A reinfecção por covid-19 confirmada há pouco mais de uma semana, no dia 29 de março, foi a gota d'água para que a médica Fernanda Dugatto, 34 anos, que trabalha há um ano na linha de frente no combate ao coronavírus em Caxias do Sul, decidisse reduzir sua carga horária no trabalho. Ela atua em unidades de pronto-atendimento do SUS e de convênios particulares da cidade.
Em um relato postado nas redes sociais no dia do diagnóstico, a médica alertou para a gravidade da situação e para a importância da conscientização em relação às medidas de prevenção ao contágio: "Hoje positivei mais uma vez para a covid-19. Após 46 dias da segunda dose da vacina, estou com medo: por mim, pelos meus, pelos teus", declarou em sua conta no Instagram.
Fernanda disse que tanto nesta quanto na infecção anterior, ocorrida em novembro de 2020, teve como sintomas apenas um cansaço extremo, necessitando de repouso. Ela destaca ainda que, na segunda vez, os sintomas foram menos intensos, e acredita que isso possa ter ocorrido em função da vacina. A profissional foi imunizada com doses da CoronaVac, aplicadas em 21 de janeiro e 11 de fevereiro.
— Eu realmente fiquei surpresa e com muito medo quando peguei de novo porque estava vendo os pacientes evoluírem com piora importante. Muitas vezes, após 10 ou 15 dias do início dos sintomas, eles apresentavam fibrose pulmonar e desfecho grave — comenta a médica.
No dia 23 de março, Fernanda perdeu uma tia-avó, que era muito próxima e que vivia em Porto Alegre. A idosa de 72 anos ficou internada por 14 dias, em quadro estável e, repentinamente, apresentou piora que a levou à morte. O sofrimento de Fernanda é comum aos familiares de muitos pacientes que ela atendeu ao longo de um ano. Somente em Caxias do Sul, até o final da manhã desta sexta-feira, foram registradas 775 mortes desde o início da pandemia.
"A gente não foi formado para trabalhar em cenário de guerra"
A sensação de impotência perante a pandemia, tanto em relação a seus familiares quanto em relação a seus pacientes, levaram Fernanda a um esgotamento físico e mental, algo que ela acredita ter contribuído para um descuido com a própria saúde. Ela relata que em novembro, quando teve a primeira infecção, sentia-se exposta pela alta demanda de atendimentos de síndrome gripal. A profissional conta que chegou a atender, em média, 50 pacientes em um plantão de 12 horas - em alguns dias esse número subia para 80. Com o aumento exponencial de casos registrados a partir da semana do Carnaval, Fernanda viu o colapso no sistema de saúde. Em Caxias do Sul, assim como em todo o Estado, leitos clínicos e de UTI tiveram superlotação, algo que motivou a adoção da bandeira preta pelo governo — ainda vigente, porém, agora, flexibilizada pela cogestão.
— Cheguei várias vezes em casa chorando depois de um dia exaustivo. Falta de pontos de oxigênio, de leitos ou falta do que fazer para reverter o quadro do paciente nos deixa com sensação de impotência. Estamos acostumados a manejar e vê-lo se recuperar, mas estes pacientes, por vezes, não respondem aos tratamentos e evoluem para intubação e óbito. A gente não foi formado pra trabalhar em cenário de guerra — desabafa a médica.
Para Fernanda, a conscientização em relação aos cuidados preventivos é mais importante do que nunca, uma vez que as novas cepas do vírus apresentam comportamentos agressivos no organismo das pessoas:
— Quem não atende casos de covid-19 não tem noção do que está acontecendo e, mesmo com os profissionais da saúde falando, as pessoas parecem não acreditar. As pessoas estão se descuidando porque tomaram a vacina, mas é importante destacar que ela tem um período para começar a imunizar. No início da pandemia havia cuidado e solidariedade com os idosos, por exemplo, para fazer compras, agora não vemos mais isso, mas eles, assim como todos nós, ainda estão correndo risco.
Confira o relato publicado por Fernanda no Instagram:
"Há um ano eu trabalho como médica na linha de frente contra a COVID-19.Nos primeiros 6 meses de pandemia as pessoas não iam aos hospitais por medo do covid. Após, no lugar do medo, deu-se a negligência, e então o contágio em massa se estabeleceu. Foi a primeira vez que tive covid-19, em novembro de 2020 na semana do meu aniversário. Eu estava exausta de tantos atendimentos no covid, me descuidei.
No início da pandemia víamos pessoas idosas e com comorbidades como diabetes e hipertensão evoluindo com gravidade. Por isso, os jovens se permitiram transgredir, se sentiram imunes ao vírus. Os demais, por não suportar + o distanciamento social, se permitiram tirar férias e se reunir com as famílias no natal(e eu me incluo nesse grupo).
No dia 21/01/21 recebi a primeira dose da CoronaVac, com alegria e esperança. A segunda dose deu-se no dia 11/02/21 e foi a ultima vez, desde então, que eu me permiti encontrar com meus familiares.
Logo após, a variante P1 (de Manaus) chegou até nós. Meus locais de trabalho tornaram-se caóticos, inúmeros pacientes infectados e MUITOS deles evoluindo com gravidade, a maioria das vezes após 20 dias do início dos sintomas. Agora os pacientes não eram só idosos, eram jovens com a obesidade/sobrepeso como comorbidade em comum. Vi fibroses pulmonares extensas, atendi muitos pacientes que não responderam a quase nenhum tratamento, o que me fez sentir impotente. Fiquei exausta, trabalhei além do que deveria, perdi uma tia muito querida há 7 dias, tive que adiar meu casamento, entrei em esgotamento físico e mental, me descuidei novamente.
Hoje (29/03) positivei mais uma vez para covid-19. Após 46 dias da segunda dose da vacina e de verdade, estou com medo, por mim, pelos meus, pelos teus. Por isso, o meu relato aqui, é um apelo. Eu gostaria que as pessoas se conscientizassem sobre a necessidade do distanciamento social, pq após as 2 semanas de bandeira preta, percebemos uma redução no número de casos e diminuição da lotação dos hospitais.
Na minha opinião, hoje, a única forma de se proteger é não pegar covid-19. Que Deus nos abençoe e que eu possa contar para vocês daqui 25 dias que, por ter feito a vacina, eu não tive um desfecho grave.".
Casos de reinfecção por covid-19 estão em estudo
O primeiro caso de reinfecção por nova variante do coronavírus no Brasil foi confirmado ainda em janeiro, em uma paciente de Salvador. Em entrevista à GZH publicada nesta quinta-feira (8), o virologista Thiago Moreno explica que uma parcela da população que tem a doença na forma branda não desenvolve memória imunológica.
Ele explica que a possibilidade de reinfecção com sintomas mais contundentes se dá independentemente de o indivíduo contrair a mesma variante do coronavírus ou uma nova.
— A reinfecção é possível, e isso é algo similar com o que acontece com coronavírus sazonais humanos e até alguns coronavírus veterinários — diz o pesquisador.
Um estudo do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) coordenado por ele constatou casos de reinfecção pelo coronavírus em que os pacientes tiveram sintomas mais fortes da doença na segunda contaminação. O especialista recomenda que pessoas já infectadas mantenham os cuidados para a prevenção da covid-19 e explica que mesmo os exames laboratoriais comuns que permitem a detecção de anticorpos não são capazes de determinar se o corpo formou defesas neutralizantes.
Vacinas têm eficácia contra casos graves
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), os casos de reinfecção não descartam a eficácia das vacinas. Dados técnicos apontam que tanto a CoronaVac quanto a Oxford/AstraZeneca, vacinas que estão sendo aplicadas em todo país, possuem 100% de eficácia contra casos graves da doença, aqueles que precisam de internação de pacientes.
Para obter essa imunização, no entanto, é preciso realizar corretamente o ciclo de aplicação: a CoronaVac tem na bula intervalo de duas a quatro semanas, já a Oxford/AstraZeneca tem recomendação de intervalo entre doses de 12 semanas (três meses).
Segundo especialistas, a proteção começa, em média, duas semanas após a aplicação da segunda dose no paciente, podendo variar de acordo com faixa etária e outros aspectos. Não há evidências que comprovem que estar vacinado evite a transmissão às outras pessoas, por isso, cuidados como distanciamento e uso de máscara devem ser mantidos mesmo após a imunização.