Vinte e duas pessoas tiraram a própria vida nos primeiros seis meses deste ano em Caxias do Sul, segundo dados da Secretaria Municipal da Saúde (SMS). O número, no entanto, representa um universo menor do que a realidade. Muitos dos casos acabam sendo mascarados em outros índices de morte, como acidentes de trânsito, por exemplo. Isso ocorre normalmente devido ao receio que muitas famílias têm de ser alvo de julgamento ao admitir a morte auto-infligida de alguém próximo.
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Levantamento divulgado recentemente pela Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e Violência Escolar (Cipave) da Secretaria Estadual da Educação (Seduc) indica um cenário que assusta, mas que já há alguns anos era conhecido na rotina escolar: o crescente número de auto-mutilações, de tentativas de suicídios e de suicídios concretizados de alunos da rede estadual. Conforme divulgado pelo jornal Zero Hora, entre as 1.622 instituições (de um total de 2,5 mil) que responderam a pesquisa, somam-se 1.015 situações de auto-mutilação, 169 tentativas de suicídio e seis suicídios. O levantamento abrange apenas o primeiro semestre de 2018. Em Caxias do Sul, são 34 situações de auto-mutilação e nenhum suicídio. Apesar disso, de acordo com a 4ª Coordenadoria Regional de Educação (4ª CRE), já houve casos de morte auto-infligida registrados na região.
A assessora da Cipave da 4ª CRE, Marivane Carvalho, afirma que o engajamento das escolas com relação à Cipave tem melhorado de forma significativa. Ela também ressalta que diversas ações são desenvolvidas na região buscando orientar as instituições nas formas como proceder em situações de auto-violência.
– Estamos desde o início do ano fazendo os professores se perguntarem: “Qual é a minha responsabilidade? O que eu posso fazer para mudar esse cenário?”. Não só para a auto-mutilação, mas com o bullying, por exemplo. Precisamos começar a assumir mais responsabilidade. Estamos terceirizando as nossas responsabilidades. É muito mais fácil dizer que o problema é da família quando eu tenho responsabilidades não assumidas. Por isso, a pergunta que estamos propondo ao pessoal das nossas escolas é: “Qual é meu papel nisso tudo?”
Já a Secretaria Municipal da Educação (Smed) não tem levantamento específico sobre casos envolvendo auto-mutilação e tentativas de suicídio. Ainda assim, a assessora pedagógica da Smed, Sônia Rossetti, reconhece que os índices têm aumentado:
– É difícil uma semana em que não recebemos pedido de intervenção. Tem crescido bastante. Trabalhamos na orientação de professores, explicando o que a auto-mutilação representa e que muitas vezes pode não ser uma tentativa de suicídio e sim uma troca de uma dor emocional por uma dor física.
Para ela, a situação denota um problema social: o crescente desamparo de jovens em núcleos familiares.
– Nossos adolescentes não estão sendo vistos. Às vezes nem na escola e muito menos pela família. A família que tem um ou dois filhos deveria estar mais atenta do que a escola que tem 800, às vezes mais de mil crianças para cuidar. Depois que o filho é adolescente os pais não acompanham mais, não olham caderno, o que tem dentro da mochila, se estão bem alimentados. Aí se o jovem se isola, também consideram normal porque é “da adolescência”, mas não é normal – opina.
JOVENS
Tentativas de suicídio
Primeiro semestre de 2018
Crianças de 5 a 9 anos: 3 casos
Adolescentes de 10 a 19: 60 casos
Suicídio
Criança de 5 a 9 anos: zero
Adolescente de 10 a 19: 2
FATORES DE RISCO
- Tentativa prévia.
- Presença de transtorno mental.
- Uso de álcool e drogas.
- Ideação suicida (organizar detalhes e fazer despedidas).
- Possuir meios letais acessíveis (como medicações em grande quantidade).
- Ter histórico familiar de suicídios.
- Separação, perda de emprego ou falência.
- Pouca resiliência.
- Personalidade impulsiva, agressiva, instável.
- Ter sofrido abuso físico ou sexual na infância.
- Desesperança, desespero.
"Falta olhar mais humano", diz orientador
Rafael Renato da Silva Nunes, 66 anos, trabalha há mais de 20 como orientador educacional na Escola Estadual Presidente Vargas, em Caxias do Sul. Ao longo desse tempo, ele aprimorou técnicas de diálogo e sempre manteve a confiança de alunos de todas as idades:
— O aluno não pode ter problema de falar comigo. Às vezes eu preciso só chamar o aluno aqui e pedir se está tudo bem, mesmo quando ele não se abre eu digo que ele pode voltar e conversar comigo quando quiser. Normalmente eles voltam — comenta.
Segundo ele, o crescimento de casos de auto-mutilação já era perceptível há bastante tempo. Porém, foi há cerca de três anos que a situação começou a piorar.
— As famílias estão tão desnorteadas envolvidas nos desafios da rotina e não conseguem se concentrar no que é importante para os filhos. Na maioria dos casos das crianças, se formos a fundo, existe um drama humano por trás. Às vezes é antes de entrar na escola. A ideia é sempre oferecer apoio a esse jovem. Mas às vezes não consigo — ressalta.
E acrescenta:
— Uma menina que foi nossa aluna no ano passado recentemente se matou. Ela já havia tentado algumas vezes. Não tivemos condição de ler o grau de perturbação em que ela se encontrava ou de lidar com isso.
Para Nunes, o aumento de casos força com que os educadores precisem adquirir um olhar mais humano na rotina escolar:
— Falta preparo de muitos educadores, falta ter um olhar humano e perceber que aquele jovem ou aquela criança precisa de uma outra fala.