Mamãe e Papai
Entendo que vocês não estão mais juntos como um casal, mas preciso que vocês entendam que, para mim, continuarão sendo minha família: MEU pai e MINHA mãe. Isso nunca mudará.
Vocês continuarão sendo minha MÃE e meu PAI mesmo que vocês encontrem outra(s) pessoa (s). Permitam-me gostar do (a) meu futuro padrasto (madrasta). Só existirá um pai e uma mãe em minha vida, aquele que me cuidará para sempre. Esse sentimento não mudará.
Agora, eu morarei com a/o (mamãe/papai), mas os dois continuam sendo importantes e responsáveis por mim, afinal o amor que vocês sentem por mim ainda existe, né? Eu gosto da mesma forma dos dois.
O texto reproduzido acima é o trecho de uma carta entregue aos casais que se separam no Fórum de Flores da Cunha. Redigido em uma folha com desenhos e em linguagem simples, como se fosse escrito por crianças, trata-se de um recado dos filhos. Inspirado na cartilha do divórcio do Ministério Público (MP) do Distrito Federal e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o texto foi elaborado pelo Juiz de Direito da cidade serrana, Enzo Carlo di Gesu. A arte foi criada pela Eme Criação.
As palavras que parecem óbvias pedem aos adultos que não esqueçam que as crianças precisam de amor, carinho e cuidados dos dois. E funciona como um lembrete: casais se separam, pais, não. As palavras emocionam por mostrar aos adultos o sentimento que as crianças e adolescentes enfrentam com o fim de uma relação, onde muitas vezes ficam em meio a tensões, raiva, tristeza e frustração dos pais. Pensando em abordar o divórcio e humanizar essas situações, o juiz decidiu criar a carta, que é entregue junto às sentenças que envolvem conflitos na Vara de Família, como divórcios, pensão alimentícia e violência doméstica.
A ideia surgiu porque ele tem estudado e participado de cursos sobre uma nova visão de como lidar com conflitos, que se chama Direito Sistêmico ou Justiça Sistêmica. Existe um projeto na Comarca de Flores da Cunha que busca a resolução de conflitos à base da Constelação Familiar, que é uma terapia criada pelo filósofo e psicoterapeuta alemão Bert Hellinger. Basta entrar na sala do Júri para perceber os cartazes com frases motivacionais, que tentam aproximar familiares e ajudar a resolver problemas que, por vezes, acabam destruindo famílias.
- Selecionamos os processos que tem mais relações humanas como os da Vara de Família, que são mais sensíveis. E a gente convida as pessoas para comparecerem ao Fórum e fazer a sessão de constelação familiar com a equipe, que é formada também por psicólogos -explica o juiz.
A ideia é não aplicar apenas as leis, mas contar com terapeutas que entendam a natureza e o conflito dos seres humanos e das relações, em busca de harmonia. O juiz contou com a ajuda da psicóloga Camila Reichert para revisar o conteúdo:
- A carta é um resumo do que acreditamos na tentativa de evitar conflitos futuros. Ela tem esse efeito de aproximar o Judiciário em uma linguagem mais sensível e próxima das pessoas, porque mesmo que tenhamos o cuidado de não usar termos jurídicos, às vezes há um pouco de dificuldade em entender a sentença, que também tem uma função didática.
O juiz ressalta ainda que a carta é uma maneira de tocar os pais.
- Acredito que é uma forma também de fazer com que as pessoas pensem em como lidar com cada situação, porque nem sempre tem quem diga como agir. Ao ler a cartinha, acabam se sensibilizando e se conscientizando. Ela pode até evitar futuras demandas no Judiciário. Então, funciona até como uma prevenção _ acredita.
Quando as audiências presenciais, que estão canceladas em função da pandemia, forem retomadas, a carta será entregue nos encontros.
- A reação das pessoas têm sido positiva. Uso recursos sistêmicos, frases motivacionais e várias técnicas para fins de conciliação na Vara de Família. Sabemos que os conflitos não são só aqueles que estão exposto nos pedidos e, muitas vezes, os verdadeiros sentimentos não são ditos. Essa ambientação, essa relação de confiança que se estabelece nas sessões mais conversadas é mais humana, é o momento de deixar a pessoa falar, desabafar _ explica Gesu.
A carta está disponível também no balcão do Fórum e foi encaminhada pelo juiz, a pedido de outros fóruns e pessoas, a demais Estados que acessaram postagens nas redes sociais sobre o assunto.
"Às vezes, a separação não é somente libertadora aos pais", diz psicóloga
Em outro trecho da carta, o pedido é que os pais se respeitem e não falem mal um do outro na frente dos filhos.
Eu gosto da mesma forma dos dois. Às vezes fico confuso (a) quando um fala mal do outro pra mim. Isso me deixa, no fundo, triste. Eu sou apenas uma criança e preciso de limites. Isso será importante para meu futuro. Se possível, combinem o que eu posso e o que eu não posso fazer. Fico confuso (a) também quando um desrespeita a autoridade do outro.
A psicóloga Camila Reichert lembra que a constituição familiar é distinta do casamento.
- Quando entendemos isso na prática, diferenciamos o papel sexual do paternal. O papel sexual é aquele constituído por duas pessoas. O papel paternal é representado pelas figuras responsáveis pela criança. Dentro desse entendimento, quando um casal se separa está dentro da configuração sexual. Mesmo não havendo mais aquele casal, haverá a constituição de um pai e uma mãe, ainda que não morando mais no mesmo espaço.
Ela ressalta que geralmente há a ideia que as brigas iniciam após uma separação, e que os filhos não deveriam presenciar esse tipo de atitude. Porém, se um relacionamento chegou ao fim é provável que a relação não estava bem:
- Às vezes, a separação não é somente libertadora aos pais, mas para criança. Os pais tem que cuidar, proteger e valorizar a imaturidade daquele serzinho tão indefeso, que não entende a relação do homem e da mulher, pois só sabe olhar para o pai e a mãe que brigam.
Ela frisa ainda que a maneira como os pais lidam com a separação impacta diretamente nas crianças. E ressalta que toda a tentativa é válida na busca de aproximar os pais dos filhos:
- Conforme a idade da criança, outras inseguranças podem aparecer, como ela mesma se sentir responsabilizada pela ruptura da relação dos pais ou sentir-se abandonada quando uma das partes não a procurar. Nós percebemos o quanto essa cartilha tocou as pessoas. Quando conseguimos tocar os sentimentos, temos transformações e resultados positivos porque tocamos o interior e é quando podemos dar o real significado ao que estamos vivendo.