A chamada "linha de frente" do combate à covid-19 é formada por diversos profissionais, principalmente da área da Saúde. Um dos elos desta corrente que, bravamente, ampara a comunidade diante de uma crise sanitária histórica para Caxias do Sul — e para o mundo — é a residência médica. Na busca por especialização, em diferentes áreas, estes médicos-estudantes enfrentam bravamente os desafios diários que uma pandemia promove dentro da rotina hospitalar, encarando a experiência como algo que irá marcar suas carreiras — e suas vidas — para sempre.
— Além da paramentação e de todos os cuidados, mudou o fluxo de trabalho e a maneira como nos relacionamos com os familiares dos pacientes. A rotina exige muito trabalho, não consigo imaginar alguém exercendo a medicina sem gostar daquilo que faz. A pandemia reafirmou a minha escolha e a sensação de que estamos fazendo a coisa certa — relata a médica Fernanda Zanco do Santos, 28, que cumpre o segundo ano de residência no Hospital Geral (HG), com especialização na área de infectologia, escolhida ainda antes de ela imaginar que viveria uma pandemia mundial.
— Essa é uma experiência que eu jamais teria em qualquer outra situação. Acompanhei toda a reorganização do hospital e a formulação dos protocolos internos de prevenção ao contágio — conta.
Natural de Passo Fundo e formada em medicina pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Fernanda convive com uma realidade comum a muitos médicos residentes que atuam na região: a distância da família. Se por um lado a saudade aperta, por outro o afastamento representa, para ela, a segurança de seus familiares.
— A preocupação com o contágio é menor. Eu visitava meus pais uma vez por mês e, nos dois primeiros meses da pandemia, não fui. E depois, quando fui de novo, vi eles pelo lado de fora e voltei — lembra a residente.
O risco de contaminação é inerente a quem presta atendimento aos pacientes com covid-19, seja em casos leves, moderados ou agudos, embora a atuação dos residentes seja mais restrita na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Geral, em função do nível de experiência que a função demanda.
Mesmo tomando todos os cuidados, com equipamentos de proteção individual disponibilizados pelo hospital, da equipe de 64 participantes do programa de residência no local, oito já foram afastados por terem contraído coronavírus. Uma dessas pessoas é Bruna Siqueira, 31, que está no segundo ano de residência em medicina interna, formação que abre caminhos para especialidades como a medicina intensiva.
— Tive sintomas leves, mas que me deixaram bastante debilitada em casa. Mesmo tendo passado pelo doença continuo atenta, tomando todos os cuidados. É algo muito novo, a medicina ainda está descobrindo muita coisa — afirma a médica residente, que atua na enfermaria da clínica médica e também na UTI do Hospital Geral.
Em meio aos inúmeros desafios, Bruna encara o momento como uma oportunidade de se desenvolver, ainda mais, na profissão que escolheu.
— A gente amadurece, se obriga a estudar muito mais, acompanhar as novas diretrizes. Um bom profissional é aquele que está sempre atualizado — avalia.
O desempenho da equipe de residentes, aliás, é motivo de orgulho para os médicos que acompanham o trabalho dos recém-formados. Como coordenador do Programa de Residência em Clínica Médica, o médico intensivista Fabrício Piccoli Fortuna é responsável por uma equipe de 17 profissionais e destaca a importância do trabalho que vem sendo realizado.
— É um pessoal jovem, destemido, que cumpre seu papel com heroísmo, assim como os profissionais da enfermagem e outras áreas que atuam aqui dentro. Algo que deve ser reconhecido pela sociedade. A pandemia tem sido um desafio até mesmo para mim, com 20 anos de medicina, e mesmo com o cansaço, o estresse e todas as mudanças que estamos vivendo, eles não baixaram a cabeça — reconhece o coordenador.
Experiências que vão refletir na medicina
Para o médico oncologista, professor do curso de Medicina da Universidade de Caxias do Sul (UCS) e diretor de ensino do Hospital Geral, André Reiriz, a pandemia marca um momento de mais atenção voltada para a saúde o que, na visão dele, pode representar uma valorização da atividade hospitalar no futuro. Além disso, ele acredita que, como profissional médico, inserido em uma rotina de trabalho intensa, ainda não seja possível mensurar a dimensão do momento vivido. Ainda assim, os reflexos, sejam eles negativos ou positivos, serão inevitáveis:
— A covid-19 está trazendo uma sintonia mais consistente entre os profissionais que compõem uma mesma equipe, chancelando a multidisciplinalidade como um fato. Além disso, fazer a formação em um período de pandemia, com todas as adversidades que se apresentam... Não tem como sair disso igual — conclui.
Impactos técnicos e emocionais
De acordo com o coordenador da Comissão de Residência Médica (Coreme) do Hospital Pompéia, o médico hematologista Tiago Daltoé, a redução de atendimentos eletivos impactou o processo de formação de residentes em muitos hospitais, ocorrendo, porém, de forma menos significativa no Pompéia. Segundo ele, o fato da unidade ser referência em pronto socorro para 1,2 milhão de pessoas de toda a região, manteve o volume de trabalho desempenhado pelas equipes, incluindo a de médicos residentes, que conta com 40 profissionais.
Além de afetar o cronograma das especializações — questão ainda debatida pela Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) — a pandemia também coloca os médicos residentes em um lugar de responsabilidade e comprometimento ainda maiores.
— A gente tem relatos de outros programas, fora de Caxias do Sul, nos quais os residentes apresentaram atestado ou buscaram outras alternativas para não trabalhar. Não vimos isso em nenhum momento no Pompéia. O grupo entendeu a situação e agiu conforme aquilo que se espera de um profissional médico durante uma pandemia.
Desistir da residência em clínica médica realmente não foi alternativa considerada por Túlio Zortéa, 24, que está no primeiro ano da especialização, integrando a equipe do Hospital Pompéia.
— Pelo aprendizado, pelo meu futuro, pela minha família e também pela situação que estamos vivendo: não me vejo em outro lugar que não seja aqui. Estaria muito frustrado se não estivesse fazendo isso — comenta o residente, lembrando da situação de muitos colegas que ainda cumprem o período acadêmico do curso e que dariam tudo para estarem atuando.
Distante da família, que vive em Nova Bassano, Zortéa afirma que a busca pelo equilíbrio emocional tem sido uma constante, principalmente pela preocupação presente, em relação à família, aos pacientes e amigos, fruto do contato diário com a dura realidade de uma doença letal e pouco conhecida.
— A perda de alguns pacientes, até mesmo mais jovens do que eu, me marcaram muito. É uma situação que engloba todo mundo e que colabora para a união de todos os profissionais aqui do hospital. Apesar das diferenças, estamos sempre nos ajudando para superar todos os empecilhos — garante.
Ele afirma que o acompanhamento psicológico oferecido pelo Núcleo de Apoio ao residente tem sido fundamental para o exercício da profissão. A psicóloga clínica Débora Nicolao Cavali, que integra a equipe, conta que o serviço já era prestado ainda antes da pandemia, colaborando para a implementação de um atendimento cada vez mais humanizado no Hospital Pompéia e acompanhando os diversos dilemas que sempre fizeram parte da formação médica, como a perda de pacientes, por exemplo.
— Agora passamos a trabalhar também na mudança da perspectiva deles, no modo de encarar a situação. Embora o processo de formação possa estar sendo afetado, eles estão tendo aprendizados que jamais teriam, com a oportunidade de fazer a diferença. O acolhimento é necessário e trabalhamos muito esse título de "herói" concedido aos profissionais da saúde, que acaba dando a ideia de que não precisamos de cuidados. Os médicos são referência, sim, mas é preciso entender que somos todos humanos e que, para ajudar o outro, é preciso estar bem — explica a psicóloga.