Durante a pandemia, muitas atividades precisaram ser adaptadas. A rotina de trabalho, estudo e até o lazer sofreram mudanças durante esses 10 meses em que estamos convivendo com a covid-19. No entanto, mesmo com os desafios e os empecilhos para adaptar a rotina à nova normalidade, a família Spadari deu seu jeito. Morando em Pinto Bandeira — município com pouco mais de 3 mil habitantes —, Seu Heitor, 63 anos, e a filha Hélen, 23, arrumaram uma forma de ultrapassar as barreiras e manter os treinamentos para provas de atletismo.
Foi em julho de 2020 que eles decidiram construir uma pista improvisada no terreno da família, mais precisamente no potreiro. O espaço tem um percurso de cerca de 250 metros e contribuiu na preparação para o retorno das competições.
— O ideal, como eu disputo competições de pista, seria fazer treinamentos em outro piso. Mas, como eu não recebo para ser atleta, e todos esses anos me mantive trabalhando na roça, estudando e treinando, a gente teve que arranjar essas alternativas. Inclusive, foi onde eu treinei para o Troféu Brasil. Não tenho acesso à pista, até mesmo porque os locais de treinamentos foram fechados durante a pandemia. Então, foi ali onde fiz todos os meus treinamentos — comenta a atleta.
Por conta dos resultados obtidos nos últimos anos, Hélen compete nos principais eventos de atletismo do Brasil. Além disso, mantém as raízes e participa de algumas provas de rua na região e no Estado.
— Fui quarta colocada nos 3.000 metros com obstáculos no último Troféu Brasil, em dezembro. Sou a quarta melhor do país nessa prova. Foram menos de três segundos da terceira colocada, faltou um detalhezinho, mas que com certeza vamos ajustar para o próximo ano — conta Hélen.
Cheio de orgulho da filha, seu Heitor explica como foi feita a pista, que ajudou na preparação dela para a prova em São Paulo:
— Foi colocado uma passada de petrisco e depois uma passada de pó de brita. Então, ficou firme e um pouco macio também. Antes, a gente treinava num campo de futebol, aqui próximo da nossa casa, que era um local plano. Só que, no último ano, eles impediram a gente de treinar. Então, construímos a pista e acho que isso foi melhor, porque agora podemos treinar em casa, mais vezes, e aproveitar mais juntos também.
O amor pelas corridas de rua não é de hoje. São mais de mil conquistas expostas na sala de casa, por meio de troféus e medalhas. Só Seu Heitor tem 45 anos dedicados a esse esporte, desde os seus 16. São mais 14 da filha Hélen e 19 da filha mais velha, Suelen, de 31.
— Eu comecei com umas brincadeiras no colégio (em Bento Gonçalves), competia com os outros alunos e ganhava. Depois, começou a competição entre os colégios e eu também vencia. A primeira medalha foi aqui em Bento Gonçalves. Depois, comecei a correr fora, e ganhei uma prova em Caxias. Ganhei meia-maratona, ganhei 10 mil metros rasos. Depois, eu deixei um pouco (de lado), porque tinha muito trabalho. Mas as gurias começaram a se interessar, continuei competindo, comecei a ganhar na máster, uma Meia Maratona, ganhei o Troféu Brasil e até hoje estou continuando. E não pretendo largar tão fácil — conta o pai.
O começo de Hélen foi diferente. Sua primeira prova foi com seis anos — a Corrida dos Fraldinhas, em Farroupilha. No entanto, seus olhos não brilhavam ao falar do atletismo e ela participava das competições apenas porque gostava de acompanhar o pai e a irmã. A história só mudou quando ela completou 10 anos:
— Antes, eu passava pelo tanque de tratar as parreiras, molhava o rosto, ficava um pouquinho na sombra, e dizia: "bah, fiz um treino". Voltava toda suada, só que não, e chegava na prova e não rendia. Mas, depois, a minha irmã começou a me acompanhar nos treinos e comecei a fazer certinho. Aí sim, comecei a me dedicar, gostar e evoluir.
Outros obstáculos ultrapassados
Morando no interior, a família trabalha na roça, colhendo e plantando uva, figo, caqui, entre outras frutas. Seu Heitor faz isso desde a infância, e com as filhas não foi diferente.
— É bem difícil, porque o trabalho é cansativo e o treino também é. Meu pai sempre fez isso. Desde que ele começou, sempre trabalhou. E, ao meio-dia, geralmente, é o horário do treino. Então, a gente vai, trabalha, volta, treina, descansa, se é possível, e depois volta a trabalhar — detalha Hélen, que também cita as implicações do trabalho no treinamento:
— Se eu treinar forte e depois for trabalhar, não vou ter o mesmo rendimento, e vice-versa. É uma dificuldade, mas a gente conseguiu conciliar durante todos esses anos. Às vezes, até no período de safra, a gente acordava às 3h30min para poder trabalhar e treinar. É uma luta diária.
Mesmo com a rotina cansativa, a família consegue ajustar a rotina para treinar todos os dias. Eles contam que, durante a safra, a carga horária pode chegar a 16 horas, mas que sempre se adaptaram.
— A gente sempre treinou todos os dias. Não precisa ser exatamente a corrida todo dia, mas com exercícios, fortalecimento e, esse ano que eu troquei de treinador, ele pede para eu fazer treino de corrida todo dia, mais os fortalecimentos e todo o resto. Então, está bem puxado — resume Hélen.
Há cerca de 10 anos, Hélen foi convidada pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) para participar da equipe de atletismo. Neste momento, ela ingressou também nas corridas com obstáculos e, para treinar, a família também deu um jeitinho de ajudar:
— A gente construiu obstáculo por conta, para eu poder competir, porque chegava na prova e tinha medo, porque o obstáculo é fixo. Até hoje, a gente vai ultrapassando obstáculos para poder dar continuidade.
Projeções para 2021
Em decorrência da pandemia, todos planos para 2020 foram desfeitos. As competições não aconteceram para evitar a disseminação do vírus. Agora, em 2021, e com as vacinas sendo testadas, a esperança é de voltar a participar das provas.
— Foi um choque grande (a pandemia) para quem fazia até 30 provas por ano e ficou sem fazer, praticamente, nenhuma. Inclusive, em 2010, eu fiz 30 provas de rua e ganhei 30 primeiros lugares no máster. Eu estava fazendo 70/80 km por semana, mas agora, com a pandemia, sem competições, ficou abaixo disso — relata Seu Heitor.
Em 2010, eu fiz 30 provas e ganhei 30 primeiros lugares no máster
HEITOR SPADARI
45 anos dedicados à corrida de rua
Para 2021, a meta de Hélen é conquistar uma vaga no Sul-Americano de atletismo, que deve ocorrer em maio. Para isso, a rotina de treinamentos foi intensificada, com o auxílio do treinador Alex Lopes.
— Eu nunca treinei tanto como nesse último ano. Estava fazendo em média 40 ou 50 quilômetros semanais. Fazia mais intenso, mas menos quilometragem. E neste ano foram de 100 a 120 por semana, foi uma progressão. Eu já sei um calendário provisório da Confederação Brasileira, que vai ter uma Copa em abril, o Troféu Brasil está marcado para o início de junho, o Sul-Americano é em maio. Provavelmente, eles vão tirar pelo ranking quem vai representar o Brasil. Então, até abril a gente vai ter que competir. É provável que saiam GPs Sul-Americanos também. Ainda não têm datas definidas, mas o calendário provisório já está organizado — comenta.
Seu Heitor, por sua vez, só pensa no retorno das competições de rua. Ele já almeja voltar a correr e conquistar mais alguns troféus para expor na sala de casa.