Tal como um livro, na vida escrevemos uma página a cada dia. As fases podem ser divididas em capítulos. Por mais que os fatores externos ou alheios a nossa vontade interfiram nas páginas em branco, o rumo da história é dada pelo seu próprio autor e suas ações.
Atitude é uma palavra constante no livro do técnico Luan Carlos, do Caxias. Aos 23 anos, o jovem não teve receio de comandar a sua primeira equipe profissional no futebol, o Novo Horizonte de Goiás. Quando assumiu, o time estava na lanterna na Série A2 do estado e ele conseguiu reverter um quadro que parecia impossível.
— Faltavam sete jogos e o time estava virtualmente rebaixado. Eu era preparador físico, e dos sete jogos foram cinco vitórias e dois empates. Não subimos por dois pontos. De lá fui para o Grêmio Anápolis, de Goiás, de investidores portugueses. Ali mudou um pouco minha vida no sentido de metodologia de trabalho. Eles defendem muito a periodização tática. O diretor de futebol era treinador Uefa-Pro e me cobrava muito — declarou o técnico em entrevista ao programa Show dos Esportes, da Rádio Gaúcha Serra.
Luan é um grande admirador da literatura. Leitor voraz, ele começou aos 14 anos no futebol. Aos 16, já cursava a faculdade de Educação Física. Na vida, não foi jogador, mas sabia que no seu livro haveria um capítulo de treinador.
— Eu quis ser treinador aos 14 anos quando era auxiliar de roupeiro. Via os treinadores dando treino, planejando e me envolvia muito. Gostava de ver eles dando treino. Então entrei no futebol pelo mundo acadêmico. Me formei em Educação Física e entrei no futebol como preparador físico, fiz fisiologia do exercício, especialização em psicologia do esporte. Tudo isso porque queria ser treinador — revelou.
"Se você não sabe onde quer ir, qualquer caminho serve". A frase do livro Alice no País das Maravilhas gera uma grande reflexão para quem precisa de uma direção. Luan não tem medo de escolhas. Logo na adolescência, aos 16 anos, tomou uma decisão na vida. Queria conhecer o seu pai.
— Eu cresci apaixonado por futebol, jogando futebol, brincando, mas não conhecia meu pai e não sabia que ele tinha envolvimento com futebol, até porque, a minha mãe guardava isso para ela. Eles tiveram um desentendimento, quando meu pai foi embora ela estava grávida . Ela e ele não sabiam. Depois perderam o contato. Eu cresci com a minha mãe, minha avó e minha tia, mas não conhecia meu pai. Nunca entendi o que é ter uma figura paterna. Mas chega um momento da vida que tive uma curiosidade, porque meus amigos tinham pai e eu não — lembra Luan Carlos.
O PRIMEIRO CONTATO
Conforme passagem do livro O Pequeno Príncipe, referência quando o assunto é filosofia para Luan, as pessoas são solitárias porque constroem muros ao invés de pontes. O jovem quis construir a ligação com seu pai. Depois de conversar com a sua mãe, teve o primeiro contato com o pai, Paulo Marcos de Araújo Lacerda. O que ele não imaginava era a ligação de Paulo com o futebol.
— Aos 16, quando entrei na faculdade, a patroa da minha mãe conseguiu o contato dele. Ele esteve na minha cidade e a gente se encontrou. Hoje é um grande amigo que tenho, me dá bons conselhos, nada sobre futebol, mais sobre a vida mesmo. Tive a oportunidade, em 2011, de trabalhar com ele no Americano, de Campos de Goitacazes, no Rio de janeiro. Fui preparador físico por um pequeno tempo — disse.
Hoje com 66 anos, Paulo Marcos foi zagueiro do Inter na década de 1970. O que talvez explique a paixão do jovem pela área técnica. O futebol está presente no DNA. O ex-jogador conversou com o Pioneiro, e não poupou palavras para falar do orgulho de ter o filho treinador.
— Quando cheguei em Goiás, após o contato por telefone, nos abraçamos e só chorei. Fui zagueiro e o pessoal dizia que eu era violento, mas o coração era enorme. Expliquei que nunca deixaria filho meu sem meu carinho. Daí pra frente, quase todo dia a gente se fala — comenta Paulo Marcos.
Apesar de não ter acompanhado o crescimento de Luan desde criança, Paulo Marcos está ligado em todos os passos do filho na carreira profissional e pessoal.
— É uma pessoa excepcional. Não tive o privilégio de conviver com ele na infância. Fui conhecê-lo aos 16 anos emocionado, porque tinha todos os recortes de jornais meus e dizia que queria ser treinador. Ele parece velho, se você for conversar com ele. É uma pessoa muito bem calçada. Fui treinador durante 25 anos, fui campeão do Espírito Santo quatro vezes. E ser treinador é um desgaste emocional todo tempo, e ele escolheu esse caminho. É um garoto que, na idade dele, outros estariam procurando um bom bar, paquerar um pouco. Ele é 24 horas treinador de futebol — falou o pai de Luan Carlos.
COTADO À COPA DE 78
O ex-zagueiro jogou no Inter no final da década de ouro do Beira-Rio, em 1978, 1979 e 1980. Ele integrava o elenco tricampeão do Brasil. Em 1978, atuou em praticamente todo o Campeonato Gaúcho.
O defensor ingressou no futebol com 16 anos, jovem assim como filho, e viu a sua história dentro de campo mudar após ser cogitado pelo técnico da Seleção, Cláudio Coutinho, para a Copa de 1978, na Argentina.
— Em 78, disputando o Campeonato Brasileiro, o Coutinho me colocou em uma possibilidade de convocação para a Copa da Argentina. Aquilo me ajudou muito. Saiu no jornal O Globo que uma das peças de reposição seria eu. O Flamengo, o São Paulo e o Grêmio queriam me comprar. Daí o Inter me pegou em um jogo em Campinas, contra o Guarani, e já negociou com o Goitacazes, depois do jogo, e me colocou no avião — relembra Paulo Marcos.
Até parar de jogar, em 1990, Paulo Marcos passou por Santa Cruz-PE, Operário, Atlhetico, Novorizontino, CSA e Americano, entre outros. Ele chegou ao Beira-Rio com status de ser o substituto de Elías Figueroa. Entretanto, sofreu com as lesões, que atrapalharam a sequência da carreira.
— Eu tive problemas de muitas contusões musculares. Foi uma passagem muito boa pelo Inter, mas tive uma desgaste com as contusões, que geraram muitos questionamentos e um desgaste. Depois que voltei de empréstimo do Santa Cruz, tive um problema de desentendimento com o presidente na época. Foi pesado e acabei vendido — recorda.
Seu último trabalho foi em 2020, quando assumiu a gerência de futebol do Americano. Aposentado, hoje ele cuida de uma fazenda de gado no estado do Rio de Janeiro. Ele brinca que o futebol fez mudar a cor dos seus cabelos.
RECADO ESPECIAL
Luan não guarda mágoas do passado. No livro da vida, é melhor não gastar linhas com sentimentos que corroem a boa convivência. Ele se espelha muito no ex-zagueiro. O futebol, às vezes, entra na pauta, mas os conselhos da vida predominam.
— A gente conversa sempre, fala sobre a vida. É um cara que tem muitos valores e me fala muito sobre as experiências que teve e como superou algumas situações. É um cara que veio do nada e conquistou muita coisa com suor e trabalho. Me espelho muito em algumas coisas que ele fala — contou Luan Carlos.
Neste sábado (23), diante do Juventus-SC, às 15h, será a vez do Caxias escrever mais um capitulo na sua história. Aliás, o grená entrará em campo no dia mundial do livro, querendo deixar boas impressões nas primeiras páginas .
Sobre a estreia do filho, Paulo Marcos deixa um recado:
— Que ele nunca abra mão das suas convicções. Isso é primordial para um treinador. Hoje, se observa muita gente vendendo a alma, fazendo aquilo que pensam por eles. Depois, trabalho, trabalho e confiança em Deus. Criar um ambiente harmonioso no grupo, de amizade e respeito. Se conseguir fazer isso é meio caminho andado para alcançar os objetivos — finalizou o ex-zagueiro do Inter.