À convite do Almanaque, autores da Serra escreveram crônicas destacando personagens que marcaram suas vidas em 2023. Os convidados foram Patrícia Viale, Nil Kremer, Valquíria Vita, Marcos Mantovani, José Clemente Pozenato e Douglas Ceccagno.
Leia a seguir o texto da jornalista e escritora Patrícia Viale:
Meu personagem do ano é...
No início do ano ouvi que a ancestralidade é o futuro. Ancestrais são pessoas que vieram antes de nós, que já passaram pelo seu tempo e desafiaram o presente de sua época. Tiveram acertos e erros, como nós, na nossa geração. Ancestrais são os que consideramos sábios e que fizeram morada em nós, e que nos mostraram que a vida tem seus segredos.
Os segredos que me foram revelados vieram pelas mãos da minha avó materna, Neusa Soares. Mulher pequena, de fala mansa e sorriso contido, era ela que degolava as galinhas, para a receita de galinha ao molho pardo, que se fazia no final do ano. Eu presenciava de longe o suplício do animal e nestes instantes eu sentia uma pontada de raiva. Como uma vó tão querida podia matar? A vó que fazia arroz doce com canela e costurava roupas bonitas para mim e meus irmãos também matava.
Minha vó parecia ser a representação da bondade. Quando criança não conseguimos fazer leituras profundas dos nossos. Nos concentramos nos sorrisos. Pensei muito na Neusa neste ano que está acabando. Lembro quando nos colocava para dormir cedo e voltava a fazer o trabalho da casa, até de madrugada. Eu descia quietinha pela escada de madeira e ficava sentada, encolhida, nos degraus, olhando minha avó varrer e arrumar a casa.
No final de ano ela participava das novenas na pequena comunidade da Barragem do Salto, em São Francisco de Paula. Naquela época, as mulheres se reuniam para rezar, montavam presépios e cantavam músicas para Jesus. Tudo muito simples. Um paninho bordado na mesa de refeições, uma imagem de Nossa Senhora, flores colhidas no jardim e uma vela acesa. A fé é simples. As mulheres chegavam em silêncio, pedindo licença para adentrar a casa. Os chinelos e sapatos ficavam do lado de fora. Todas sabiam o esforço que era manter um piso de madeira encerado. Se reuniam todas ao redor daquela mesa, em um silêncio ainda maior, e logo começavam a cantar. Quando a novena era na casa da minha avó, ela me fazia cantar Noite Feliz e eu me sentia um anjo cantando.
Naqueles dias de infância preservada, eu enxergava ali apenas mulheres de lenços nos cabelos, que gostavam de limpar suas casas e plantavam flores no jardim. Avós e amigas das avós nunca choravam na frente de uma criança, nem contavam das suas dores. Hoje penso que ao rezarem as dores do Salvador, rezavam as suas também, mas em silêncio. Foram muitas as dores em 2023 e eu pensei ainda mais na Neusa Soares. Lembrei das suas orações e seus silêncios. Viver minha avó no meu coração foi o que me manteve viva nestes dias.
PATRÍCIA VIALE é jornalista. Escritora e ativista da causa da doação de sangue fundou a Associação Chico Viale, que trabalha na informação da causa. A autora tem participação em coletâneas literárias como a “Oficina Santa Sede” e é sócia fundadora da Academia Serrana de Letras, com sede em São Francisco de Paula.