Os estimados R$ 680 milhões que o município de Caxias do Sul deve aos Magnabosco a título de indenização pela invasão da propriedade da família há mais de 40 anos causam espanto na população e burburinho no mercado imobiliário. O questionamento é como uma área que valeria em torno de R$ 50 milhões deve render uma compensação que passa do meio bilhão de reais. O valor parece desproporcional, mas está amparado em lei e em decisões de um processo marcado por infindáveis recursos.
Outras interpretações, entretanto, indicam que seria possível reduzir os R$ 680 milhões de indenização para uma soma em torno de R$ 400 milhões se fosse aplicada uma fórmula diferente no cálculo dos juros. Essa possibilidade está prevista em lei e deve ser um dos argumentos do município para tentar amenizar os impactos da dívida na Justiça. A Procuradoria-geral do município não divulga detalhes sobre o caso.
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Originalmente, o valor do terreno dos Magnabosco foi avaliado em R$ 53 milhões a partir de uma perícia determinada pela Justiça. Sobre o valor, foram incluídos a correção monetária e os juros. A discussão sobre a remuneração possivelmente vá render meses de debates no judiciário, mas seria o caminho mais viável para evitar que o município abale as próprias finanças. Jorge Galvão, sócio do escritório Ilmar Galvão Advogados Associados, que representou o município em ação rescisória no STJ, diz que seria possível diminuir pela metade a indenização se fossem observadas regras sobre a ocupação de terras improdutivas, caso da área do Magnabosco.
A contadora judicial designada do Fórum, Janete Rodrigues de Souza Schmidt, entende que o espanto em relação ao valor milionário tem origem na visão que as pessoas têm sobre o preço do terreno e a indenização, que são duas questões distintas. Ela não se posiciona a favor do município ou dos Magnabosco e analisa o caso sob o ponto de vista da sentença. Se fosse comercializada hoje sem nenhuma benfeitoria, a área de 57 mil metros quadrados renderia em torno de R$ 52 milhões para um possível loteamento, conforme construtoras. Janete diz que para efeitos de indenização, não se pode considerar apenas a estimativa do mercado imobiliário.
— Existe uma dívida com trânsito em julgado e que deve ser paga. Essa dívida é o valor do terreno na época acrescida da correção monetária e dos juros. Não existe mais o bem, não temos como fazer o comparativo com o valor do terreno, pois o que existe na verdade é um débito lá de trás — reforça a contadora.
Hoje, a correção monetária dos R$ 53 milhões está em R$ 84,7 milhões, segundo cálculos da contadoria do Fórum, número muito maior do que o preço do metro quadrado praticado pelo mercado.
— O valor da dívida é maior do que o terreno porque o mercado não acompanhou os índices inflacionários. O índice de inflação foi superior ao índice de mercado. Existe maneira de pagar? Dependerá do bom senso — explica Janete.
Durval Balen, advogado da família, aponta que o documento que embasou a indenização tem mais de 100 laudas.
— Não se trata de uma simples petição. Além disso, foi objeto de sentença homologatória (1º grau), Agravo de Instrumento (não provido) e Ação Rescisória, essa julgada improcedente, inclusive confirmada pelo Tribunal de Justiça do RS, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal — reitera Balen.
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COMPOSIÇÃO DA DÍVIDA
A dívida total com os Magnabosco é de R$ 680 milhões, mas parte do valor está sendo discutida na Justiça.
O valor considerado incontroverso (que foi aceito pelo município) era de R$ 435 milhões até a tarde de segunda-feira (2), segundo a contadoria do Fórum. Desse total:
:: R$ 84,7 milhões referem-se ao valor do terreno com correção monetária em 2019 sobre o valor original de R$ 53 milhões calculados em 2011.
:: R$ 346 milhões referem-se aos juros de mora e juros compensatórios.
:: R$ 245 milhões seria a estimativa da diferença da parte controversa (não aceita pelo município). O valor correto não está calculado.
Juros previstos em lei
O advogado Alvaro Kleinowski, especialista em Direito Civil, também esclarece que os juros são aplicados a partir da propositura de uma ação. No caso do Magnabosco, os juros são contados desde o dia 16 de setembro de 1983. Na prática, os juros compensatórios e de mora de qualquer processo sempre retrocedem até a data do ajuizamento e são contabilizados até a data do pagamento.
— Há uma certa confusão entre o que é juros e correção monetária. A correção tem o objetivo de manter o poder de compra. Pegando o exemplo de um carrinho de compras que você comprava há 10 anos: a correção é para que se consiga comprar o mesmo carrinho de compras agora. Pela Justiça, a correção é pelo IGPM (índice inflacionário).
Os juros compensatórios, por sua vez, são usados para compensar o uso do capital alheio. Os juros de mora são válidos quando há uma dívida e ocorre atraso no pagamento, caso do Magnabosco.
— Em qualquer processo de desapropriação, os juros são assim, é matéria pacificada, está na lei. Se eu pegar esse dinheiro e der esse dinheiro para você, daqui a 10 anos tu vai me devolver esse dinheiro corrigido. Ou durante os 10 anos que fiquei sem o dinheiro, vou receber o mesmo dinheiro? A correção monetária só repõe o valor da moeda, não tem juros. Se tivesse aplicado o dinheiro no banco, teria recebido a correção e os juros. A família foi desapossada de seu bem — reforça Durval Balen.
Sobre possíveis discussões a respeito de qual seria o cálculo mais justo, Kleinowski faz uma ponderação importante sobre as nuances de um processo:
— Se o título judicial disse que era de determinada maneira e ninguém reclamou, fica por isso, pois não houve insurgência adequada no momento oportuno.
"Sete filhos morreram sem ver a Justiça"
Originalmente, quando o processo foi aberto na Justiça, havia nove herdeiros vivos do comerciante Raymundo Magnabosco _ outros quatro filhos dele morreram jovens. Atualmente, só três herdeiros ainda estão vivos.
— Sete morreram sem ver a Justiça — comenta uma pessoa próxima à família.
Segundo essa pessoa, que pede o anonimato, a terceira geração dos Magnabosco tem 18 pessoas. Contudo, o processo é a favor dos filhos de Raymundo. No caso, as novas gerações não aparecem como parte da ação, embora possam ser favorecidas no espólio dos herdeiros originais.
— O que gostaria é que a população entendesse que a família sempre esteve presente em Caxias do Sul, gerando empregos e renda, contribuindo com impostos e com altruísmo. A família não tem a intenção de prejudicar a cidade. O resultado disso é dos políticos que deixaram chegar a esse ponto — critica o amigo dos Magnabosco.
Segundo ele, o valor da dívida não foi estipulado pela família e sim pela Justiça.
— A culpa é de todos os prefeitos que passaram por Caxias do Sul e não resolveram a questão, todos decidiram só protelar (referindo-se aos prefeitos desde o início da invasão em 1977). A família nunca quis chegar a esse valor, poderia ser menor lá atrás, mas nunca foi procurada. E mesmo invadido, a prefeitura sempre tentou cobrar o IPTU do terreno. Hoje, não podem mais por decisão da Justiça.
Diferentes visões
POSSÍVEL REDUÇÃO DA DÍVIDA:
De R$ 400 milhões a R$ 450 milhões
:: Esse seria o valor total estimado e atualizado da dívida que poderia, em tese, ser pleiteado na Justiça. No caso, a discussão giraria em torno dos juros. Na visão da contadora do Fórum, Janete Rodrigues de Souza Schmidt, se chega ao valor aproximado de R$ 400 milhões se fosse aplicar a lei 11.960/2009, que regra as dívidas da Fazenda Pública e tem fórmula de cálculo dos juros diferente do que a estabelecida na sentença do Caso Magnabosco. Contudo, isso é uma hipótese, uma vez que a decisão depende da Justiça.
:: Jorge Galvão, sócio do escritório Ilmar Galvão Advogados Associados, que representou o município em ação rescisória no STJ, diz que uma alternativa é avaliar os juros. Por se tratar de terra improdutiva, valeria apenas a correção monetária sobre o valor principal da dívida. Haveria juros de mora (0,5% ao mês) a partir da sentença transitada em julgado (o que ocorreu em 25 de maio de 2009). Também incidiriam juros compensatórios de 1983 até a data da medida provisória, é de 1998. De 1998 a 2009 não haveria incidência de juros compensatórios, apenas a correção monetária. Segundo Jorge, o valor da dívida cairia pela metade ou pouco mais além disso.
:: Avaliando o caminho indicado pelo jurista, a assessora de Economia, Finanças e Estatística da CIC, Nara Panazzolo, estimou o valor em R$ 453,1 milhões, ou 66,6% da dívida.
:: A Procuradoria-geral do município não informa se vai discutir os juros na Justiça, embora essa possibilidade já tenha sido cogitada anteriormente.
DÍVIDA ATUALIZADA:
R$ 680 milhões
:: Esse é o valor total da dívida considerando a sentença transitada em julgado. O montante considera a correção monetária do valor principal da dívida, os juros compensatórios de 1% ao ano e os juros de mora de 0,5% ao mês.
:: O município questionou judicialmente partes dos juros calculados sobre a soma. Esse valor de R$ 680 milhões foi desmembrado em dois. Ficou definido que valores incontroversos (aceitos pela parte contrária, ou seja, pelo município) seguiriam para a cobrança, no caso, foram inscritos como precatórios (requisições de pagamento à Fazenda Pública relacionadas a uma sentença judicial). Esse valor hoje está estimado em R$ 435 milhões, segundo uma projeção da contadoria do Fórum. A defesa dos Magnabosco estima o valor em R$ 453 milhões.
:: A cobrança está impedida por conta de um recurso especial no STJ, em que o município tenta impugnar os precatórios. O restante, no caso, cerca de R$ 220 milhões em valores atualizados, são os valores controversos (não aceitos pelo município) e foram incluídos em um novo processo. Esse caso também está sendo discutido na Justiça e deve ter um desfecho em breve.
VALOR DE MERCADO:
R$ 52,3 milhões
:: Esse é o valor estimado de mercado da área onde está o bairro Primeiro de Maio. O cálculo é uma projeção de incorporadoras e construtoras em relação ao preço do metro quadrado de um terreno estruturado.
:: A região onde está o Primeiro de Maio, que compreende o Madureira e o Jardim América, tem negociações de área que variam de R$ 1 mil a R$ 2 mil o metro quadrado. Em média, num hectare de terra (ou 10 mil metros quadrados), é possível implementar cerca de 17 terrenos, incluindo as reservas de área verde, do passeio público e do arruamento previstos em lei.
:: Segundo Adair Castilhos, da ANC Incorporadora, como a área dos Magnabosco tem 57 mil quadrados, seria possível viabilizar a abertura de 97 lotes de 360 metros quadrados, já descontando as reservas previstas em lei.
:: Se a área fosse comercializada pelo preço médio de R$ 1,5 mil ao metro quadrado e considerando que caberiam ali 97 lotes, o total da venda chegaria a R$ 52,38 milhões, o equivalente a 7% do valor estipulado pela sentença.
:: Olivier Viezzer, presidente do Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon) Caxias Sul, estima que preço dos lotes poderia ser menor, uma vez que seria necessário investir em uma infraestrutura adequada para os padrões da cidade e da legislação. Ele ressalta que, em qualquer empreendimento de porte, deve-se abater o investimento em projetos, licenciamento e infraestrutura, o que consumiria 10% do valor total do terreno. Para isto, seriam necessários em torno de R$ 5,2 milhões em investimentos para viabilizar o local para a venda.
:: É importante frisar que o valor total da dívida não está atrelado apenas o valor do terreno, mas sim refere-se a uma indenização pelos quase 40 anos em que a família não pode usufruir da propriedade invadida, o que inclui a correção monetária e os juros.