Com cem anos de emancipação recém comemorados, a próspera Flores da Cunha ainda conserva ares de cidade pequena. Os 30.892 habitantes que colaboram para o município ser oitavo maior PIB per capita da região Nordeste do Estado, contribuem também para tornar o lugar uma espécie de refúgio distante poucos quilômetros de Caxias do Sul, o maior centro urbano da Serra.
Nas ruas centrais não é difícil flagrar encontros em que as pessoas comunicam-se por meio do talian. A sesta segue sendo uma prática e grande parte dos estabelecimentos fecham ao meio-dia. Antes que o período de descanso aconteça, amigos se reconhecem em calçadas paralelas e fazem do canteiro central da Avenida 25 de Julho seu local de conversa.
São Ivo Oliboni e Josué Gavazoni, ambos com 60 anos, médico e artesão, colegas do antigo colegial e que não ficam mais de dois dias sem se ver pelas ruas da cidade. Quando o encontro acontece, política e memórias do passado fazem parte da conversa.
— Nos intervalos entre um trabalho e outro caminho pelo Centro, tomo um café e ando pela cidade, aí é certo que vou parar para conversar com alguém. Quem tem mais de 50 anos e nasceu aqui com certeza se conhece — comenta Oliboni.
Adolescentes quando Flores da Cunha vivia o auge da industrialização, os amigos lembram da procura por trabalho e, hoje em dia, se admiram com o crescimento da cidade e a vinda de empresas de fora que têm se instalado exatamente onde o município nasceu, no distrito de São Gotardo.
— Todo mundo procurava trabalho na época, comecei a trabalhar com 15 anos, embarquei na onda da indústria moveleira e hoje vejo que o município tem recebido inclusive empresas do metal mecânico. É só chegar pela RS-122 vindo de Caxias que vai notar a presença delas — diz Gavazoni, que se aposentou e hoje é artesão.
A constatação dos amigos em uma conversa informal é comprovada pelo Centro Empresarial de Flores da Cunha que no último perfil socioeconômico, divulgado no ano passado, apontou que a cidade ganhou 47 indústrias, 443 empresas de serviço e 107 novos comércios entre 2021 e 2022.
O turismo e o setor metalmecânico, para o presidente da entidade, Gilberto Boscato, são as apostas para o futuro:
— Ainda é um lugar provinciano em algumas coisas e isso tem o lado bom que é de receber bem. É um terreno fértil que dá condições para o progresso, temos visto empresas do metalmecânico e do plástico se deslocarem para Flores. No passado notávamos um fluxo muito grande de Flores para Caxias, hoje se inverteu tanto de quem vem para trabalhar quanto para morar. E nos últimos anos sentimos uma conscientização do empresariado com o turismo, que é uma semente que dará frutos em breve.
“Um povo que não tem medo do trabalho”
Há dois anos em Flores da Cunha, o pároco da paróquia Nossa Senhora de Lourdes, frei Jadir Segala percebe três características dos seus habitantes, que segundo ele, foram fundamentais para a construção do que o município é hoje: trabalho, solidariedade e fé.
— É um povo que não tem medo do trabalho, a gente enxerga neles a figura do trabalho. O segundo elemento forte é a solidariedade, qualquer pedido é atendido, chega ser emocionante a corrente solidária. O terceiro é a fé, um povo muito católico que vive a religiosidade trazida pelos freis capuchinhos que foram os primeiros a chegar aqui — diz.
História
Sede do 2º Distrito da então Colônia Caxias, Nova Trento se tornou oficialmente município em maio de 1924. São cem anos de uma história que começa muito antes com as primeiras ocupações registradas na década de 1870 no Travessão Garibaldi, onde hoje estão as comunidades de São Gotardo e São Cristovão.
A área urbana, segundo a historiadora Gissely Lovatto Vailatti começou a ser colonizada em 1877 quando as 156 quadras foram traçadas e permitiram a construção das primeiras residências e casas de comércios que vendiam produtos excedentes ao que era produzido como forma de subsistência nas propriedades rurais.
— A economia do pequeno distrito se resumia em vinho e na produção do que se necessitava nas casas. Quem criava porcos vendia banha e embutidos, assim como a graspa e o vinho que derivavam da produção de uvas.
Por décadas, Nova Trento se manteve colônia, dependente de Caxias do Sul e local de passagem para Antônio Prado. Na década de 1900, a idealização de um novo traçado para o município vizinho influenciou ainda mais a ocupação do centro do distrito que já contava com 4,5 mil moradores.
A emancipação pedia passagem e em 1924 com 363 quilômetros quadrados, Nova Trento se tornou cidade e agregou ao seu território os distritos de Nova Pádua, emancipado em 1992, Otávio Rocha e São Gotardo. A mudança de nome para Flores da Cunha veio em 21 de dezembro de 1935, via decreto do então prefeito Heitor Curra (1899-1973).
De acordo com Gissely a aceleração do processo de industrialização ocorre na década de 1950 quando são notadas as primeiras indústrias moveleiras. O laboratório de enologia do Instituto Riograndense do Vinho, inaugurado na década de 1940 também surge para colaborar com a profissionalização da bebida que em 1950 correspondia por mais de 70% dos estabelecimentos da cidade.
— Nessa época vemos um entendimento interessante do agricultor notar sua produção como uma possibilidade de melhoria da sua vida, e então consolidar a ideia de não ser apenas uma fabricação artesanal — diz Gissely.
Do galo da vergonha ao galo da prosperidade
A utilização do galo como símbolo de Flores da Cunha a partir de uma história que até então trazia constrangimento aos primeiros moradores é tema da pesquisa da professora de história, Carla Maris Saretta.
No livro Do Galo da Vergonha ao Galo da Prosperidade, Carla detalha como a visão do empresário Elói Kunz, que hoje dá nome ao parque de eventos da cidade, fez da história uma marca para a cidade.
— Terem sido enganados pelo mágico que fugiu depois de degolar um galo e prometer que ele voltaria a cantar virou chacota entre as comunidades. Na década de 1960, Kunz se cansou das brigas que aconteciam em jogos de futebol por conta da história e pôs o galo como símbolo de uma linha de bebidas — conta.
Nascia então o whisky Cookland (Terra do Galo em inglês). Esse é o primeiro registro da utilização do nome que ainda batizou a famosa hospedagem que Kunz abriu no município na mesma época, a Pousada do Galo Vermelho.
Em 1972, a representação do galo foi utilizada no carro alegórico de Flores da Cunha no desfile da Festa da Uva, na Rua Sinimbu, em Caxias do Sul. E em 1992, desbancando a torre da igreja em uma votação popular, o animal se tornou símbolo oficial da cidade reconhecida hoje como Terra do Galo.