O relógio marcava pouco mais de 16h, mas a luz amarelada do sol, inclinada sobre os vinhedos, dava a impressão de que já era quase noite. O outono americano ia no auge, com seus dias curtos e frios, quando a reportagem do Pioneiro percorria uma sinuosa estrada para chegar a Calistoga, no coração de Napa Valley, em busca de um tesouro gaúcho. Meio gaúcho, meio americano.
É nessa pequena cidade de pouco mais de cinco mil habitantes que dois enólogos de Garibaldi gestaram o sonho de produzir um vinho que mesclasse as personalidades do Brasil e dos Estados Unidos. O Foppa & Ambrosi American Collection Syrah 2021 tinha sido engarrafado há pouco, naquele final de novembro de 2023, e ainda esperaria uns dois meses para embarcar para o seu destino final, a vinícola no bairro Borghetto, onde as primeiras 900 garrafas chegaram, em meados desse fevereiro.
Ainda era cedo, mas a noite já estava fechada quando Alberto Mendoza, sócio responsável pela condução do projeto nos Estados Unidos, nos recebeu para um papo em sua casa. Mexicano naturalizado americano, Alberto é um apaixonado pela alquimia do vinho. Há mais de uma década trabalha na vinícola Rombauer, uma das mais prestigiadas de Napa Valley, localizada na zona rural da cidade vizinha de Santa Helena. Aliás, foi lá que conheceu “os muchachos” (os enólogo Lucas Foppa e Ricardo Ambrosi), em 2017, durante um estágio. A identificação foi imediata e o desejo de realizar projetos em conjunto nasceu nesse período.
— Eles me disseram que estavam pensando em um vinho com uvas de Napa, mas com um toque brasileiro. Eu consigo boa fruta aqui e também a estrutura para processar e vinificar. E eles vêm com frequência, acompanhar o andamento. Tem sido uma experiência muito boa — afirma Alberto, misturando inglês e espanhol em seu sotaque carregado.
O maior desafio foi o garimpo das uvas, segundo Alberto. Conhecedor experiente dos muitos microterritórios presentes na região de Napa, ele foi buscar parcelas de syrah com as características de maturação necessárias para originar um vinho encorpado e, ao mesmo tempo, elegante e com presença de fruta. A vinificação ocorreu em Calistoga, em uma propriedade não muito longe dali. Pouco antes de nos receber, depois de encerrar seu expediente na Rombauer, Alberto passou na cantina para inspecionar o engarrafamento do syrah e, para nossa sorte, trouxe uma garrafa consigo, para regar a entrevista.
— Viu, ele ainda está muito jovem, mas já dá para sentir a estrutura — diz, depois de um gole. — Tenho fé no sucesso desse projeto por que os muchachos e eu temos muita paixão e fizemos muitos esforços para que o sonho fosse realidade. Você sente? É um vinho completo, que se desfruta — comenta Alberto, enquanto faz girar a taça à sua frente.
Com um solo predominantemente seco e fértil, invernos frios e verões de grande amplitude térmica, a região de Napa, na Califórnia, é o berço da vitivinicultura americana. A indústria do vinho foi pujante no Meio Oeste dos Estados Unidos entre meados do século 19 e as primeiras décadas do Século 20 — período em que se instituiu a infame Lei Seca, que matou a maioria das empresas. Depois de 1933, com a revogação da lei que proibia a venda e o consumo de bebidas alcoólicas em grande parte do país, o setor começou uma lenta recuperação.
A virada de chave ocorreu na década de 1970, com o conhecidíssimo Julgamento de Paris. Para quem não lembra da história, um vendedor de vinhos inglês percorreu o Napa Valley em busca de vinhos desconhecidos e levou os exemplares de que mais gostou para uma degustação às cegas em Paris, concorrendo com grandes ícones franceses. Surpreendentemente, os californianos saíram ganhando em um evento que reposicionou o vinho americano no mapa.
Chateau montelena
Calistoga e as demais cidades que margeiam o Rio Napa guardam lembranças desse passado que se divide entre Lei Seca, corrida do ouro e as lendas do faroeste. Até pouco tempo era possível ver, nas ruas tranquilas, os moirões em que se amarravam os cavalos dos viajantes, antes da existência dos carros. Hoje, o vinho é a grande estrela dos pequenos municípios compostos basicamente por uma rua principal, uma praça, várias ruelas de casarões feitos com ripas de madeira e, claro, vinícolas. Em Santa Helena, duas das mais antigas vinícolas dos Estados Unidos podem ser visitadas a pé. A poucos minutos de onde estamos, em Calistoga mesmo, fica a icônica Chateau Montelena, cujo chardonnay foi a estrela entre os brancos do Julgamento de Paris.
Tenho fé no sucesso desse projeto. É um vinho completo, que se desfruta.
ALBERTO MENDOZA
sócio do projeto
É nesse cenário que Alberto Mendoza sonha com mais vinhos que revelem as possibilidades do Novo Mundo, misturando tradições brasileiras e americanas. Em sua própria casa, Alberto até tem um pequeno vinhedo da variedade Dolceto, com que eventualmente produz algumas garrafas de vinho — nada especial, ele garante.
Seu barato é mesmo garimpar a melhor uva que se puder encontrar no território de Napa e imprimir a personalidade dos enólogos brasileiros ao produto final. Com ar de mistério ele comenta sobre outro vinho que deve resultar da mesma parceria, que à época já estava em barrica, mas sobre o qual não deu mais detalhes.
— No futuro, também gostaria de elaborar um branco. Ou um pinot. Vamos ver.
Característica das estações frias naquela parte dos Estados Unidos, os dias são curtos e a noite já vai alta antes das 18h. Depois de umas três horas de entrevista – e uma garrafa do vinho que àquela altura era novidade absoluta —, julgamos ser quase madrugada e nos apressamos para as cordiais despedidas, temendo atrapalhar a rotina em uma terça-feira.
— Ainda é cedo, fiquem mais um pouco. Tem muito para contar sobre o vinho —, dispara Alberto, confirmando a fama de querido que o precedeu.
De fato, era cedo mesmo. Nem 21h. Tinha muito assunto. Assim como ainda há muito para criar e experimentar quando se trata de vinhos do Novo Mundo, seja da Califórnia, seja do Brasil. Ou, melhor, dos dois juntos.
Desafios para elaboração de uma produção independente
Ao contrário do outono americano, as tardes parecem intermináveis no verão da Serra gaúcha. O calor abrasador que faz em Garibaldi dá uma trégua dentro da sala de degustação revestida de pedra. O espumante refresca os sentidos e abre o espírito para as histórias.
Nunca, nem no meu melhor sonho, quando estávamos no porão elaborando nossos primeiros vinhos em baldes, imaginei que alcançaria essa façanha.
LUCAS FOPPA
enólogo
O espaço é um dos recantos da sede da Tenuta Foppa & Ambrosi, no bairro Borghetto, à margem da Rua Buarque de Macedo. É lá que o enólogo Lucas Foppa recebe os amantes do vinho, turistas e curiosos para apresentar o projeto que ele e o amigo, e também enólogo, Ricardo Ambrosi, colocaram de pé depois de uma grande aventura.
Os dois ainda não tinham saído da faculdade quando toparam com um pequeno lote de marselan que consideraram ideal para elaborar um vinho independente. Ambos trabalhavam em vinícolas maiores da Serra e decidiram fazer aquele primeiro experimento nas horas de folga, no porão da casa de um deles. Conseguiram 45 garrafas reaproveitadas e transformaram em realidade o sonho de fazer seu próprio vinho.
Em 2017, recém-formados, empreenderam desafio maior, elaborando 300 garrafas de um cabernet sauvignon de grande potencial.
Com o lote engarrafado e rotulado, começou o problema:
— E agora, como vamos vender esse vinho?
Depois do incêndio, a ousadia
Segundo Foppa, foi a partir desse desafio que os sócios perceberam que não tinham o conhecimento de que precisavam para levar adiante seu projeto.
— Pensei no Julgamento de Paris e na revolução que ocorreu naquelas vinícolas e me dei conta de que precisávamos daquela experiência. Tínhamos que ir para a Califórnia — relembra.
Começou assim a história do vinho mais prestigiado da Tenuta Foppa & Ambrosi, a vinícola que os dois enólogos fundaram em Garibaldi depois de voltarem dos Estados Unidos. Em 2017, partiram com todo o dinheiro que puderam juntar para um estágio na Rombauer, uma das maiores e mais estruturadas de Napa Valley. Por lá trabalhavam mais de 15 horas por dia no período de safra, passando por todas as funções. A dedicação da dupla chamou a atenção do encarregado da produção, Alberto Mendoza, que os conduziu por variadas atribuições durante o período em que trabalharam na vinícola.
O episódio mais marcante foi o incêndio de grandes proporções que atingiu a Califórnia naquele ano, que os dois assistiram de perto. Estavam hospedados nos alojamentos da Rombauer quando, ao abrir a janela do quarto, viram os arredores em chamas.
— Nunca tínhamos passado por nada parecido com aquilo — relembra Lucas.
Alberto foi o responsável por alertar os trabalhadores e orientar os procedimentos para a proteção das vidas humanas e, na medida do possível, dos vinhedos e da vinícola. Passado o sufoco, os amigos decidiram que precisavam voltar e fazer negócio com aquelas 300 garrafas que estavam prontas em Garibaldi. Com o tempo, foram aprendendo mais sobre as particularidades do negócio do vinho, até que estruturaram a vinícola.
Antes mesmo de retornarem ao Brasil, os enólogos tinham acertado a parceria com Alberto Mendoza para produzir em Napa. Os sete anos que separam aquele estágio do lançamento do American Collection Syrah foram necessários para alicerçar um projeto ousado e inédito.
— Nunca, nem no meu melhor sonho, quando estávamos no porão elaborando nossos primeiros vinhos em baldes, imaginei que alcançaria essa façanha. Me sinto tão feliz quanto era o Lucas de 2017, estagiário da Rombauer, lavando caixas de uva na Califórnia. A gente fez história.
Produto à venda em Garibaldi e na loja online
- Depois de pronto, o Foppa & Ambrosi American Collection Syrah 2021 enfrentou um périplo para chegar ao seu destino.
- Os trâmites de importação transcorreram por cerca de dois meses e, em janeiro, o primeiro lote, contendo 900 garrafas, embarcou em um avião nos Estados Unidos com destino ao Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo.
- Os desembaraços aduaneiros ainda levaram um tempo e, no último dia 14 de fevereiro, o lote chegou a Garibaldi, para a alegria dos "muchachos".
- Na cantina em Garibaldi e na loja online da Tenuta Foppa & Ambrosi, a garrafa do syrah já está à venda por R$ 1,4 mil.
- A produção anual da vinícola fica em torno das 60 mil garrafas, divididas em algumas linhas de produtos, com espumantes, brancos, rosés e tintos.
- O foco, segundo informações dos sócios, é vender para visitantes e parceiros especiais, além de oferecer o rótulo para degustações, tornando-o conhecido no país.
Patrícia Lima, Especial para o Pioneiro, de Calistoga, nos EUA, e de Garibaldi.