurgias eletivas e no primeiro trimestre de 2020, 3.783.
:: O represamento ocorreu devido à covid-19, principalmente, nas áreas de Otorrinolaringologia, Vascular e Plástica.
:: O hospital realizou a importação de remédios que devem chegar no dia 15 de maio. Até lá, os estoques ainda permanecerão baixos se o fornecimento nacional continuar no mesmo ritmo.
:: A retomada depende também da quantidade de pacientes críticos do hospital. Quanto mais pessoas internadas, mais remédios demandados.