CORREÇÃO: o IBGE não contabiliza moradores de rua e, ao contrário do que foi publicado, estes devem permanecer fora do Censo 2020, sem previsão de inclusão do grupo no levantamento. A informação incorreta permaneceu publicada entre as 8h30min do dia 07/05/2019 e as 8h16min do dia 17/05/2019. O texto foi corrigido.
Fala-se em 400, ou até 600, mas ninguém sabe precisar exatamente quantas pessoas vivem em situação de rua, atualmente, em Caxias do Sul. Fatores como a constante migração e a própria oscilação entre moradia e a falta dela, tornam a mensuração praticamente impossível. Alguns parâmetros, como o número de atendimentos da rede municipal, conseguem dar uma ideia de como esta população encontra-se hoje: são, em média, 238 pessoas que passam mensalmente pelo Centro Popular.
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Um olhar mais atento também constata a situação. Quando a cidade acorda, a maioria deles já está de pé. Mesmo assim, em diferentes horários, eles podem ser vistos nas calçadas, nas praças, nas portas de lojas, acomodados em colchões, abrigados em restos de papelão, ou em barracos improvisados, quando a vizinhança permite.
A vida dessas pessoas, entretanto, vai além do que pode ser enxergado e do que, normalmente, a elas é associado: mendicância, consumo de álcool e outras drogas. Os chamados moradores de rua registram casos de vício, sim, mas também são trabalhadores ou desempregados que possuem talentos esquecidos. São pais, mães, filhos. Eles têm medos, angústias, desejos e sonhos.
A complexidade que leva uma pessoa à situação de rua é subjetiva, é cumulativa e difícil de ser solucionada. Políticas públicas de ressocialização representam uma importante ferramenta de reintegração, de recuperação da dignidade — muitas vezes perdida em uma vida de miséria —, mas fica aquém da necessidade real de cada indivíduo, que precisa, antes de tudo, ser visto e escutado, ser considerado, de fato, um cidadão perante toda a comunidade.
Pelo menos 15 na área central
Um levantamento feito pela reportagem, na manhã de segunda-feira (6), contabilizou, pelo menos, 15 pessoas, todos homens, dormindo nas ruas da área central da cidade. A contagem ocorreu por volta das 8h, quando muitos já haviam levantado, restando, em alguns locais, vestígios como pedaços de espuma, cobertores e papelões.
Há que se considerar, ainda, a hospedagem solidária temporária realizada pela Diocese de Caxias do Sul. O projeto da Pastoral das Pessoas em Situação de Rua tem capacidade de acolher até 90 moradores de rua para jantar, pernoite, banho e café da manhã oferecidos no salão da Igreja Sagrada Família até o mês de setembro.
Essas pessoas nunca foram contabilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). De acordo com a diretora de Proteção Social Especial de Média Complexidade da Fundação de Assistência Social (FAS), Ana Maria Franchi Pincolini, isso demonstra como é difícil ter uma estimativa sobre quantas pessoas vivem na rua atualmente e como elas acabam nessa situação.
— Um dos nossos grandes trabalhos é identificar o que levou à situação de rua, como estão os vínculos com a família, se existe um sonho ou desejo, e construir isso junto com usuário, dentro da política nacional (Política Nacional para a População em Situação de Rua, instituída em 2009) — afirma.
Ela explica que o atendimento municipal abrange pessoas em situação de rua ou de desabrigo, o que inclui também trabalhadores que circulam em busca de contratações temporárias, como ocorre nas safras, por exemplo. De acordo com a entidade, cerca de 90% as pessoas em situação de rua são homens e o grupo é considerado heterogêneo, de acordo com levantamento do Sistema Único de Assistência Social (Suas).
A acolhida ocorre quando identificadas três situações elencadas pelo plano nacional: situação de pobreza extrema; moradia ou sobrevivência em espaços não-convencionais; e ruptura de vínculos com a família de origem. Os encaminhamentos são feitos conforme a necessidade, envolvendo casas de passagem, serviços de saúde e segurança pública, que integram a rede municipal de atendimento. O processo de ressocialização, segundo Ana, envolve uma série de fatores e não costuma se dar de forma imediata, como, muitas vezes, as pessoas esperam que aconteça.
— A comunidade também pode ajudar compreendendo que essa pessoa é um ser humano e uma série de situações a levou a isso. Se não está cometendo nenhum crime, só ocupando o espaço da rua, podem acionar a gente, mas é preciso pensar que pode demorar pra pessoa sair. Trabalhamos no caso a caso e estamos sempre pensando em alternativas para qualificar o atendimento — comenta a diretora, lembrando também da falta de oportunidades enfrentada pelos moradores.
— Falta emprego. Na campanha de Natal que fizemos, vários pediram trabalho. Às vezes a pessoa tem uma série de habilidades, mas se vê fora do mercado de trabalho, eles precisam de oportunidade — reforça.
Centro Pop é referência em Caxias
Faltando mais de meia hora para a abertura do portão, vários homens e algumas mulheres de estômago vazio vão ocupando a rua Duque de Caxias, no bairro Madureira, onde funciona o Centro Popular, mantido pela FAS de Caxias do Sul. Quem vai até lá sabe que, diariamente, às 8h30min, pode garantir pelo menos uma refeição.
São cerca de 90 cafés da manhã servidos de forma gratuita no local, que funciona como referência de serviços socioassistenciais voltados às pessoas em situação de rua na cidade. Uma xícara de café, alguns pãezinhos e frutas fazem a diferença para os usuários que frequentam o local.
Os serviços da unidade vão além do fornecimento de alimentação. No chamado Centro Pop, os moradores de rua também podem realizar procedimentos de higiene pessoal e acessar atendimento psicossocial, oficinas e atividades de convívio e socialização, além de contarem com a provisão de documentos, em caso de necessidade.
— É ótimo isso que eles fazem pelas pessoas aqui, eu era muito vida louca e eles me ajudaram, já saí da rua por causa deles — comenta Tiago Ferreira Viana, 30, que frequenta o local e diz ter voltado recentemente às ruas — menos de um mês — por conta de uma separação conjugal.
Viana conta que tem uma filha de sete anos, que já chegou a realizar assaltos e que é usuário de crack. Ele diz que pretende buscar tratamento e que orienta os jovens que vivem na rua a não seguirem o mesmo caminho.
Natural de Caxias do Sul, Rafael de Oliveira Júnior frequenta esporadicamente os serviços do Centro Pop e diz que uma das maiores dificuldades tem sido conseguir emprego.
— Consegui um trabalho temporário em Lajeado Grande, nos pomares, e agora estou procurando algo por aqui — relata o jovem, que gosta de desenhar e, mesmo assim, acredita que pode conseguir algo na área de soldador, seguindo os passos de seu pai.
"Garantir direitos humanos é dever de todos"
A pauta dos direitos humanos é o principal alicerce dentro da profissão de psicologia, de acordo com a psicóloga Fernanda Fioravanzo, que representou o Conselho Regional de Psicologia em uma Audiência Pública sobre os moradores de rua promovida pela Comissão de Direitos Humanos do Poder Legislativo no dia 29 de abril. Presente no sistema de atendimento à população de rua caxiense, o serviço é regulamentado por um código de ética que, assim como os códigos de outras profissões, parte da Constituição Federal de 1988.
— Quando a gente se pauta por esse valor, por todos os direitos humanos, por atuar a serviço disso é um dever de todos os profissionais que fizeram juramento. Estamos a serviço da Constituição, então estamos a serviço da dignidade humana. Garantir direitos humanos, portanto, é dever de todos profissionais que têm profissão regulamentada no Brasil — defende.
A complexidade dos casos e a vulnerabilidade apresentada pelas pessoas que moram na rua, para Fernanda, refletem a desigualdade social que, segundo ela, acaba operando para que uma parte da população esteja à margem. Ela aponta a exclusão na Educação como sendo uma possível chave para o desencadeamento de outros fatores que acabam levando uma pessoa à situação de rua. A psicóloga também destacou a importância da aproximação e do entendimento a respeito das diferentes formas de viver, definindo a migração como condição humana.
— Há pessoas que escolhem formas diversas e diferentes da construção social que diz como devemos viver nossas vidas. Isso faz com que tenhamos um grupo de pessoas que mostram que aquilo que temos construído pode ser questionado, essa não é a única forma de viver. Nos cabe respeitar essa outra forma de vida.
Movimento quer dar voz
— Essas pessoas precisam ter voz. A gente precisa primeiro escutá-las, porque tem muito potencial na rua. Ninguém nasceu na rua, cada uma tem uma história de vida, um vínculo familiar fragilizado e a gente precisa se desgrudar um pouco do uso de droga — destaca Veridiana Farias Machado, voluntária do Movimento Nacional da População de Rua em Porto Alegre. Veridiana esteve em Caxias do Sul no dia 29, e também compôs a mesa da audiência na Câmara Municipal de Vereadores.
— O uso problemático de álcool e outras drogas existe em todas as classes, mas na população de rua fica mais visível porque a pessoa está na calçada, no viaduto — observa.
A ativista defende que o fenômeno da pessoa em situação de rua é uma questão social e destaca a importância de políticas públicas e de projetos que valorizem potencialidades e promovam a participação social das pessoas em situação de rua.
— O Movimento está presente hoje em 18 estados do Brasil, bem organizado, e conheço muita gente que saiu da rua por estar participante, por se sentir cidadão. É só com protagonismo, com participação social que as pessoas se sentem incluídas, construindo políticas públicas com elas e não para elas — completa.
Um exemplo disso é a Suzana Deivis Nogueira Ribeiro. Ela também participou da audiência local, representando o movimento que garantiu sua própria ressocialização. A porto-alegrense já foi moradora de rua e viciada em crack e tornou-se prova viva do impacto positivo que um simples olhar pode gerar à pessoa que vive em situação de rua.
— Tem que ter projeto de ressocialização, tem que ter rede de atendimento, para a pessoa entender que consegue, sim, sair da rua. As pessoas têm que entender o morador de rua, olhar com outros olhos. Parece que a gente é um bicho, mas não é. Tem que conversar e enxergar que estas pessoas estão aí — destaca.
O contexto de violência
O medo é uma constância da realidade de quem vive nas ruas. Um morador esteve presente na Audiência Pública que ocorreu na Câmara de Vereadores. Mesmo querendo aproveitar o espaço de voz que lhe foi aberto, ele declarou, com medo, alguns episódios de violência recorrentes na sua e na rotina e de outros moradores de rua que ele conhece - e que por medo também não participaram da audiência.
A denúncia era sobre violência por parte de agentes de segurança pública. Diante do major Luis Fernando Becker, que representou a Brigada Militar no encontro, o rapaz relatou apanhar com frequência de um policial e foi orientado a prestar queixa junto à própria instituição. O major destacou que é possível verificar as câmeras de monitoramento em caso de registro de ocorrência e reiterou que este tipo de denúncia deve ser feita logo após o fato para garantir que os vídeos — que permanecem por tempo determinado no banco de imagens — não sejam perdidos.
Muitos moradores de rua relatam violência por parte de agentes públicos. Eles afirmam conviver com a violência de agentes que os agridem durante a madrugada na cidade. Este tipo de denúncia chega às equipes da FAS, que encaminha o usuário para atendimento individual, orientando sobre denúncia junto a órgãos como a Defensoria Pulica e à Promotoria de Justiça Especializada.
— Quando envolve especificamente agentes públicos, o relato é direcionado à presidência da FAS, que encaminha a informação ao referido órgão público para apuração dos fatos e adoção das providências cabíveis — afirma a entidade, em relatório apresentado aos vereadores. O documento ainda destaca relatos de agressão física e verbal praticados pela população em geral, diante dos quais as mesmas providências são tomadas.
Em 2018, foram registradas 24 mortes de moradores de rua, sendo que destas, 14 ocorreram de forma violenta. Os nomes informados pela FAS constam nas notícias elencadas pelo Contador de Violência do jornal Pioneiro, que no ano passado totalizou 110 mortes violentas em Caxias do Sul. As mortes de moradores de rua registradas dizem respeito a situações diversas, que vão desde homicídios sem motivação constatada, passando por desentendimentos familiares, até casos de execução relacionada ao contexto do tráfico de drogas e à atuação de facções na cidade.
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