Mil e três mortes por decorrências da covid-19, até o dia 12 de janeiro, foram registradas na Serra gaúcha. No dia 15 de abril de 2020, Etelvino Mezzomo, de 64 anos, entrou para a triste estatística como o primeiro morador da Serra a perder a guerra contra o vírus. Morador de Serafina Corrêa, foi infectado em uma viagem ao exterior, mais precisamente no Paraguai. Internado em Bento Gonçalves, permaneceu por 33 dias até morrer. Então foi trazido a Caxias do Sul para ser cremado em uma cerimônia que contou apenas com a presença da esposa Jussara Bordin Mezzomo, de um primo e um irmão.
Não bastassem os dias de aflição e angústia enquanto esteve hospitalizado, a família encarou mais um duro golpe. Na hora do adeus, o caixão lacrado, como símbolo de uma dor que leva ainda mais tempo para ser superada. Nove meses depois, a estatística registra mais de mil famílias enlutadas na Serra. Enquanto seguem os debates em torno da urgência de um plano nacional de vacinação e da eficácia, de tratamentos precoces, diariamente a Serra tem assistido a famílias que perdem entes queridos, tendo de encarar velórios fugazes, restrição de pessoas nas capelas mortuárias e o caixão lacrado.
Na linha de frente dessa guerra, estão homens e mulheres, armados como podem para combater o coronavírus. Para além das equipes médicas, há ainda um esquadrão que trabalha na limpeza, na cozinha, no atendimento ao público e nos setores administrativos, empenhados em salvar vidas. Se a tristeza toma conta das equipes a cada morte, logo surgem lágrimas simbolizando a vitória, porque mais um paciente aqui e mais um ali, outro lá, têm saído com vida dos hospitais. A irmã Adelide Censi, diretora presidente do Hospital Nossa Senhora da Oliveira, de Vacaria, ensina que a fé tem sustentado o trabalho dos profissionais na batalha contra a covid:
— O que nos mantêm fortes, aqui no hospital, com coragem para continuar, é a nossa fé em uma força superior. Se Deus nos colocou aqui para cuidar dos doentes, ele nos dá força para podermos levar adiante essa missão.
Durante a pandemia, o religioso que visitava os pacientes do hospital não pode mais distribuir as bênçãos. A irmã Adelide explica que, por ser um frei idoso, que está no grupo de risco, precisou abrir mão dessa função. No entanto, médicos, profissionais da saúde e pacientes fizeram chegar suas súplicas à irmã Adelide, que precisou convocar a ajuda de homens de Deus para levar ainda mais esperança ao hospital. No dia 17 de setembro de 2020, até o bispo de Vacaria, Dom Silvio Guterres Dutra, foi abençoar pacientes e toda a equipe de profissionais do hospital.
— A vida está acima de tudo e Deus é o autor da vida. Mas Deus escolhe pessoas dentro do povo para cuidar dessa vida da qual ele é o autor. O que mais me marcou profundamente durante essa pandemia é que as pessoas acreditam e precisam de Deus — diz, emocionada, ao lembrar-se da bênção do bispo.
Reinventar-se diariamente
Há um ano, os profissionais de saúde do Complexo Hospitalar Unimed, em Caxias do Sul, começaram a traçar os planos de contingência para o combate a covid-19. Ainda não havia casos em Caxias, mas o planejamento antecipado revela-se hoje, depois de tanto tempo, um dos trunfos para os baixos níveis de mortalidade dentro do hospital. Além do planejamento, Vinícius Lain, diretor técnico do Complexo Hospitalar Unimed, destaca ainda a capacidade de adaptação da equipe, como sendo condição essencial para aprimorar os processos.
— Todos os dias aprendemos a tratar melhor ainda do paciente. Mas esse tempo todo tem nos exigido uma capacidade de nos reinventarmos todos os dias — explica.
As mudanças vão desde as trocas de setor, passando por um controle ainda mais rigoroso quanto à higiene, ao treinamento sistemático dos profissionais de todas as áreas quanto à necessidade do uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e a eventual suspensão de cirurgias eletivas para ampliação de leitos de UTI. Tudo isso em uma dinâmica que impacta diretamente o trabalho de cada profissional. Essa demanda crescente, que teve seu pico na segunda quinzena de dezembro do ano passado, tem gerado uma maior tensão por parte das equipes.
— No ano passado, tivemos muita procura por acompanhamento psicológico, tanto da parte médica, quanto dos demais funcionários, porque percebemos que a covid desestabiliza emocionalmente as pessoas. Como nossos colaboradores estão, diariamente, se expondo, com risco de levar a covid para dentro de suas casa, essa preocupação ainda se mantém. Hoje em dia, no entanto, percebemos que o ambiente dentro da UTI está mais leve e os profissionais estão sabendo lidar melhor com isso, justamente por esse acompanhamento — revela Lain.
O médico e diretor técnico da Unimed entende que a grande lição que precisamos ainda exercitar na pandemia e, para depois que tudo isso passar, é a empatia.
— O que eu gostaria que ficasse é a capacidade de, todos os dias, nos colocarmos no lugar do outro, entendendo o quanto é difícil ter um familiar internado e que tu não podes visitá-lo. Ou, ainda, compreender que um funcionário do hospital sai de casa para trabalhar, às vezes, procurando quem pode ficar com seu filho, para que ele venha ao hospital para cuidar de pessoas que ele nem conhece. Que haja mais empatia entre as pessoas — deseja Lain.
Lutar juntos, de mão dadas
Diariamente um batalhão de profissionais sai de suas casas para salvar vidas. Para Roberta Pozza, médica e diretora de divisão hospitalar do Tacchini Sistema de Saúde, em Bento Gonçalves, a luta é de mãos dadas entre pacientes, familiares e profissionais da saúde.
— Quando um paciente luta pela vida, nós estamos lutando junto com ele. Ver alguém que chegou aqui em estado grave deixar a estrutura hospitalar ao lado dos familiares, não tem preço. Isso nos motiva todos os dias. Com ou sem pandemia, o que nos faz trabalhar todos os dias com afinco é a oportunidade de ajudar a salvar vidas.
Todo esse esforço intensificado à rotina dentro dos hospitais, que seguem com suas demandas de sempre, mais casos de pacientes com covid-19. Roberta diz que é desgastante não saber quando essa situação vai ter fim, mas também preocupante por causa das constantes demonstrações de falta de respeito da sociedade com relação às regras de distanciamento social.
— Nossa preocupação, quando a população não respeita os regramentos de distanciamento social, é em relação ao reflexo que isso traz para o hospital. Porque, quanto maior o número de pacientes simultâneos, mais difícil se torna oferecer um atendimento de excelência a todos — explica.
Apesar do cenário ainda turbulento, a pandemia exigiu repensar como tornar o atendimento mais humanizado, revela a Roberta..
— Na UTI, por exemplo, aumentamos o número de psicólogos para atender pacientes e familiares. Além disso, nos adaptamos rapidamente ao uso das videochamadas como uma alternativa para que os pacientes mantivessem contato afetivo com seus familiares e, ao mesmo tempo, os familiares pudessem atualizar-se sobre o estado de saúde dos pacientes.