O documentário reserva um charme que raríssimas vezes é possível de se extrair durante a produção de um filme de ficção. No documentário, há uma trama em camadas que, ao serem desatados um ou dois nós, é desvelado um novo mundo, por vezes escondido ou até desprestigiado da historiografia oficial. É o caso da embarcação Seival, usada por Giuseppe Garibaldi, durante a Revolução Farroupilha, na tomada de Laguna, a então província de Santa Catarina.
Esse fato histórico, somado ao fato de que esses barcos eram produzidos de forma praticamente artesanal, por volta de 1800, despertou o interesse do professor de Educação Física Antônio Carlos Rodrigues, que decidiu construir um “novo” Seival, como se estivesse naquela época. Foi aí que o diretor e roteirista caxiense Lissandro Stallivieri entrou na história, para, como um bom documentarista, começar a puxar os fios, desatar os nós e desvelar as múltiplas camadas do filme que pensava produzir.
Há cerca de três anos, Lissandro e parte da equipe da Spaghetti Filmes, foram a Camaquã para conhecer mais detalhes sobre o projeto de construção da embarcação, por parte do professor Antônio.
— Para nós não se resumiu ao fato de ter essa pessoa construindo um barco de madeira, de forma artesanal. Enxergamos que tinha muita coisa em torno dessa história. Passava pela Revolução Farroupilha e pela presença do Garibaldi por aqui. Descobrimos que o Garibaldi, apesar da imagem de “gaúcho”, do mito à cavalo, ele era marinheiro. Garibaldi nasceu de uma família de marinheiros super ligados ao mar. Nasceu numa cidade litorânea (Nice, Reino da Sardenha) e sempre teve muita ligação com o mar e com as navegações. E, para mim, isso foi uma surpresa — revela.
Aos poucos, com a imersão de pesquisa histórica, inclusive da questão geomórfica do Sul do Estado, Lissandro passou não apenas a ampliar o enfoque, mas a perceber o fio condutor de sua narrativa. Grande parte do desenvolvimento do Rio Grande do Sul, pelo menos até os anos 1940, se deu por meio das navegações, enfatiza o realizador audiovisual.
— Fomos descobrindo particularidades muito importantes em nossas pesquisas. A Lagoa dos Patos é uma das maiores lagunas do mundo, a gente tem uma das maiores praias em extensão do mundo, temos ainda o maior complexo de lagoas costeiras do mundo, a gente tem uma parcela do Rio Grande do Sul pertencente ao Pampa, que é um dos maiores biomas do planeta. A gente foi se dando conta, então, de toda a influência geomorfológica no desenvolvimento do Estado como na Revolução Farroupilha — explica.
O filme que havia iniciado, pelo menos na fase de pré-produção, como a obstinação de um professor para construir um “novo” Seival, passaria agora a navegar em águas mais profundas, discorrendo acerca da ocupação do Sul do Estado, dos conflitos entre as tropas de Garibaldi e dos Imperialistas, bem como dos impactos ambientais que têm sido gerados a partir da presença do homem neste território. Tanto é que o interesse do professor, em fazer uma réplica do Seival, é para uma finalidade pedagógica, a fim de despertar o interesse das crianças e adolescentes para o zelo aos recursos hídricos.
— Não vamos fazer um filme apenas focado na reconstrução do barco, não faremos também um filme totalmente histórico, não vamos fazer um documentário para levantar a bandeira da ecologia. Mas vamos produzir um grande pensamento em cima desses temas, tentar tecer esse emaranhado de informações, que estão, de alguma forma, intimamente relacionados — aponta Lissandro.
E tudo mais que se disser de Seival, pelo menos nessa fase de produção, é especulação ou spoiler. Porque tem muita água para rolar debaixo da embarcação, que promete levar o espectador em uma viagem por capítulos importantes da história do Rio Grande do Sul e atracar em terra firme, onde a reflexão destes temas abordados pelo documentário pode resultar em um porto seguro num futuro bem próximo, logo ali.
Produtora caxiense recebeu recursos do Edital FAC Filma-RS
O projeto do Seival recebeu investimentos de R$ 500 mil para a realização do documentário. O recurso é do Edital FAC Filma-RS. Ao todo, a Secretaria da Cultura do Estado destinou R$ 12 milhões para o audiovisual gaúcho, neste edital.
Conforme Lissandro, as primeiras diárias foram gravadas em São Lourenço do Sul, em estaleiros navais que fabricam esses barcos de forma artesanal. E também foram para Ilha de Santo Antonio, onde originalmente o Seival foi construido.
Nos próximos dias, a equipe vai gravar com o professor Antonio, no Seival, que está pronto. Ainda estão previstas filmagens na Itália, sem datas definidas. O documentário deve estrear em 2024.