A morte é um choque. Por pior que seja a enfermidade, há sempre um fio de esperança, mesmo que tênue, que espirituais ou ateus se agarram com a mesma bravura. O anúncio da morte causa uma dor intensa, apesar do nível de fé, porque deixa um buraco que expõe a falta dessa pessoa. Aí vem a pandemia de coronavírus e o luto, que sempre foi uma etapa triste, tende a deixar esse processo ainda mais tenso. Porque na hora de dizer adeus, não será mais como antes. É que os velórios mudaram, por determinação dos protocolos das organizações de saúde e dos decretos municipais. A mudança mais impactante será para as cerimônias de despedidas das pessoas que morreram por covid-19, como é o caso do aposentado Etelvino Mezzomo, 64 anos, ontem, em Bento Gonçalves.
— Nesses casos, não se realiza velório. A pessoa é levada do hospital diretamente ao cemitério ou ao crematório. Quando a pessoa vai ser cremada, abrimos a possibilidade da família acompanhar uma leitura de reflexão, uma mensagem de acolhimento, durante 10 minutos, que é feita em uma estrutura externa montada com uma tenda — revela Mateus Formolo, diretor comercial do Grupo L Formolo.
Além disso, o caixão deverá estar lacrado. Nem mesmo será permitido um visor de vidro para a família poder ver o ente querido. Esse procedimento, complementa Formolo, será adotado tanto para mortes confirmadas ou mesmo suspeitas de covid-19. Porque essa é a determinação dos órgãos de saúde.
— É importante que as famílias entendam que esses procedimentos e todos os cuidados, inclusive com as roupas de proteção dos agentes funerários é essencial para o bem de todos, não só de quem trabalha, mas dos seus familiares também — observa Formolo.
MORTES POR OUTRAS CAUSAS
Para os casos em que não houver confirmação, sequer suspeita de covid-19, haverá mudanças e flexibilizações nos velórios.
— Em todos os casos estamos adotando as orientações das autoridades. Quando não for morte por coronavírus, nem for suspeita, os velórios deverão ter no máximo 4h de duração, e a circulação de pessoas deverá ser de apenas 30% da capacidade que a sala comportar. Temos salas que podem variar entre 13 a 20 pessoas. É preciso que as famílias tenham bom senso, e vamos interferir o mínimo possível, mas se percebermos que há mais pessoas do que é permitido, vamos falar com o familiar que contratou o serviço para orientar que tenham menos pessoas — explica Mateus.
VESTIDOS PARA TRABALHAR
Tem causado impacto para quem vê os agentes funerários vestidos literalmente dos pés à cabeça, como forma de prevenção e proteção enquanto trabalham. Formolo explica que eles usam macacão, botas de borracha e todo o grupo de equipamentos de proteção individual (EPI).
— Para se ter uma ideia, temos um protocolo de uso de quatro pares de luva. Quando termina um procedimento, o agente tira o primeiro par, e assim por diante, até o momento em que ele encerra seu trabalho, e retira toda a roupa, que é descartada ou vai ser lavada. Aí sim, ele tira as luvas para que suas mãos estejam desinfetadas.
Mateus diz que o Grupo L Formolo conta com 105 profissionais, sendo que cerca de 60 deles está preparado para fazer os trabalhos de remoções, como agentes funerários. Com dificuldades para conseguir comprar as roupas, procurou uma empresa para que desenvolvesse um modelo de macacão para os funcionários utilizarem, feito a base de tecido TNT.
"Na falta de tanto, um olhar é tudo", avalia especialista em luto
A psicóloga Ana Reis, do Instituto Luspe, tem se dedicado por décadas a pesquisar o comportamento humano em situações de pressão, angústia e tristeza gerada em tragédias, mortes, procurando ajudar pessoas a assimilar o luto. No entanto, ela revela que pandemia têm afetado, além das famílias enlutadas, os profissionais e religiosos envolvidos nessa rede de cuidados. Ela cita desde enfermeiros e médicos, como os profissionais que lidam com toda a cerimônia fúnebre. No grupo L Formolo, explica Mateus Formolo, há três psicólogas fazendo esse atendimento.
Em meio a esse novo cenário, Ana Reis diz estar muito preocupada com o luto complicado.
— Todas as funções do ritual fúnebre, importantes para passar por esse momento, sucumbiram com a covid-19. Desde o "dizer adeus", com o reconhecimento pessoal da singularidade da perda, passando pelo reconhecimento social, do apoio da família e amigos, presentes no velório, que ajudam na concretude dessa morte. Tudo isso nos foi roubado pelo coronavírus — desabafa.
Para ela, até o acompanhamento por parte dos religiosos passa a ser um desafio, porque em muitos casos, eles só poderão dar as bênçãos e orações à distância, por meio de chamadas por vídeo.
— Em um atendimento recente, uma psicóloga aqui do Instituto Luspe me disse que na falta da possibilidade de abraçar alguém e de estar mais perto para confortar essa pessoa, o olhar da gente dá conta. Quando falta tudo temos de nos preocupar com os pequenos detalhes. Por isso, é tão importante o acompanhamento de todas as pessoas que fazem parte desse processo, desde os familiares, passando pelas equipes médicas, religiosos, agentes funerários e até mesmo coveiros, que também mereciam palmas por estarem na linha de frente — defende.
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