O que é a poesia? É o espanto, a transcendência, a manifestação artística que brota, veja só, até em versos. É daí que vem também o poema, fruto da obra dos poetas.
E quem é esse dito poeta? Segundo Jean Cocteau, que versava pelo cinema, pela dança e pela literatura, “o poeta lembra-se do futuro”. Poético, não?
E, afinal, “Onde está a poesia?”, pergunta o poeta Ferreira Gullar. Ele mesmo, escreve, respondendo: “Indaga-se por toda parte. E a poesia vai à esquina comprar jornal”.
A poesia, como se vê, apesar de ocupar, comportada, as páginas dos livros (e também de jornais, revistas e sites), ama a metamorfose das múltiplas linguagens. E, pra fechar:
– Gullar, a poesia consegue “deter a vida com as palavras?”.
– Não.
– O que fazer então?
– “Libertá-la, fazê-la voz e fogo em nossa voz”.
Antologia Poética
Na seleção a seguir, com curadoria de Nil Kremer, poetas da Serra gaúcha versam sua verve poética:
Trópico de Câncer ao meio-dia
Do corpo brotaram espinhos
aquele perfume
o ardor
(talvez o amor).
Parecia que ao chegar-se assim
com dedos ingênuos
pernas eriçadas
lábios alfabetizados
atravessaria mapas
(ou perderia altitude).
Era um deserto
desejo também.
Mas era ali, do meio das pernas,
que a roseira
a areia
os globos todos
tinham seu ponto zero
(e alguns graus de ebulição)
com desvios decimais.
E ela só queria saber cantar.
Ana Júlia Poletto é escritora e apaixonada por máquinas de escrever: chá, gatos no jardim e do amor que amadurece no tempo. Quer um dia atravessar o(s) deserto(s), e escrever livros na areia: ao som das cordas de um cello. Ana lança seu livro de estreia no dia 15 de abril, no Arco da Velha Livraria e Café.
Sem título
não há guarda nenhuma estatuto algum
para a criança branca-preta-indígena e
para o sexagenário barbudo e sem uma perna
q circulam ao meio-dia armados
com um meio sorriso no rosto
é verão e os carros estão fechados
os olhares vagam pelas calçadas e
a indiferença avoluma-se em trânsito
q embora lento e estressado é palco
para demonstrações de velozes habilidades
a cidade ergue-se todas as manhãs e impede
com altas paredes de concreto q se ouçam
as súplicas q rebatem nelas e se perdem
na cacofonia dos camelôs de porta de lojas
não há estatuto não há guarda
q controle os excessos de fundos perdidos e
de esperanças resumidas a um prato de
comida – é preciso viver, é da vida
Dinarte Albuquerque Filho é autor de “A tempestade é metáfora” (2022) e “Fissura no asfalto” (2019), entre outros, é professor, editor e jornalista.
Vozes
Minha cabeça não está sozinha:
há várias vozes espalhadas dentro.
Algumas correm, duas ou três caminham,
outras disfarçam-se de pensamento.
Minha cabeça é uma casa douta,
com infinitos quartos de mistério.
Quando uma voz fala em lugar da outra,
eu nunca entendo se o que penso é sério.
Sei dessas vozes, porém não de ouvido
(porque as orelhas sempre estão por fora).
Quem as escuta é um outro; eu só duvido.
E, nessa dúvida, um temor aflora:
será que creio no que tenho dito
ou só repito da boca pra fora?
Douglas Ceccagno é autor de “Rábula” (poesia) e “Ópera Subterrânea” (contos), além do recente “Eu é muitos outros”, que contém um dos textos aqui reproduzidos. Publica irregularmente, no Instagram, suas “Notas apressadas para poemas futuros”. É doutor em Letras pela PUC-RS, professor e pesquisador de literatura na UCS.
Ageísmo
Quando me debati com esse termo, já era tarde
eu já gostava da marca dos anos na minha mente
na minha certeza
na minha pele
Uma sociedade que não me deixa envelhecer
é uma sociedade infantil
Quando me debati com esse termo, já era tão eu
tão mais certa dos erros
tão mais inconformada com as falhas de nossa espécie
Uma sociedade que desvaloriza uma mulher
porque ela tem estranhamente sobrevivido
É mais, mais que etarismo
– decretaram nosso fim muito cedo
Geneviève Faé nasceu em Caxias do Sul, em 1985. Passou boa parte destes 37 anos lendo. Formada em Letras, com Mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade, tornou-se professora de produção textual, atividade que preenche seus dias há mais de 15 anos. Todavia, no oco da pandemia, no desespero do cotidiano confinado, resolveu-se escritora e lançou o livro “Ponha-se no seu lugar”, em 2022.
Recado
Trago uma
mensagem
ditada
pelo vento:
saiba você
que não
sou pássaro
mas tenho
asas para
seguir
em qualquer
direção.
Helô Bacichette nasceu e reside em Caxias do Sul. Professora, com formação em Letras e Especialização em Educação do Movimento pela UCS. Pós-graduada em Literatura Infantil e Juvenil. Autora de “Filhos de Ceição” (indicado para o Catálogo de Bologna 2015 e premiado como Livro do Ano AGES-2015, na categoria infantil), “Depois do começo” ( 2019), “Quatro amigos e os terríveis cães gigantes”, coautoria com Sérgio Brandão (2022), "A bruxa Zabumbada" (Coleção Infantil Bilíngue, 2ª ed. 2022).
e ele fez um desenho trêmulo no ar
o senhor está sim
com a pressão um pouco alta
não muito
mas é alta.
me fale
e essa tatuagem esverdeada
que diz AMO
um coração
e algo mais
aí no braço do senhor.
isso foi quando
servi em Rio Grande.
Serenita o nome dela, não viveu pouco.
ela ia agarrada comigo nesse braço todo dia.
esse derrame veio de lá.
Marco de Menezes (Uruguaiana, 1968) é poeta e editor. Publicou os livros “As horas dragas” (1999), “Pés de aragem”(2007), “Fim das coisas velhas” (2009 – vencedor do Açorianos de Literatura nas categorias Poesia e Livro do Ano, em 2010), “Ode paranoide” (2010), “Pequena madrugada antes da meia-noite” (2016) e “Como se constrói uma melancolia de domingo” (2018). O poema acima é de “Como estou dirigindo”, ainda inédito.
Desenho em verde
profanar as esquinas antes que o torpor vença o corpo
e a incerteza da horas corroam a memória
antes que as jaulas se abram às calamidades da boca
e os contratos se rompam como os galhos na tempestade
antes que se quebrem os últimos sorrisos
abertos a banalidade das estações
e os coentros sejam abolidos como temperos demoníacos que são
e as salsinhas e cebolinhas se proliferem como inço
sol se derramando como cobertor sobre a terra
hera traçando o desenho em verde
gestar o arrepio do primeiro beijo
(e sempre é o primeiro)
possuir peito vertente
regar a fertilidade de tudo que canta, dança e proclama
a (in)sanidade do calabouço
Nil Kremer é atriz, performer, arte educadora e escritora. Com formação em Letras (UCS), é especialista em Literatura Infantil e Juvenil (UCAM), com pesquisa sobre a transversalização do cinema em sala de aula. Participou de coletâneas de poemas e em revistas (publicações impressas e digitais). Está na antologia “As mulheres poetas na Literatura brasileira”, lançada pela editora Arribaçã.
perdidamente estoico
perdidamente estoico
como as mãos de parmigianino
te levo a passear entre árvores que nunca lembro
apesar de já o terem me dito algumas vezes
e sei que também só florescem uma ou duas vezes por ano
e é justamente agora – quando?
que estão no zênite ou talvez seja
minha imaginação apenas
mas sei que a alma se instala naquilo que a gente bem
entende
como num suporte aveludado vermelho
ou mesmo nos cravos seculares de uma avó já ida
diluo o teu rosto nas avenidas que não conheço
e mesmo assim tu estás ali
porque não é apenas o amor que vale a pena
mas também seus arredores
Rafael Iotti nasceu em Porto Alegre, em 1992. Vive em Caxias do Sul, onde trabalha como professor. Autor de “Assim guardamos as nuvens” e “Mas é possível que hajam outros”.
Sem título
passei a infância colecionando
papéis de carta
e figurinhas adesivas
nunca escrevi para ninguém
evitei usar o lápis verde-água
meu favorito
para não o gastar
virou o maior na caixa de 36 cores
ainda bem que
cresci
e desisti de economizar afetos.
Tríssia Ordovás Sartori é jornalista, mestre em Letras, Cultura e Regionalidade e doutora em Letras. Atua como editora-chefe do Pioneiro (onde escreve crônicas quinzenais) e da rádio Gaúcha Serra. Participou da antologia de crônicas “Era uma vez, minha mãe: memórias de afeto” e da antologia poética “Quando a retina não tinha filtros”.