Pela primeira vez desde o início da pandemia, municípios da Serra passaram a ter a covid-19 como uma das principais causas de mortes. Isso quer dizer que o novo coronavírus descoberto no final do ano passado vem sendo responsável pela alta de óbitos numa lista que antes concentrava câncer e diabetes, entre outros, ou motivos não naturais como assassinatos e acidentes de trânsito. Em algumas situações, a covid-19 supera inclusive os óbitos por doença cardíaca, tradicionalmente conhecida como uma das enfermidades que mais mata no Brasil e no mundo.
O levantamento da reportagem considera dados das vigilâncias epidemiológicas de Caxias do Sul, Vacaria, Gramado e Flores da Cunha. Também entram na análise geral os números de homicídios obtidos com a Polícia Civil e Brigada Militar e de acidentes de trânsito com morte repassados pelo Detran e pelas próprias prefeituras. Bento Gonçalves, que é o município da região com o maior número de mortes pela covid-19, ainda não inseriu os dados no sistema. Em razão disso, a análise de Bento foi baseada nas estatísticas do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde. Até a quarta-feira (29), 71 pessoas morreram por complicações do vírus em Bento, o que corresponde a 18% dos óbitos em geral no município desde o início do ano.
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Além de comparar as principais causas de mortes mês a mês no primeiro semestre, a reportagem traça uma projeção para o mês de julho, que se consolida até o momento como o período mais letal na Serra desde o início da pandemia.
As chamadas "doenças da modernidade" são as que mais matam no Brasil, de acordo com dados do Ministério da Saúde. Na Serra, a situação é a mesma. Entre as principais, aparecem as enfermidades do aparelho circulatório, que inclui o acidente vascular cerebral (AVC), os diversos tipos de câncer e as doenças respiratórias e cardíacas.
Ao analisar as estatísticas, chama a atenção que as doenças parasitárias e infecciosas no Brasil _ na qual a covid-19 se insere _ correspondem a 3% dos óbitos no país. Com o coronavírus, no entanto, em 2020, a tendência é que o índice aumente.
MORTALIDADE
Das cidades com mais casos, Caxias do Sul apresenta uma taxa de crescimento de 275% no número de óbitos por covid-19 de maio para junho e uma taxa de crescimento de 106% de junho para julho. Até o final de junho, 19 pessoas perderam a vida em decorrência da doença, sendo quatro em maio e 15 em junho. Já neste mês, o número subiu para 50 casos. Para comparação, as taxas de crescimento das outras causas de morte, excluindo acidente de trânsito, mantiveram um ritmo mais comedido, incluindo uma redução na média mensal.
_ Como as mortes de covid-19 estão diretamente relacionadas às novas contaminações, e estamos tendo um crescimento médio de 3% ao dia, podemos estimar em torno de 4,8 mil casos totais de covid-19 até 15 de agosto de 2020. Mantendo uma taxa de letalidade de 1,66% como está agora a taxa média de Caxias do Sul, isso significa aproximadamente 80 óbitos até 15 de agosto _ analisa Isaac Schrarstzhaupt, consultor para projetos de risco e que tem se dedicado a fazer análises sobre os números da pandemia.
Ele complementa:
- Isso se confirmando, a covid-19 passaria a ser a segunda maior causa de morte em Caxias do Sul já no mês de agosto. Claro que isso é apenas uma projeção e depende muito do comportamento das pessoas. Se adotarmos medidas mais firmes de isolamento, esta taxa de crescimento reduz, e aí o número de óbitos reduz junto - pondera.
Reflexo sobre doenças mais comuns
A alta taxa de mortalidade provocada pela pandemia causa muita preocupação porque, ao contrário do câncer, das doenças cardíacas e do diabetes, que possuem uma relação direta com a genética e os hábitos de vida, a covid-19 é contagiosa, o que agrava a possibilidade de mais mortes.
- Tem a questão da disseminação, que é o que chamamos de taxa de reprodução. Isso significa que a pessoa contaminada pode passar o vírus para duas a três pessoas - ressalta a médica infectologista Andréa Dal Bó, diretora das vigilâncias em Saúde de Caxias do Sul.
Sobre o aumento de óbitos decorrentes da doença, a médica ressalta que é reflexo do maior número de contaminações nesse período.
- As pessoas estão circulando mais na cidade ou recebendo visitas em casas ou visitando familiares e amigos sem usar máscara, e aumenta o contágio, principalmente, entre as pessoas acima dos 60 anos. Às vezes o idoso não sai de casa, mas recebe a visita de alguém que não protege o rosto e que leva o vírus até essa pessoa. É o que mais vemos nos hospitais - aponta ela.
Considerando as estatísticas da Global Burden of Disease, John Hopkins University, as principais causas de morte no planeta tendo como base o ano de 2017 foram as cardiopatias e neoplasias (cânceres). Contudo, em 2020, a pandemia de covid-19 tem causado um número crescentes de mortes em todo mundo.
- Como causa isolada, a covid-19 já ultrapassou o diabetes, os homicídios no Brasil, pneumopatias e outras, mesmo sendo possível alguma subnotificação - aponta a diretora técnica do Tacchini Sistema de Saúde, médica Roberta Pozza.
Ela ressalta ainda que as demais doenças diferem da covid-19 em vários aspectos porque não são contagiosas e em geral são crônicas:
- A covid-19 é uma doença infectocontagiosa, causada por um vírus, com transmissão rápida, cujo dano se dá diretamente ao organismo humano pela invasão deste agente às células. É uma doença aguda, de evolução rápida. O Sars-Cov-2 funciona adicionalmente como coadjuvante em pessoas já comprometidas com doenças crônicas como o câncer e as doenças cardiovasculares, entre outras, resultando numa sinergia em relação ao aumento da gravidade e mortalidade nos indivíduos comprometidos.
Lembrando que cerca de 80% das pessoas contaminadas não têm sintomas ou têm sintomas leves, o que potencializa o risco de contágio e de propagação do vírus. A subnotificação da doença pode tornar o cenário ainda mais grave. Especialistas também alertam para o reflexo da covid-19 sobre as causas de morte mais comuns, como câncer e doenças cardiovasculares. Isso porque, em função da pandemia, do isolamento, da demanda dos serviços de saúde e da falta de diagnósticos precoces, o número de mortes em função dessas doenças também tende a aumentar.
SAIBA MAIS
A covid-19 caminha para se tornar uma das principais causas de morte no país. No Rio Grande do Sul, mais de 1,6 mil pessoas perderam a vida até 29 de julho, em decorrência de complicações provocadas pelo vírus. Até o final de junho, o coronavírus já havia matado mais do que infarto, homicídio, AVC e acidentes de trânsito no Estado. O recorte na Serra é diferente porque, enquanto no RS a primeira morte por coronavírus foi confirmada em 25 de março em Porto Alegre, a Serra registrou o primeiro óbito somente em 15 de abril, em Serafina Corrêa. O número de óbitos, porém, aumentou na região em julho.
PROJEÇÃO EM JULHO
:: Cada município tem um sistema de dados sobre causas de mortes e há divergência nos números dentro da mesma cidade e em relação ao Estado porque a atualização não ocorre ao mesmo tempo.
:: Assim, dados sobre mortes por câncer, diabetes e outras causas só estão atualizadas até junho nos sistemas de saúde pública, uma vez que os óbitos de julho ainda estão sendo inseridos.
:: Por isso, para entender como a covid-19 tem se mostrado letal na comparação com outras doenças, a reportagem faz uma análise de julho baseada em dados confirmados e dados projetados.
:: Ou seja, os números das mortes pelas demais doenças em julho, que constam nos quadros desta reportagem, são, na verdade, uma estimativa a partir de uma média de casos dos meses anteriores. Isso possibilita comparar a incidência da covid-19, que tem dados confirmados, com lista das outras principais causas de morte.
- Caxias do Sul teve de março a junho uma média de 57 óbitos mensais por câncer. Desta forma, calculamos 57 óbitos por câncer em julho. Como as outras causas de morte não crescem de forma exponencial como a covid-19, esta média cria um valor realista - explica Isaac Schrarstzhaupt.