Pelo menos duas famílias refugiadas da Venezuela desembarcam em Caxias do Sul a cada semana. A estatística é do Centro de Atendimento ao Migrante (CAM), que auxilia os novos moradores na emissão de documentos, regularização da permanência no Brasil e, muitas vezes, encaminham oportunidades de emprego. Diferente do que acontecia em anos anteriores, desta vez a ação é capitaneada por igrejas evangélicas que dão condições iniciais de uma vida bem mais digna do que levavam no país vizinho _ segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a estimativa é que um quarto da população da Venezuela está vivendo em situação de pobreza, o que equivale a cerca de 7 milhões de pessoas.
A rede de ajuda surpreende pela organização e articulação entre religião, comunidade e venezuelanos. Há diversas frentes responsáveis pela vinda dos migrantes a Caxias do Sul. Uma delas é de membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias no Brasil, conhecidos como mórmons, que está presente em 10 unidades na Serra e dá exemplo de humanidade. Funciona assim: membros da igreja que atuam na fronteira entre Brasil e Venezuela são responsáveis por triar venezuelanos que frequentem a instituição religiosa e rumam ao território brasileiro. Representantes da fronteira contatam responsáveis pela ação na Serra, que verificam a disponibilidade de acolher venezuelanos por aqui. O contrário também está acontecendo, já que membros da igreja da Serra estão tão empolgados na ajuda humanitária que acabam preparando apartamentos ou casas e colocando à disposição para a vinda de venezuelanos, antes mesmo de serem contatados. O resultado é que o povo vindo do país vizinho acaba sendo acolhido com casa mobiliada, comida, roupa e, muitas vezes, oportunidade de trabalho.
— Eles são acolhidos por membros da igreja, mas não é a igreja que organiza, que os mantém. Envolvemos a comunidade como um todo. Há associações de bairros, empresas, entidades, vizinhos e claro, nossos membros da igreja que se envolvem, buscam apoio e formam uma grande rede do bem — afirma um dos representantes desta acolhida na igreja, Caio Cadorin.
10 famílias em 2019
Já são 10 famílias vindas neste ano pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias no Brasil na Serra, sendo que estão distribuídos em Bento Gonçalves e nos bairros Bela Vista, Parque Oásis, Castelo, São Caetano e Cinquentenário, em Caxias do Sul. Outras quatro devem chegar em abril. A ideia da igreja é manter as famílias com doações no período máximo de seis meses e ensiná-los a buscar independência financeira. Em Bento Gonçalves, as duas famílias acolhidas pela unidade estão trabalhando e tem moradia, como lembra o bispo de Bento, Isidoro da Cunha.
— Nós ajudamos com o essencial, e conseguimos os móveis e todo restante de doações. Também usamos nosso fundo de jejum, que é o dinheiro que gastaríamos em duas refeições —explica Cunha.
Mais de 50 testemunhas já foram acolhidos
Testemunhas de Jeová também têm articulação importante na chegada de venezuelanos em Caxias do Sul. Assim como acontece com mórmons, o suporte é oferecido exclusivamente para venezuelanos que frequentam a congregação na Venezuela. No entanto, a comunidade da Serra se compromete em fornecer ajuda para os que chegam por aqui em até um ano, como conta o ancião Jaori Maschio, liderança nas unidades de Caxias do Sul.
— Um núcleo é responsável pela triagem das necessidades das famílias venezuelanas, e nós repassamos quem está disponível para ajudar. Em Caxias, as pessoas colocam à disposição a casa para receber e fornecem a ajuda necessária. Eles chegam sem ter o que comer no dia seguinte, cada um da igreja dá o que pode e acolhe da maneira que é possível. Ninguém tira vantagem de ninguém — explica Jaori.
O objetivo das congregações religiosas é incentivar a autonomia de quem chega em território caxiense - e também inserir o grupo em um ambiente cultural mais próximo do que viviam na Venezuela. Exemplo disso é que os Testemunhas de Jeová têm, inclusive, uma congregação espanhola em Caxias do Sul na região do Desvio Rizzo. As cerimônias, portanto, são celebradas em idioma espanhol e fazem com que os membros da congregação se sintam mais familiarizados.
— Temos a responsabilidade de ajudar um testemunha de Jeová em qualquer lugar do mundo. Em situações de calamidade, somos os primeiros a chegar. A congregação espanhola existe para que as pessoas tenham também o alimento espiritual e passem um trauma menor em outro país — conta.
A acolhida inicial acontece nas casas dos caxienses mas, nos dias seguintes, são encaminhados para moradias equipadas pelos integrantes da igreja. Até agora, 50 pessoas já foram recebidas, com expectativa da chegada de familiares dos venezuelanos que já moram em Caxias, conforme conta um dos líderes do processo de acolhimento, Jonas Paganella.
— Muitos deles chegaram em estado de desnutrição, com até 20 quilos a menos. Encaminhamos cartão SUS, consultas médicas, fizemos CPF, carteira de trabalho. O que eles mais precisam é de dignidade, e nossa função aqui é ajudá-los a conseguir ela de volta — descreve.
Venezuelanos já estão trabalhando
Faz cerca de um mês que o casal de venezuelanos Edgar Parada, 49 anos, e Norely Mendonza de Parada, 46, desembarcou em Caxias do Sul. Ao chegar, encontraram um apartamento de um quarto com cozinha, sala e banheiro equipados pelos colegas de religião, os mórmons, pronto para morar. A recepção dos brasileiros emocionou o casal que vivia, nos últimos meses, situação de extremo desconforto:
— Encontramos muita comida e muito carinho aqui. Amigos que estão em outros lugares do país ou da América ficam impressionados quando contamos como as coisas estão aqui — descreve Norely.
Edgar era proprietário de uma serigrafia em uma cidade próximo da fronteira com a Colômbia, San Felipe. Norely é formada em administração e trabalhava em uma concessionária de carros. Não foi difícil, portanto, encontrarem emprego em Caxias do Sul: eles trabalham em uma indústria de embalagens. Juntos, faturam pouco mais de R$2,5 mil. Norely é auxiliar financeira, e Edgar atua no almoxarifado da empresa.
— Meu sonho é ter um negócio próprio, vir com o resto da família para cá. E vemos que é possível— sonha Edgar.
O casal também se dispôs a dar aula de espanhol para a equipe da empresa em que trabalham. O resultado é positivo, já que os dois também frequentam aulas de português na Faculdade Murialdo. Há anos, voluntários dão aulas para migrantes com a intenção de facilitar a chegada na Serra. Venezuelanos somam-se a haitianos e senegaleses em sala de aula, conforme conta a professora Claudia Bressan. Até agora, são nove alunos da Venezuela em sala de aula.
— Só o fato deles receberem atenção já os ajuda. A chegada dos venezuelanos é muito diferente, com comunicação mais fácil que outros povos. Eles entendem tudo que falamos —explica Claudia.
Para o secretário Municipal de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Emprego, Emílio Andreazza, é uma questão humanitária que exige um olhar sob diversos prismas e, inclusive, de como o Governo Federal pretende trabalhar esta estratégia de interiorização e como irá fornecer a Estados e Municípios os recursos necessários para execução de políticas públicas a estes imigrantes.
AJUDE
:: Interessados em ajudar com oportunidades de emprego ou com móveis, alimentos e outros itens, podem entrar em contato com voluntários responsáveis pela articulação.
:: Em Bento Gonçalves, quem organiza é o bispo da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias no Brasil, Isidoro da Cunha. O contato é 98101-0680.
:: Em Caxias do Sul, o responsável pela arrecadação da mesma igreja é Caio Cadorin. O contato é 9142-6282.