A reabertura do Restaurante Popular de Caxias do Sul, com almoços diários disponibilizados por R$ 1, deverá contemplar ao menos uma parte da crescente população em situação de vulnerabilidade social do município. Um ano depois dos primeiros registros locais de covid-19, a instabilidade do mercado de trabalho e do suporte governamental às iniciativas de assistência contribui para o processo de agravamento da pobreza e o consequente aumento da fome. Em 2020, a Fundação de Assistência Social (FAS) repassou mais de 52 mil cestas básicas a beneficiários cadastrados - em 2019 foram 9 mil. A alta de 477,7% na demanda por alimentos junto à assistência escancara uma situação que pode se tornar ainda mais crítica neste ano. Somente nos dois primeiros meses de 2021, mais de 10,5 mil cestas já foram fornecidas pela entidade.
Para a presidente da FAS, Katiane Boschetti da Silveira, o cenário deste início de 2021 está tão desafiador quanto no ano passado, com o agravante do valor da cesta básica, que tem aumentado.
— A cesta básica é um benefício eventual e, por isso, a concessão não se dá necessariamente todos os meses para as mesmas famílias, por exemplo. A procura tem se mantido parecida com o ano passado: nesse primeiro semestre conseguimos adquirir o número previsto de cestas básicas, mas estamos retomando campanhas para ter a garantia pro segundo semestre — afirma a presidente do órgão responsável pelas políticas públicas de assistência social do município, que garante os repasses para os Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) e também subsidia as Organizações da Sociedade Civil (OSCs) atuantes no município.
A suspensão do auxílio emergencial ao longo de três meses — com retomada em valores mais baixos — assim como o enfraquecimento do mercado de trabalho são alguns dos fatores que, de acordo com Katiane, refletem no aumento da demanda pelo fornecimento de cestas básicas. Segundo dados da Agência Sine/FGTAS de Caxias, os encaminhamentos de seguro desemprego saltaram de 16.380 em 2019 para 25.470 em 2020. Em 2021, com os meses de janeiro e fevereiro, o total já chega a 2.872 requerimentos feitos de forma presencial e também online.
Em função do aumento da demanda por cestas básicas, ao longo de 2020 a FAS chegou a contar com repasses federais para aquisição dos alimentos, mas para esse ano a entidade ainda não tem a confirmação de quando receberá recursos e nem de qual será o valor disponibilizado. Segundo Katiane, dentre as estratégias adotadas para garantir a continuidade da distribuição das cestas está o trabalho de articulação entre as políticas públicas municipais.
— Trabalhamos nesta unificação para que as famílias recebam a partir de critérios, evitando duplicidade e, assim, não falte para outras. Neste ano estamos reorganizando a forma de concessão da cesta básica, a partir dos CRASs, visando garantir que as famílias recebam o benefício e ainda possam ter um atendimento técnico, uma vez que não enxergamos a vulnerabilidade apenas do ponto de vista financeiro, mas também do ponto de vista relacional — garante.
"A cesta básica me ajuda muito"
Moradora do bairro Diamantino, Gerci Silva de Souza, 65 anos, garantiu as refeições do mês com a retirada de mais uma cesta básica junto ao Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) Cruzeiro do Sol, no bairro Cruzeiro, onde fica parte dos alimentos licitados pela FAS. A beneficiária é uma das caxienses que passou a retirar as cestas básicas em função da pandemia. No caso dela, um rompimento de tendão no braço acabou impedindo que ela seguisse produzindo as peças de crochê que complementavam a pensão de um salário mínimo, que recebe desde 1984, como viúva. A sua atual condição de saúde demanda uma cirurgia, que já foi autorizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas que foi suspensa por tempo indeterminado, assim como ocorreu com outros procedimentos eletivos em função da alta ocupação hospitalar ocasionada pela covid-19.
— A cesta básica me ajuda muito, não sei o que faria sem — relata Gerci, que gasta boa parte dos seus rendimentos com medicamentos não disponibilizados pelo SUS.
Natural de Piratuba (SC), Gerci cursava magistério e lecionava, mas depois que ficou viúva, mudou-se para Caxias do Sul, onde sua irmã já estava residindo. Trabalhou na indústria e também fi garçonete e atendente em lancheria. Ela conta que os trabalhos eram informais, o que impediu que ela pudesse encaminhar a aposentadoria. Viver em um apartamento próprio, em um condomínio residencial do Diamantino, é um dos poucos alentos na vida da idosa, que ainda dá conta de pagar as parcelas do imóvel financiado pelo Minha Casa, Minha Vida, e não possui direito a outros benefícios financeiros por receber a pensão mensal.
— Antes o crochê e algumas reformas de roupas me ajudavam muito, porque o que se faz hoje com um salário mínimo? Graças a Deus estou conseguindo pegar as cestas básicas. São simples, com feijão, arroz, massa, óleo... mas também com o preço que estes produtos estão custando, já ajuda muito — garante ela.
Extrema-pobreza aumenta 34,8% em Caxias do Sul
Em 2020, o Cadastro Único - por meio do qual são viabilizados os programas assistenciais e as próprias cestas básicas da FAS - registrou um total de 8.605 famílias em situação de extrema pobreza no município. O número é 34,8% mais alto do que o registrado em 2019, quando 6.381 famílias constavam no cadastro com renda total mensal de até R$ 89 por mês. O valor equivale a 8,5% do salário mínimo e não paga sequer um botijão de gás de cozinha, que hoje custa R$ 95 em Caxias do Sul.
Paralelo a isso, o número de famílias na faixa da pobreza, que possuem renda de R$ 89,01 até R$ 178, diminuiu no mesmo comparativo. Em 2019 eram 3.236 cadastros, sendo que em 2020 o total chegou a 2.940. Este grupo representa 12% do total de pessoas no Cadastro Único.
Também têm direito aos programas famílias com renda de R$ 178,01 até meio salário mínimo (R$ 550), que eram 6.520 em dezembro. A faixa de extrema pobreza já era e continua sendo a mais numerosa, representando 35% do total de beneficiários cadastrados.
"A situação é muito grave", diz presidente da UAB
O cenário de empobrecimento é percebido pelas lideranças das Associações de Moradores de Bairros (Amobs), ligadas à União das Associações de Bairros (UAB). É para os líderes comunitários que muitas pessoas estão recorrendo quando encontram-se em situação de dificuldade e, inclusive, de fome. O presidente da UAB, Valdir Fernandes Walter, afirma que a situação está pior do que em 2020.
— A partir de janeiro começou a aumentar muito a demanda por auxílio e, se as coisas continuarem desse jeito, acredito que possa piorar ainda mais. As pessoas não podem sair de casa, pelo risco de contágio, estão sem renda, e os preços estão mais altos. A situação é muito grave — afirma o representante, que, junto da associações, está articulando uma campanha de arrecadação de alimentos.
Tanto ele quanto os representantes de bairros têm sido procurados por moradores que afirmam não conseguir acesso aos programas viabilizados por meio do CRAS, assim como ao repasse de cestas básicas. Os relatos dão conta da dificuldade no agendamento, que deve ser feito pelo telefone.
— Quando nos procuram, a gente encaminha pro serviço, mas muitas pessoas voltam afirmando que não conseguiram contato. Acabamos tentando ajudar de outras formas, recorrendo a empresas e outras entidades que também realizam campanhas — relata Valdir Vieira da Silva, presidente da Amob do Belo Horizonte.
No Desvio Rizzo, a presidente da Amob, Izabete Toss Lima também busca ajudar da maneira que consegue aos moradores que relatam a dificuldade de acesso ao atendimento.
— Existe o Cadastro Único, mas as pessoas que perderam o emprego recentemente não estão neste cadastro. Também fui procurada por pessoas que chegaram a receber a cesta básica, mas disseram que não era suficiente para a família. Nestes casos, fui arrecadando com pessoas conhecidas, vai se formando uma corrente e até conseguimos repassar algo, mas está longe de resolver o problema que estamos enfrentando. Estamos vivendo uma situação muito atípica e o impacto está em toda a cidade, não apenas em alguns bairros — relata a presidente.
O aumento da fome em Caxias do Sul também é percebido por iniciativas solidárias que atuam no município e que também acabam suprindo parte da crescente demanda por alimentos.
— A situação de pobreza já existia na cidade e tem piorado mais ao longo da pandemia. Sabemos que são inúmeras as iniciativas, mas elas não chegam nem perto de suprir as necessidades de muitas famílias que estão completamente abandonadas, vivendo em situação extremamente precária, sem condições de telefonar ou mesmo se deslocar até os locais de atendimento — relata Maila Costa, integrante do Compartilha Aê, uma organização comunitária que arrecada e destina doações na cidade desde maio de 2020.
A iniciativa conta com cerca de 10 estudantes e trabalhadores na arrecadação de alimentos, material escolar, máscara de proteção, assim como de valores em dinheiro destinados à compra destes e outros itens. Segundo Maila, as campanhas são realizadas de acordo com a identificação das demandas, beneficiando moradores de diferentes bairros da Zona Sul e Zona Oeste da cidade.
— A gente vai formando a rede com representantes dos bairros, moradores que também colaboram, sempre buscando suprir essas necessidades básicas e informando as pessoas acerca dos direitos que elas possuem — afirma a integrante.
A FAS afirma que o agendamento para retirada das cestas básicas está sendo feito de forma remota e que, em casos onde é identificada a dificuldade de acesso, os alimentos estão sendo entregues a domicílio.
De acordo com a presidente, a entidade identificou e busca solucionar um problema com as linhas no qual as pessoas relatam ouvir "chamando", quando, na verdade, o telefone está ocupado. Cada CRAS também conta com um número de WhatsApp para contato:
:: CRAS Norte
Telefone — (54) 3901-1484 ou (54) 3901-1591 / WhatsApp — (54) 98401-5710
Endereço: Rua das Fruteiras, 925 — Santa Fé / Lot. Santo Antônio
:: CRAS Oeste
Telefone — (54) 3901-1492 / WhatsApp — (54) 98403-9017
Endereço: Rua Abel Postali, 1767 — Cidade Nova
:: CRAS Leste
Telefone: (54) 3028-3955 ou (54) 3901-1507 / WhatsApp: (54) 98404-7309
Endereço: Rua Julia Gomes, 21 — Sagrada Família
:: CRAS Sudeste
Telefone: (54) 3901-1487 / WhatsApp: (54) 98402-8931
Endereço: Rua Nadyr Antônio Antonioli, 21 — Planalto
:: CRAS Centro
Telefone: (54) 3027-5948 ou (54) 3928-3209 / WhatsApp: (54) 98404-7892
Endereço: Rua Dr. Montaury, 1017 — Centro
:: CRAS Sul
Telefone: (54) 3029-2923 / WhatsApp: (54) 98434-7920
Endereço: Rua Laudelino Ribeiro, 157 — Bom Pastor
No Banco de Alimentos, doações estão mais baixas
Embora inúmeras iniciativas solidárias tenham surgido de forma pontual ou permanente desde o início da pandemia, no Banco de Alimentos de Caxias do Sul a arrecadação baixou. O programa ligado à Secretaria Municipal da Agricultura, Pecuária e Abastecimento atende hoje a 101 instituições credenciadas, complementando 8,5 mil refeições diárias. De acordo com o diretor da Segurança Alimentar e Nutricional, Edson da Rosa, o aumento da demanda é percebido pelas instituições, mas a arrecadação caiu praticamente pela metade em função da pandemia.
Ele relata que, tradicionalmente, uma das principais fontes de donativos era o Sábado Solidário, que envolvia voluntários de diversas entidades, uma vez por mês, coletando alimentos nos supermercados. Na pandemia, o projeto foi substituído pela campanha Caxias do Amor, que mantém permanentemente carrinhos nos supermercados para receber as doações, mas não recebe a mesma quantidade.
— Nos supermercados, os voluntários falavam da ação, o que não acontece agora por conta das restrições da pandemia. Mas o caxiense é solidário, as pessoas ainda estão se adaptando — avalia o diretor.
Nos primeiros meses de realização, a campanha teve bastante êxito, mas ao logo de 2020 o volume de doações para o Banco de Alimentos caiu, mantendo-se hoje na média de 4 toneladas arrecadadas ao mês. Outro indicativo é que alimentos como arroz e feijão praticamente nunca faltavam, porém nos últimos meses isso tem ocorrido.
A intensificação de campanhas que abastecem o Banco de Alimentos, incluindo a Caxias do Amor, é uma das estratégias de combate à fome adotadas pelo município. Segundo Da Rosa, ações em parceria com instituições estão sendo organizadas, mas doações podem ser feitas na sede localizada na Rua Jacob Luchesi, 3.181, bairro Santa Catarina. Caso o doador não tenha condições de ir até o local, pode entrar em contato com a equipe que busca os alimentos. Para isso é preciso entrar em contato pelo telefone (54) 3211.5943 ou 3901.1183 ou e-mail bancodealimentos@caxias.rs.gov.br.
Doações também podem ser feitas pelo site Doe Alimentos.