Após boa dose de expectativa, o Ministério da Saúde autorizou, em 1º de fevereiro, que o medicamento trastuzumabe fosse receitado no Sistema Único de Saúde (SUS) para combater o câncer de mama metastático, a forma mais avançada da doença, quando o tumor se espalha para outros órgãos e não há mais cura. A notícia foi comemorada por pacientes de todo o país, uma vez que a droga é uma das mais eficazes. No entanto, passado um mês e meio, o remédio ainda não chegou de fato aos interessados no Rio Grande do Sul. E a culpa, segundo o ministério, é da burocracia na logística. Enquanto isso, só quem entra na Justiça tem acesso ao tratamento.
É o caso da pedagoga Márcia Cristina Fernandes. Foi em 2008, aos 26 anos, que ela enfrentou, pela primeira vez, o câncer de mama. À época, o trastuzumabe só era disponível na rede privada, mas ela tinha plano de saúde e pôde tratar o tumor, que desapareceu. Posteriormente, em 2013, o SUS iniciou o fornecimento da droga para pacientes com câncer — sem metástase.
Mas em 2016, aos 34 anos e com uma filha de um ano, Márcia foi diagnosticada justamente com câncer de mama metastático, no subtipo HER2+ (entenda mais no detalhe). A doença havia atingindo a pleura, membrana que reveste o pulmão. O tratamento mais eficaz era, novamente, com o trastuzumabe.
Fora do antigo emprego como auxiliar de recursos humanos e sem convênio, ela se deu conta de que, dependendo unicamente do SUS, não teria acesso à droga. Optou, então, por entrar na Justiça e obteve o direito de recebê-lo gratuitamente em março de 2017. Mas a demora de quatro meses permitiu que o câncer atingisse os ossos.
Desde então, a cada 21 dias, Márcia sai do bairro Jardim Carvalho, na zona norte de Porto Alegre, pega o trastuzumabe na farmácia estatal, no Centro Histórico, armazena-o em um isopor com gelo e leva até a Santa Casa, onde recebe o tratamento via cateter no lado esquerdo do peito, acima da mama. Entre filas, a função perdura um dia inteiro.
Quando o ministério publicou, em 1º de fevereiro, o protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) para a doença, que na prática libera hospitais a estabelecer quais pacientes se enquadram para recebimento de uma droga pelo SUS, Márcia ficou aliviada: a partir dali, precisaria apenas ir direto ao hospital para o tratamento, sem peregrinações pela cidade e sem depender do mandato judicial. Em 5 de fevereiro, foi à Santa Casa solicitar o remédio como paciente comum, mas recebeu a primeira negativa _ a segunda viria em 26 de fevereiro.
— Me disseram que o trastuzumabe ainda não estava disponibilizado no SUS para tratar câncer de mama metastático, aí tive que correr no mesmo dia até a farmácia do Estado para pegá-lo por via judicial. Voltei novamente à Santa Casa 21 dias depois e me disseram o mesmo. Só que, nessa segunda vez, nem na farmácia do Estado, onde pego por via judicial, tinha, e só pude me tratar em 7 de março. Ainda dependo da judicialização, mas a insegurança de talvez não ter a medicação quando preciso afeta minha qualidade de vida. Fico ansiosa, durmo mal. Só penso na minha filha — conta, com a voz embargada por lágrimas ao mencionar Luana, hoje com três anos.
No Brasil, 200 mil frascos de trastuzumabe, são, todo ano, comprados e distribuídos aos brasileiros, segundo o Ministério da Saúde. O governo federal os repassa às secretarias estaduais da Saúde, responsáveis por direcioná-los a hospitais. Com a inclusão de pacientes com câncer de mama metastático HER2+ no esquema, a expectativa é atender mais 2,5 mil pessoas.
Segundo a Secretaria Estadual da Saúde, no Rio Grande do Sul, há 90 pacientes que solicitaram o trastuzumabe por via judicial. Cada frasco custa R$ 9.342 e o consumo mensal é de 170.
Maira Caleffi, presidente da Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama (Femama), critica o Estado por "não cumprir com a lei". Ela sustenta que há um "abismo" no acesso a tratamento entre pacientes de convênio e do SUS.
— As pacientes com câncer de mama metastático (do SUS) não estão sendo tratadas por causa da falta do trastuzumabe. Hoje, no SUS, quem tem HER2+ só faz quimioterapia. É a diferença entre a vida e a morte — diz.
Gustavo Werutsky, oncologista do Hospital São Lucas da PUCRS e autor de um estudo sobre a eficácia do trastuzumabe publicado no jornal da Sociedade Americana de Oncologia Clínica em junho do ano passado, concorda com Maira.
— Convênios privados é que fornecem o que há de mais moderno. A judicialização só ocorre pela discrepância entre sistema privado e público — avalia.
CONTRAPONTOS
O que diz a Secretaria Estadual da Saúde
Informa que a remessa de trastuzumabe adquirida pelo Ministério da Saúde para pacientes metastáticas "não está atrasada" e que deve chegar à rede pública "a partir do segundo trimestre". "O protocolo clínico é de fevereiro de 2018 e somente a partir da publicação do protocolo clínico (é que) os hospitais podem estabelecer quais pacientes com câncer de mama metastático se enquadram para recebimento do medicamento trastuzumabe".
No caso de Márcia, a secretaria diz que, como o pedido foi judicializado, o medicamento não vem via Ministério da Saúde, e sim é comprado pela SES, mas que houve atraso porque o fornecedor não entregou no dia combinado.
O que diz o Ministério da Saúde
A pasta explica que o atraso ocorre por uma "janela" de logística burocrática. A compra e envio de medicamentos pelo governo federal aos Estados ocorre uma vez por trimestre, após o recebimento do número de pessoas que necessitam do remédio. Só que o último pedido, para câncer de mama inicial e localmente avançado, foi em dezembro, referente ao primeiro trimestre do ano.
Em nota, diz que "entrega e distribuição do medicamento trastuzumabe estão regulares em todo o país". Ainda afirma que a distribuição do trastuzumabe para os pacientes com câncer de mama metastático que puderam ser incluídos para tratamento pelo SUS ocorrerá ainda em março. A partir de então, "a distribuição aos municípios é de responsabilidade das secretarias estaduais da saúde".