Antes do brinde e, da explicação acerca da importância da profissão de enólogo, segue uma analogia para ilustrar o valor do trabalho contido na elaboração de um bom vinho.
Mesmo quem não é interessado em música, com certeza já ouviu falar do quarteto fantástico The Beatles. Entre 1960 e o final de 1962, John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e, o primeiro baterista da banda, Pete Best, viajaram para tocar em Hamburgo, na Alemanha, por cinco vezes. Durante pouco mais de um ano e meio, tocaram 270 noites. Então, em fevereiro de 1964, quando os Beatles aterrissaram nos Estados Unidos como uma estrela cadente, já com Ringo Star nas baquetas, a banda havia se apresentado cerca de 1.200 vezes. No livro Fora de Série, do colunista da revista The New Yorker, o autor cita um trecho de uma entrevista com John Lennon, em que ele revela a importância desse período de shows em Hamburgo.
“Em Liverpool (Inglaterra), fazíamos sessões de uma hora e costumávamos apresentar nossos melhores números, sempre os mesmos, em cada show. Em Hamburgo, como tocávamos durante oito horas, precisamos realmente descobrir uma nova forma de fazer aquilo”.
E o que isso tem lá a ver com um bom vinho? Se enologia é a arte e a ciência da elaboração de vinho, nem é preciso forçar muito o significado dessa analogia. Porque, dentro de uma garrafa, fechada com uma rolha de cortiça e emoldurada com um rótulo, há horas, meses, por vezes, anos de trabalho. Assim como no caso dos Beatles, o sucesso não veio apenas com talento inato, um bom vinho não chega às prateleiras de um supermercado apenas por ter sido elaborado à partir de uma vinha plantada em um terroir diferenciado. Fosse simples assim, em cada esquina de Liverpool veríamos brotar novos Beatles a cada semana.
O terroir da Serra gaúcha, estendendo-se até os Campos de Cima da Serra e tem proporcionado safras importantes e até históricas, como é o caso desta colhida em 2020. Mas para além desses fatores climáticos e de território, o enólogo Daniel Salvador, presidente da Associação Brasileira de Enologia (ABE), revela o que ele julgam ser os aspectos importantes e seminais da profissão.
– O enólogo não representa apenas um setor da economia, ele tem uma ligação cultural e comunitária muito forte. Se fosse feito um levantamento, boa parte dos enólogos ativos da nossa região são filhos de descendentes italianos. Por isso, o enólogo tem também a responsabilidade com a evolução da região, porque desenvolve um dos produtos chave, que coloca a Serra em visibilidade nacional e internacional. Além da produção do vinho, temos na Serra o enoturismo com a visita às vinícolas, enfim, gerações de famílias que cresceram por meio da enologia – observa Salvador, proprietário da Vinícola Salvatore, de Flores da Cunha, pós-graduado em Enologia pela UCS e em Gestão Empresarial pela UCS e FGV.
A associação, fundada no dia 22 de outubro de 1976, data que acabou por ser o dia do enólogo no Brasil, nasceu com objetivo de contribuir no aperfeiçoamento dos profissionais. Atualmente conta com 320 associados e ajuda no desenvolvimento do setor vitivinícola com palestras, congressos e simpósios, além de organizar a Avaliação Nacional de Vinhos, o Brazil Wine Challenge e o Concurso do Espumante Brasileiro.
Safra das safras
Só depois das festas de final de ano haverá um dado consolidado de venda de vinhos e espumantes no Brasil. Mas, de um modo geral, as vinícolas estão surpresas com o bom resultado, apesar da pandemia. Aliás, em julho, quando ocorreu o período de maior isolamento dos brasileiros, por conta das medidas de restrição à covid-19, foram comercializados 63,4 milhões de litros – três vezes mais do que o mês de março, com 21,3 milhões. Os dados da Ideal Consulting mostram ainda que, de janeiro a agosto, foram 313,3 milhões de litros, 37% a mais do que o mesmo período do ano passado.
– Entre os enólogos, falamos que ganhamos um presente da natureza com a qualidade da safra de 2020, diante de uma rápida evolução que tivemos, baseada em muito esforço. A “safra das safras” foi só uma das condições, porque acredito que em 2005, a qualidade da uva era ainda melhor. No entanto, 15 anos depois, o diferencial é justamente o fato de termos profissionais com mais riqueza técnica, com mais erros e acertos, que proporcionam uma experiência maior de trabalho, em vinícolas mais preparadas com técnicas de vitivinicação mais avançadas – defende Salvador, presidente da (ABE).
Como defende o colunista da revista The New Yorker, no livro Fora de série, seja para criar uma obra-prima musical ou um bom vinho, é preciso muito esforço e trabalho.
– Nosso desafio é manter a regularidade da qualidade dos nosso vinhos, em altíssimo nível – observa Salvador.
Janaína Massarotto é a primeira mulher dona de uma vinícola no Brasil
Janaína Massarotto tem 31 anos, nasceu em Flores da Cunha e já foi rainha da Festa Nacional da Vindima. Por ter sido soberana de uma das festas mais importantes da região, que celebra a cultura da colheita e da elaboração dos vinhos, ainda há quem ache estranho Janaína ter optado pela enologia, ao invés de seguir no mercado da moda. Esse universo do vinho, ainda restrito às mulheres, cujas barreiras têm sido quebradas na base da imposição e da coragem de mulheres como Janaína, tem florescido em boas colheitas.
Formada há nove anos no curso de Tecnologia em Viticultura e Enologia, do Instituto Federal Rio Grande do Sul, no Campus de Bento Gonçalves, Janaína resolveu criar a sua vinícola em 2016. Já tem colhido nos vinhedos, mas o complexo todo da Vinícola Marzarotto, em Nova Pádua, com espaço para a vinificação e atendimento aos clientes deve ficar pronto somente em 2022.
– Esse projeto da vinícola me tornou a primeira enóloga do Brasil a ser dona de uma vinícola. Temos mulheres enólogas que trabalham com suas famílias, mas a primeira a abrir sua vinícola, no Brasil, sou eu – diz, orgulhosa, sentada à mesa do seu escritório, no centro de Flores da Cunha.
Pergunto a ela se enfrenta preconceito por ser mulher, em um mercado ainda dominado por homens.
– Vejo que ainda tem um pouco de preconceito, sim. Normalmente, quando surgem opções de trabalho, as vinícolas pedem enólogos, não mulheres – revela.
Janaína diz que essa escolha nem sempre fica clara, mas a preferência por enólogos, em detrimento de enólogas, argumenta, se refere à falsa ideia de que as mulheres não teriam condições de estarem à frente de atividades que exigem mais força física.
– Acredito que o principal motivo seja a questão de força. Porque o enólogo não tem só o papel de pegar a taça, ficar girando e dizer que tem cheiro disso ou defeito daquilo. Nós subimos nos tanques e, na safra, que é onde o show acontece, precisamos estar juntos, carregando caixas, tudo isso envolve força física. Por mais que, muitas vezes, eu fique cansada ao extremo, eu faço todo o serviço– enfatiza Janaína.
A enóloga vai um pouco além em sua argumentação e explica em que setores, geralmente, as mulheres têm atuado dentro das vinícolas.
– Sabe onde, geralmente, as mulheres atuam? Nos bastidores, às vezes assessorando algum outro enólogo que está à frente, fazendo o trabalho mais pesado, ou dentro do laboratório, realizando a análise físico-química do material, ou ainda, na área comercial, para conversar e apresentar o vinho aos clientes – relata.
Janaína cresceu vendo o pai, Luis Massarotto, fazer análises e trabalhar na elaboração de vinhos.
– Meu pai é enólogo há uns 50 anos, o laboratório dele ficava em casa, em uma peça que ficava bem na frente do meu quarto – recorda.
Apesar de tê-lo acompanhado, desde os 12 anos, seja nas consultorias que fazia nas vinícolas ou ainda tendo ajudado nas análises em laboratório, quando terminou o ensino médio, Janaína entrou em crise. Não queria estudar enologia, porque entendia que esse envolvimento todo provocava uma certa influência emocional. Resolveu então estudar fisioterapia, mas desistiu. Depois, veio a engenharia química, que também abandonou.
– Eu sempre achei o mundo do vinho fantástico. Tem todo o processo de colher a uva e transformá-la em vinho, e depois acompanhar a sua evolução. O que mais me atrai na enologia é que todo o ano é diferente, a safra muda, o vinho muda. Eu sou muito realizada no que eu faço – avalia Janaína.