O mundo sem a palavra é um tipo de mundo que nem existe mais. Porque ninguém consegue imaginar que mundo seria esse, sem a vida que a palavra dá. Ou, de que jeito Moisés iria contar e, depois escrever, como é que Deus fez o mundo? Tá lá escrito em Gênesis, o livro que conta o início de tudo: "Disse Deus: Haja luz; e ouve luz". Crer ou não nesse relato bíblico são outros quinhentos, mas é inegável que há poder na palavra. Nesse exato instante, há tantos lutando pela sua versão da verdade, ou argumentando que a sua palavra é a que carrega justiça. Mas há também tantos outros que andam catando as letras, como quem cata feijão. Porque escrever, nos ensina o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, é como catar feijão.
Leia ainda
Professores se reinventam para dar continuidade às aulas durante isolamento social
Pais se manifestam a respeito de possível retorno das aulas em Caxias do Sul
Alfabetizar é mais do que educar, é missão. Em Vacaria, lá nos Campos de Cima da Serra, região serrana do Rio Grande do Sul, há uma professora que há 43 anos vive para ver brotar letras e palavras através do traço inseguro de meninos e meninas deslizando seus lápis sobre a folha branca. Vera Lúcia Lisboa Borges tem 60 anos, e desde os 17, ainda quando estava na escola, terminando o que hoje se chama de ensino médio, ensina o poder que há nas palavras. Mas aí vem uma pandemia e muda tudo de lugar. Crianças não vão mais para a escola. E, as professoras, não estão mais em sala de aula. Porque estão todos em casa, por conta da prevenção à covid-19.
— Na escola foi criada uma página no Facebook e um blog, em que os alunos pudessem fazer pesquisa e pegar as atividades. Mas percebi que depois de uns dias em que disponibilizei as atividades, nenhum dos meus alunos tinha acessado. Percebi então, que os meus alunos não estavam dentro daquele esquema, que a internet não estava ao alcance deles. Aí, eu pensei: "Bah, e agora?" — questionou-se Vera.
O que fazer então, com a missão de ensinar, se agora a pedagogia é virtual? E, mais ainda, como ensinar, se os alunos não têm acesso ao conteúdo?
— Muitos dos pais dos meus alunos trabalham em pomares, então eles não têm muito tempo para ficar organizando o material para os filhos. Quando chegam em casa, precisam jantar e dormir para descansar. Não é algo simples para os meus alunos — diz, em tom de desabafo.
CARTA AOS ALUNOS
Era preciso ter uma ideia para driblar o distanciamento e a falta de conexão virtual, entre professora, pais e alunos, para que as crianças pudessem receber as atividades e continuassem a trilhar a jornada através da alfabetização. A professora Vera dá aulas na Escola Municipal de Ensino Fundamental Dom Henrique Gelain, para 18 meninos e meninas do segundo ano. Pensando neles, ela escreveu uma carta, de próprio punho, informando uma nova estratégia.
Um dos trechos da carta, postada no blog, dizia assim: "Pensando em sua aprendizagem e no nosso distanciamento devido ao coronavírus, peço que alguém responsável por você, dirija-se até a minha casa, localizada na rua Nova Vacaria, 367, bairro São José, perto da nossa escola. Chegando em minha casa, você responsável, encontrará no portão, um varal, nele estará pendurado um saco de plástico, com identificação, contendo o nome do aluno ou da aluna, você, responsável, pegue e leve para casa".
A profe Vera aguardou ansiosa, no dia e hora combinados, e ninguém apareceu para buscar as atividades. Os mesmos pais, que antes não haviam acessado as redes sociais para retirar dali as tarefas para entregarem aos filhos, ignoraram a carta postada nos mesmos ambientes virtuais. A coisa ficou séria, porque a professora precisava reatar o vínculo com os alunos, mas a tecnologia, nessa pandemia, parece que escancarou abismos ao invés de estabelecer laços. A saída de Vera foi conseguir a listagem dos telefones dos pais e ligar, de sua casa, para cada um deles, informando que as atividades estavam ali, estendidas no varal do portão da casa da profe, à espera dos alunos.
— A questão da internet é bem séria, nossos alunos não têm acesso. A nossa escola fica em um bairro da periferia, onde os pais estão lutando para comprar comida e para se virar financeiramente. Então, eu quis pensar em uma maneira de incluir essas crianças, mesmo que de uma forma simples e até rudimentar, sem tecnologia — revela Vera.
ENSINAR ATRAVÉS DO AFETO
O varal acabou sendo mais do que um recurso pedagógico, e, sim, o elo de ligação entre a professora e os alunos.
— Saímos da escola já faz um mês, então tivemos pouco contato neste ano. Fica difícil trabalhar com os alunos sem ter contato, porque, nessa idade, eles se aproximam, fica muito evidente o carisma e o afeto. Na idade deles, a professora é importante, e dou muita ênfase a isso, de que eles me vejam, sim, como uma pessoa muito importante na vida deles, que deixa marcas. Porque eu entendo que a nossa vida é para deixar marcas na vida dos outros — ensina Vera.
Ensinar a ler, a domar as letras que parecem escapar da boca, quando se tenta uni-las para formar sons em palavras, não é para qualquer um. Agora, alfabetizar durante a pandemia é ainda mais desafiante do que sempre foi. Porque não se trata apenas de ministrar aos pequenos as letras, dispersas no quadro-negro, mas de estabelecer as conexões entre elas, de formar palavras, de expressar sentimentos e instrui-los para que possam estar instrumentalizados a escrever a sua própria história.
— Tenho comprometimento com a questão da alfabetização, que para mim, é coisa séria. É difícil dizer que tu vais alfabetizar as crianças dessa forma, sem a socialização e o contato com eles. Mas estou elaborando atividades para reforçar o que já vimos em sala de aula. Porque me preocupo muito em manter esse vínculo, para que, quando pudermos voltar à sala de aula, nós tenhamos esse contato restabelecido — defende Vera.
ATIVIDADES ÀS QUINTAS-FEIRAS
Uma nova tarefa é estendida no varal da profe Vera, nas quintas-feiras. Cada atividade fica em um saco plástico, contendo o nome de cada aluno. Além disso, ela disponibiliza materiais diversos, de forma gratuita, como lápis de cor, borracha, cola e tesoura.
— Eu vejo isso como um investimento na vida deles, pelo bem dessas crianças, porque de que adianta ter as atividades se eles não tem como fazer — defende-se Vera, alegando que algumas pessoas a criticam por pagar do seu bolso os materiais que disponibiliza.
Com simplicidade e muito amor envolvido, a professora diz que não está exigindo dos pais que mostrem o resultado das atividades. Quando ela voltar para a escola e estiver em sala de aula, vai poder verificar o nível de cada um.
— Não obrigo aos pais que venham buscar. Dos 18, pelo menos sete deles ainda não consegui contato, sendo que dois moram no interior. Sabe, tenho 60 anos, não sou mais uma professora novinha, já estou prestes a me aposentar, mas tenho a cabeça e o coração bem jovens. Eu já fui até diretora de escola, mas eu insisto em ter alunos, porque é gratificante — revela.
A missão dela parece incompleta, porque há ainda tantos meninos e meninas para ela ensinar a ler e a escrever. Vera sintetiza de uma forma poética a sua satisfação em ser professora.
— Fico muito feliz de fazer o outro perceber que ele lê, porque ao ler, a pessoa conhece o mundo.
A lição de Vera tem fina sintonia com a metáfora que João Cabral de Melo Neto cunhou:
"Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar".