Quem depende do Sistema Único de Saúde (SUS) sempre teve dificuldade para ser recebido por um médico, fazer exames, cirurgias ou conseguir um leito hospitalar em Caxias do Sul. Mortes em decorrência da demora no atendimento também não são novidades. Desde 2017, porém, dois novos fatos aumentaram a lista das fragilidades no atendimento à população: a troca frequente de secretários de saúde e as barreiras no diálogo entre o Executivo, a classe médica e as entidades representativas da saúde pública. Neste inverno, um terceiro e inédito evento piorou o que já estava ruim: a sistemática ausência de pediatras aos finais de semana no Pronto-Atendimento 24 Horas (Postão), situação nunca vista desde que o serviço reabriu após reformulação em 2008.
No atual estágio, fica claro que não há um plano do Executivo para amenizar imediatamente o drama de quem recorre a um posto de saúde ou definha dias à espera de leito hospitalar. Pelo contrário, tudo parece conspirar contra a população: aumento dos casos de gripe A, muitos médicos em férias, falta de medicamentos contra doenças respiratórias, falta de materiais para o trabalho das equipes no Postão e hospitais superlotados.
Diante desse declínio da saúde pública na cidade, o Pioneiro buscou a opinião de representantes de diferentes setores para saber qual é a saída para a crise e a opinião parece ser unânime: mais diálogo entre prefeitura e demais setores. O Ministério Público (MP) acendeu o alerta e pretende intermediar uma solução:
— A situação é séria. Pretendo agendar uma reunião com o prefeito para discutir a situação tomando por base a última vistoria realizada em conjunto com o Cremers e os recentes acontecimentos — diz a promotora de Justiça Adriana Chesani, que está de férias e retorna nos próximos dias.
No início do ano, o Cremers já havia recomendado a interdição do Postão devido à precariedade do serviço. Para Adriana, uma ação assim neste momento sobrecarregaria a Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) Zona Norte e hospitais.
— Com relação aos pediatras, há muito tempo ouço dos secretários de saúde, inclusive das gestões anteriores, que a situação se agravaria cada vez mais, já que os médicos estariam cada vez menos interessados nessa especialidade, o que resulta em uma escassez de profissionais nessa área.
É muito importante que a administração, os profissionais da saúde e o Conselho Municipal possam estabelecer um diálogo construtivo, pois todos têm conhecimento da situação e interesse em ver a população sendo bem atendida, com o direito à saúde garantido — finaliza Adriana.
O pedido de entendimento também ecoa na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
— O problema da saúde pública é comum e histórico a todos os municípios e ao poder público em geral. Ocorre que, em Caxias, esse problema é agravado por um embate político. A Ordem dos Advogados do Brasil, Subseção de Caxias do Sul, buscou a aproximação entre o Poder Executivo e os demais atores da área da saúde, sem sucesso, infelizmente. A obrigação do agente público é buscar alternativas para aos problemas enfrentados pela comunidade, sendo, o diálogo, essencial para este fim. A OAB tem como prerrogativa a defesa da cidadania e, portanto, permanece à disposição como mediadora para resolução de tão importante demanda — opina a presidente da Subseção de Caxias, Graziela Cardoso Vanin.
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SINAIS DE QUE A SAÚDE PÚBLICA NÃO VAI BEM
FALTA DE MÉDICOS
O Executivo garante que o baixo interesse dos médicos não permite o preenchimento das vagas em aberto no município. De 93 vagas nomeações neste ano, somente 31 assumiram, conforme o secretário da Saúde, Geraldo da Rocha Freitas Júnior — hoje, são 365 profissionais nos quadros do município. Para amenizar um dos maiores gargalos da saúde no momento, seriam necessários mais 16 pediatras, na avaliação da Secretaria da Saúde, sendo quatro deles para o Postão.
Um dos motivos para a baixa adesão é o salário. No ano passado, a categoria pediu aumentou, o que gerou uma greve seguida de demissões e pedidos de exoneração.
— Na nossa região, os planos de saúde são muito mais atrativos em função dessa dificuldade da renumeração. A coparticipação, só a diferença que o usuário paga (ao médico) numa consulta pode chegar até R$ 100. A lei de responsabilidade fiscal, limitando a utilização do orçamento público em no máximo 49% com a folha de pagamento, é que nos limita hoje de abrir mais concursos para médicos — justifica o secretário da saúde.
O presidente do Cremers, Fernando Webber Mattos, garante que os médicos estão interessados em ingressar no sistema público. O que falta, segundo ele, é planejamento e gestão.
— Não acredito que existe birra por parte dos médicos, eles estão loucos para trabalhar, só querem receber direito e ter condições de trabalho.
PLANEJAMENTO FALHOU
Desde que o Postão foi reinaugurado em 2008, sempre houve atendimento pediátrico, salvo alguma exceção. Não é o que ocorre agora, com atendimentos sendo suspensos de forma sistemática e pacientes redirecionados para a UPA. A espera é longa na unidade da Zona Norte e, muitas vezes, são clínicos que avaliam crianças no lugar de pediatras, segundo o Sindicato dos Médicos e profissionais da saúde.
Se não é um equívoco uma criança ser analisada por um clínico, nem sempre o diagnóstico será do mesmo nível do especialista. Para complicar o cenário, 43 médicos em geral estarão de férias nas UBSs em períodos alternados e o município não encontrou substitutos para eles. Tudo isso ocorre num período onde a procura por consultas é grande por causa do frio. O Conselho Municipal da Saúde já cobrou a secretaria para que apresente o plano de contingência para este ano, mas ainda não recebeu resposta.
FALTA DE REMÉDIOS
A última lista divulgada pela prefeitura indicou a falta de 20 remédios distribuídos gratuitamente para a população. São composições para tratamento do coração, de doença pulmonar e de controle da pressão, entre outros. É algo preocupante num período em que remédios são essenciais para combater os efeitos das doenças típicas do frio. A Secretaria da Saúde afirma ter tido dificuldade para repor o estoque porque a procura pelos remédios aumentou, mesmo por parte de pacientes com planos de saúde. Por outro lado, as distribuidoras não entregaram no prazo devido à greve dos caminhoneiros.
— Tivemos o ano passado, com judicialização, gastos em torno de R$ 6 milhões com medicamentos, e muitos desses não são responsabilidade do município. São chamadas medicações de atendimentos especializados que a responsabilidade é do Estado, assim como outras medicações são fornecidos pelo Ministério da Saúde, que é o tratamento de câncer. O que ocorre: as pessoas sentindo falta, lógico vão buscar resolver seu problema, é natural, na Justiça. E a sentença sempre vem para o município, o município acaba abarcando com uma responsabilidade que não é dele. O município investe 25% do seu orçamento em saúde, então já ultrapassou o limite constitucional. Essas judicializações têm contribuído para esse agravo — diz o secretário.
MORTE DE PACIENTES
Não é de hoje que surgem casos de pacientes que morrem ao passar pelo Postão. Desde 2017, já são quatro casos, embora ninguém tenha provado até agora que esses óbitos tiveram relação com suposto mau atendimento prestado pelo serviço. Contudo, as situações são alerta para as brechas no atendimento em rede. O caso de Teylor Terra da Fonseca, 10 meses, confirma novamente que o Postão e a UPA seguram pacientes graves por três, quatro dias seguidos devido à falta de leitos em hospitais. Com insuficiência respiratória, Teylor aguardou 48 horas por uma vaga de UTI pediátrica e acabou morrendo na madrugada de 9 de julho.
Uma das maiores referências na Serra, o Hospital Pompéia vem alertando há que os leitos estão sendo ocupados por pacientes de baixa complexidade não atendidos na rede básica.
— As pessoas buscam a UBS, não tem médico, vão no Postão, a demora é alta, e vem para cá. O que mais preocupa é a persistência desse volume de baixa complexidade, que ocupa um leito, às vezes para diagnóstico e quem está no Postão tem que esperar lá porque não há leitos aqui. Temos um grupo que se reúne para discutir a situação e chegam relatos das dificuldades, da falta de médicos. É tão difícil conjuntamente achar uma solução, se percebe esforço na secretaria para solucionar. Mas, às vezes, frustra não achar uma solução — diz Daniele Meneguzzi, superintendente administrativa do Pompéia.
FALTA DE LEITOS
A procura pelo SUS cresceu, a população de Caxias do Sul aumentou, mas a oferta de leitos hospitalares diminuiu. São 12 vagas a menos em relação a junho de 2012, segundo dados do SUS. O resultado são hospitais lotados e os leitos da UPA e do Postão sempre ocupados. A brecha maior ainda são as vagas para tratamento em UTI adulto e pediátrica. Conforme a 5ª Coordenadoria Regional da Saúde (5ª CRS), seriam necessários de 15 a 20 leitos de UTI adulto para dar conta da demanda. Embora a alta complexidade seja de responsabilidade do Estado e da União, o município tem um papel fundamental para pressionar o governo gaúcho e o Ministério da Saúde, o que poderia ter sido realizado principalmente no inverno.
— O que acontece é que o HG e o Pompéia são de alta complexidade e recebem pacientes de 49 cidades. O próprio município poderia buscar mais leitos de média complexidade em hospitais da região, isso já foi feito anteriormente. Acredito que podemos sentar com o município e ver essa possibilidade — diz a coordenadora da 5ª CRS, Solange Sonda.
DEMORA PARA EXAMES, CONSULTAS E CIRURGIAS
A fila de espera para exames e cirurgias está longe de ser resolvida. Levantamento mais recente apontava que 4.451 pessoas aguardavam para realizar uma cirurgia eletiva (não urgente) na cidade. Em relação aos exames, era 4.665 pacientes na fila até maio — uma tomografia, por exemplo, pode levar um ano para ser realizada. Na espera por um atendimento de médico especialistas, são mais de 36 mil pessoas. A Secretaria da Saúde afirma que está avaliando os casos para organizar um esquema de trabalho onde seja viabiliza a consulta e a marcação dos exames em seguida. Contudo, ainda não divulgou prazo para o trabalho.
FALTA DE DIÁLOGO
Está difícil o diálogo entre Executivo, Conselho Municipal da Saúde e a própria classe médica. A prefeitura diz que não está sendo compreendida quando apresenta projetos para compartilhar a gestão da saúde. Mas os integrantes do Conselho, por exemplo, garantem que só chamados para aprovar projetos já concebidos pelo Executivo. Situação parecida só ocorreu no governo de José Ivo Sartori, quando a relação entre os médicos e o prefeito complicou e favoreceu a mais longa greve da categoria na cidade, com oito meses de duração.
Como resposta à atual crise na saúde pública, o prefeito Daniel Guerra insiste no compartilhamento da gestão e apresentou recentemente o projeto de um plantão pediátrico, que também ficaria sob a responsabilidade da iniciativa privada. Mesmo que fossem aprovadas pelo Conselho da Saúde, um cenário improvável por diversos motivos, as propostas não seriam implantadas rapidamente devido ao trâmite legal das licitações.
— O Conselho de Saúde não é oposição, mas não podemos ser coniventes com erros, não posso saber que na rede pública não tem sabão para lavar as mãos e não denunciar. Toda vez que somos chamados pela prefeitura não é para conversar, mas para que eles nos apresentem projetos deles. E as propostas são sempre para terceirizar a saúde. Já provamos que dá para fazer o UBS+ sem terceirizar o Postão _ critica a presidente do Conselho da Saúde, Fernanda Borkhardt.
O presidente do Cremers também vê dificuldade de conversação:
— A crise em Caxias é a mesma das grandes cidades, existe grande quantidade de pacientes, poucos leitos. O que existe e não consigo entender é o desinteresse do gestor em corrigir os problemas. Se houvesse vontade política, boa parte estaria resolvida. Parece existir um ranço na comunicação entre gestor e municipários que não termina nunca e quem se prejudica é a população, lógico. Não adianta o Cremers fiscalizar, fazer relatórios e ninguém faz nada — alfineta Fernando Webber Mattos.
TROCA DE SECRETÁRIOS
Quatro secretários diferentes em apenas 18 meses de gestão pública mostram que algo não está bem na administração da Secretaria da Saúde _ Geraldo da Rocha Freitas Júnior assumiu em junho deste ano.
A pasta foi gerenciada por três médicos. Agora, é um administrador que conduz o orçamento anual de cerca de R$ 400 milhões. São visões e experiências diferentes para um setor que exige urgência e coesão. Os três secretários anteriores alegaram razões pessoais para se afastar do cargo. Nos bastidores, porém, a informação é de que existe muita pressão tanto por parte do Executivo, que busca a terceirização dos serviços para reduzir custos previdenciários, quanto por parte dos servidores municipais e das entidades contrárias a esse projeto.
Um dos efeitos do troca-troca numa secretaria essencial para a população é o atraso para a apresentação do plano plurianual da Saúde, que traça ações para serem executadas entre 2018 e 2021. Segundo Fernanda Borkhardt, do Conselho Municipal da Saúde, o plano deveria ter sido apresentado ainda em 2017, o que não ocorreu.
— O plano anual também não foi apresentado — complementa Fernanda.